28.9.09

CUNHAL REVISITADO


Para que não haja dúvidas, sobretudo por parte de certos lateiros que aparecem por aqui acobardados no anonimato e porque, à altura, este blogue não tinha o "público" que tem hoje, republico na íntegra este post escrito no dia do funeral de Álvaro Cunhal. Em certo sentido, o que se diz no fim dele acerca dos "homens de plasticina" e do "respeitinho" nunca foi (permanece) tão actual. E o que interessa à brigada lateira vem no ponto 4. para ser mais preciso.


1. Finalmente o país parou para ver passar o dr. Álvaro Cunhal. Há 31 anos, aquando da sua chegada triunfal ao aeroporto de Lisboa, o personagem que desceu do avião era, ainda, um mistério. As primeiras imagens e as primeiras palavras recortavam a figura definitiva que os “anos brasa” da revolução iriam consagrar. O porte aristocrático, o olhar hegeliano da “noite do mundo”, o discurso cortante, a mordacidade evasiva, a concentração obsessiva, o messianismo do “colectivo”, tudo isso apareceu imediatamente a preto e branco na única televisão da época. Os exilados que regressavam no mesmo avião em que viajava Cunhal afastaram-se prudente e respeitosamente dele. Deixaram-no sozinho com as suas notas. Era o único que sabia perfeitamente ao que vinha.

2. As imagens de “Daniel” e de “Duarte” - da resistência clandestina à ditadura - mostram o homem bonito e sedutor que Cunhal nunca deixou de ser até ao fim. Explicava que a “força” vinha da convicção. E que a convicção obrigava ao combate e à resistência. Em certo sentido, Cunhal faz parte de um mundo que pouco ou nada diz à maior parte dos homens videirinhos dos dias de hoje. Justamente eles jamais conseguirão perceber que, para Cunhal, era uma impossiblidade intelectual o cometimento da mínima cedência aos “princípios” e ao “ideal”. Nem sequer o porquê da inadmissiblidade da discussão da “justeza” comunista. Por isso Cunhal é insusceptível de alguma vez poder ser acusado de “travestismo” político. Ele era aquilo que ele era e nunca poderia ter sido outra coisa. Não significava isto qualquer limitação da inteligência, em sede da qual recolhe a unanimidade de “superior”. Pelo contrário, no seu “sentido único”, Cunhal foi de uma verticalidade rara. E, por aí, igualmente um homem raro.

3. Valeu a pena o país curvar-se perante a sua memória? Valeu. Álvaro Cunhal é incompreensível para a geração do “25 de Abril”. Tê-lo lembrado por ocasião do seu desaparecimento, foi um serviço bem prestado à memória contra o esquecimento. Serve de muito pouco, no entanto, ao oásis acéfalo que é, na generalidade, a actual sociedade portuguesa. Como é que se explica ao país da “quinta das celebridades” e da bola que um homem pode aguentar, em nome de um ideal e da emancipação económica e cultural do seu povo, oito anos de isolamento prisional? Eu creio que Cunhal percebeu muito cedo que andava literalmente a pregar no deserto. O mérito dele – e a nossa vergonha – é ter continuado a pregar, sem a mínima tergiversação. Não cuido agora de saber se tinha razão. Sabemos que não tinha. A sua visão do “pacote” da democracia era radicalmente diferente daquele que nós, par delicatesse, aceitamos. Ceder nunca fez parte do seu vocabulário, porque sempre representaria “outra coisa”. Ora se havia “coisa” que Cunhal detestava, na coerência da sua “fé”, era o “outro” da “coisa”. Num livro do ano passado, Conversas com Álvaro Cunhal, Maria João Avillez perguntava, em 2000, se podia falar em “derrota” e “amarga”. Cunhal disse simplesmente isto: “amarga é uma palavra muito pequenina para o que foi”. Esta espécie de luminosidade amarga acompanhou os anos últimos, sem que, por um segundo, a antiga “convicção” tivesse alguma vez sido abalada.

