ESCREVER, LER
Retiro do Guerra e Pás, este fragmento que se segue. Lendo-o de novo, fico mais aliviado e já não sinto tanta necessidade, nem de mandar a D. Paula Bobone à merda, nem de ler crónicas e artigos rebarbativos que tanto espaço inútil às vezes ocupam em jornais e revistas. Prova-se que esta blogosfera tem mais coisas no seu céu e na sua terra do que muita "filosofia".
A Literatura, como bem sabemos, reconcilia-nos o mundo. Não com o mundo, mas o mundo. Atrevo-me a dizer que quando estamos a ler, estamos de facto à procura da nossa resiliência, da nossa capacidade de nos esticarmos e, como os elásticos, de acumularmos energia – vida – que possamos consumir. Até à próxima leitura.
Na neurociência, e nas ciências psi, há um curiosíssima visão do nosso mundo: vivemos no passado. Um passado de pedaços segundo, o tempo que demoramos desde a captação do mundo até à sua digestão. E nas ciências mais exactas, mas amplamente especulativas, aquelas que querem compreender e explicar o universo, há uma teoria, incapaz de prova, que congela a nossa ideia de tempo como qualquer coisa que passa, para dizer que na realidade cada instante das nossas vidas corresponde em si mesmo a um universo. Assim, viveremos de fatia em fatia: cada correlação de nós com o mundo é um carpaccio. Haverá um universo em que nos apaixonamos; um universo no qual vamos abrimos o livro que mudará os próximos universos. Os nossos.
Estou certo que a ideia nada tem de novo nem de original, mas é preciso algum tempo para a assumirmos como uma das verdades mais elementares na leitura. Estamos a ler para ler aquilo que esperamos. Quando começamos a ler, a ansiedade é essa. E a ansiedade é uma reacção bioquímica defensiva – como é o riso ou o choro.
E o que esperamos? Claro, não sabemos. Mas sabemos o que não queremos. Se estamos a ler um policial há uma expectativa, uma grelha que deve ser preenchida. A nossa memória é terrível. Para o bem e para o mal, queremos sempre um detective/polícia espirituoso, ou pelo menos alguém que pudessem ser isso, se não fosse outra coisa, uma mulher, um padre, um cego.
Na literatura, os géneros existem porque os leitores são todos pretensores.
Mas depressa a nossa esquizofrenia passa a mestre dominante. Pouco depois da acalmia retentiva, que nos faz ficar pelo livro, começa a crescer em nós a urgência da ligação única que queremos ver estabelecida entre o que lemos e nós mesmos. O livro, o texto, deve começar rapidamente a dizer-nos segredos, bem encostado ao nosso ouvido. Ideal seria que fossem sussurros, murmúrios de meias palavras. E pode ser uma marca de pastilha elástica que nos leva à infância, não precisa de ser uma ideia das mais nobres.
Só que não chega.
O livro começa a subir dentro de nós, a ser menos um livro e mais um livro que ficará connosco, quanto mais sentirmos que quem escreve é capaz de escrever aquilo que lhe é intolerável. O problema é que até nós, o leitor mais exigente do mundo, o leitor que mais ambiciona ser leitor, estamos embriagados pelas contingências e imobilizados pela nossa própria armadura de prévios. E quem escreve sabe isso e portanto tende a escrever do que não lhe interessa (ou que lhe permite refúgio ou adiamento), como quem coloca placas de sinalização pelo livro todo. Os locais, os ambientes, as descrições, as piscadelas de olho culturais, as personagens acessórias, a cinematografia possível de uma história que recebemos por transfusão. Na maioria dos casos, são os sinais indicativos que ofuscam o resto e esse resto mirra irremediavelmente. Ora esse resto será, em princípio, da ordem do intolerável e, talento e humanidade existam, será um intolerável mais banal que terrível, porque a nossa vida é bem mais comum do que aquilo que gostamos de pensar.
O erro está, talvez, talvez, em ler um livro como um todo. Ou por outra, ler um livro é ter de esperar tudo isso. Num restaurante, por melhor que seja, não nos escapará a visão do prato sujo, da mousse a desfazer-se, da garrafa vazia e tombada. Cabe-nos desejar saborear apesar de tudo.
Num blog há mais provocação ao intolerável do outro que assunção do nosso próprio intolerável. Nesta medida, e até ver, os blogs têm pouco de literário. Isto com excepção de alguns posts, sem surpresa, os que mais entram em cada um de nós e se aninham dentro daquilo que somos.
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