4. Parece que é piroso revelar-se fascínio perante Álvaro Cunhal. Eu sempre o tive. Entre os meus quinze e dezasseis anos fiz parte da União dos Estudantes Comunistas (UEC). A minha breve e inócua militância traduziu-se por umas passagens por “cooperativas” alentejanas, pela assistência a reuniões meio clandestinas, nas casas de uns e de outros, dirigidas por um “controleiro” senior, em fazer “piquetes” na sede da UEC (nunca cheguei a perceber com que propósito) e a conviver esporadicamente com os “génios” femininos da então juventude comunista, a “Geninha” Varela Gomes e a Zita Seabra. Assisti, com fervor religioso, a alguns comícios em que o momento alto era a palavra vibrante de Cunhal. Li o “Rumo à Vitória” e sublinhei “A Revolução Portuguesa, Passado e Futuro”. Cantei, no coro do liceu, as “heróicas” do Lopes Graça. E, em momentos mais delirantes, andei nas ruas da Costa de Caparica a distribuir panfletos e a recolher “donativos”. Depressa me apercebi da frivolidade infantil desta desastrosa militância e “aburguesei-me”. Logo em 76, achei piada ao candidato presidencial dos óculos escuros, Eanes, apesar de o “nosso candidato ser Octávio Pato”. Leituras e companhias, o curso de direito e a emergência do “movimento reformador” de António Barreto e Medeiros Ferreira, em 1979, fizeram o resto. Anos passados sobre esta aventura, voltei ao convívio com Cunhal através do seu “Partido com Paredes de Vidro”. Mais recentemente, li a monumental “biografia política” de Pacheco Pereira, ainda a meio do caminho com apenas dois volumes publicados*.

5. Isto tudo serve para dizer que eu respeito a “história” e a memória de Álvaro Cunhal. Tive familiares que estiveram detidos em Peniche ao mesmo tempo que o “camarada Duarte”. Tive e tenho familiares que sempre foram comunistas. Eu parti muito cedo e definitivamente numa outra direcção. Faltava-me tudo o que eles têm: acreditar no "homem", primeiro, e, pior do que isso, na sua "salvação", a noção de disciplina férrea, a “convicção”, a "felicidade pela coerência" e, sobretudo, a “história”. A Álvaro Cunhal, e à resistência moral e física de tantos outros comunistas e não comunistas, devemos hoje até o direito a sermos parvos. A força imbatível da liberdade “absorveu” e neutralizou a tempo a “deriva totalitária”. Penso que já devíamos conviver todos bem com isso e sem grandes problemas "existenciais".

6. Deu-me um certo gozo ver o país do “respeitinho” democrático e da “era” dos “homens-plasticina” inclinado perante o féretro de Cunhal rodeado de bandeiras vermelhas. Lá no assento mais ou menos etéreo onde subiu, Cunhal, com a sua eterna subtileza irónica, deve ter sorrido e, olhando cá para baixo, murmurado uma vez mais “até amanhã, camaradas”.


*entretanto saiu o terceiro volume, em Novembro de 2005.

9 comentários:

josé manuel constantino disse...

Belo texto.

Garganta Funda... disse...

Já tinha lido o magnifico texto recomendado.

Uma bofetada com luva branca na cara da insurgência neo-socialista, adoradores de papagaios de papel...

(Não é por acaso que a maioria esmagadora dos portugueses têm um inolvidável respeito e veneração por duas figuras extraordinárias do século XX politico português: o Prof. António Oliveira Salazar e o Dr.Álvaro Cunhal, não própriamente pela suas ideias, que já estão experimentadas e datadas, mas sim pela sua superioridade moral e intelectual.
Eram os dois, embora em pólos diametralmente opostos, dois príncipes das ideias e da politica.

Nada comparável ao que se vê por actualmente, onde a iliteracia cultural e politica é flagrante.

Fiquei uma vez impressionado quando soube que o Dr.Cunhal chegou a traduzir na prisão obras de Shakespeare, para além de possuir uma sensasibilidade artística notável.

Também não é por acaso que o Prof.Marcello Caetano nutria uma considerável admiração pelo seu distinto aluno Cunhal e um desprezo quase olímpico pelo mon-ami Mário Alberto).

Para reflectir.

Anónimo disse...

Lá o ter sido comuna quando jovem até se compreende e aceita-se.

O que eu nunca compreenderei é como um homem adulto, pensando o que pensa hoje, tenha sido do Movimento de Apoio a Mário Soares à Presidência.

Vitor Esteves disse...

As minhas homenagens, um belo texto sobre um homem grande independentemente das suas posições. Mais uma vez vale a pena visitar o seu espaço,discordando muitas vezes mas sempre admirando a clareza, frontalidade e principalmente a irascibilidade.

fado alexandrino. disse...

Grande momento de prosa.
Sobre as personagens, eram dois ditadores, um governou e mostrou o outro se o tivesse feito replicaria multiplicado por mil.
Estão muito bem onde estão.

S.C. disse...

Chapeau, Monsieur!

Anónimo disse...

Totalmente de acordo com o post do "Garganta Funda". Salazar também era um homem de convicções.
A única diferença, se fosse Cunhal a governar em vez de Salazar, este nunca teria tido possibilidades de escrever fosse o que fosse na prisão e muito menos ainda, ir defender uma tese de fim de curso na Faculdade como aconteceu com Cunhal.

sts disse...

Sei que não é comunista. Já foi nos idos. Mas este texto é dos mais belos dedicados a Álvaro Cunhal. Sei que é Português. Não se apague a memória. Há homens, e, homúnculos.

Cáustico disse...

Li pela primeira vez o nome de Álvaro Cunhal na frase LIBERTEMOS ALVARO CUNHAL pintada no muro de suporte da escarpa da Serra do Pilar existente na avenida da República em Vila Nova de Gaia. Era muito jovem nessa altura. Nunca tinha ouvido falar de tal pessoa. Surpreendi-me, isso sim, com a envergadura das letras feitas com tinta preta. Tantos anos volvidos e parece que ainda as estou a ver.
Pouco vivido ainda, desconhecia completamente quem era a pessoa que tinha o seu nome assim publicitado e muito menos o que fazia.
Terceiro filho de quatro de uma família a viver com sérias dificuldades, não deixei de procurar saber quem era Álvaro Cunhal.
Embora de uma forma muito vaga, já tinha ouvido falar de comunismo. Ouvi-o da boca de uma mulher, que vinha com frequência a casa dos meus pais, amante de um marinheiro, ao afirmar que todos éramos iguais. Fiquei perplexo. Não era isso o que observava em mim e nos meus irmão, nem nos meus colegas de escola e de trabalho.
A minha curiosidade sobre este assunto foi aumentando sempre e recordo a afirmação feita uns anos mais tarde por um colega do Instituto Comercial do Porto, defensor desse tal comunismo, de que todos nascíamos com a mesma inteligência. Fiquei vacinado.
Mas a curiosidade não esmoreceu e sempre que podia lá estava a ler o que conseguia emprestado e, mais tarde, já com certo desafogo financeiro, o que comprava para conseguir dar satisfação à minha curiosidade: URSS, do socialista francês; Jules Moch; Dois Comunistas na União Soviética, relato da vivência dum casal francês, ambos comunistas, que tiveram uma experiência no país de origem de ideologia tão imunda; Carta aos dirigentes da União Soviética e o Arquipélago Goulag, da autoria do russo Solsnetjine (?); artigos da revista francesa L’HISTOIRE; Os Crimes do comunismo e Mao.
Um dos artigos de L’HISTOIRE atacava os chamados intelectuais do ocidente por ficarem calados em relação aos relatos das canalhices, das prepotências, das atrocidades, dos assassínios em massa, que livros publicados em 1920/25 já denunciavam.
Se estava vacinado contra o comunismo, era assim que também o designava, seguindo a onda, passei a detestá-lo. E a partir daí passei a considerar a existência de três tipos de socialismo: o puro ou cristão, o único que poderia aceitar apesar de entender que é o dinheiro que faz trabalhar o homem, o socialismo de merda criado para satisfazer vaidades, ambições de poder e proporcionar bons governos de vida e a merda do socialismo, vulgo comunismo, porque um socialismo que mata para cima de 100 milhões de pessoas tem, necessariamente de ser uma grandessíssima merda.
E se eu, rapazinho inicialmente pouco instruído, não me deixei influenciar pelo “slogan” da igualdade, não posso aceitar que Álvaro Cunhal e muitos outros, pessoas mais experientes e mais cultas, tivessem aceitado o palavreado das igualdades e de tudo o mais que saiu de mentes assassinas.
Porque razão Álvaro Cunhal e os seus seguidores nunca repudiaram publicamente os tiros na nuca, as clínicas psiquiátricas onde se eliminavam de forma suave os indesejáveis, os goulags, as deportações para a Sibéria, as fomes programadas? Como se pode aceitar que este dirigente do comunismo português, defensor acérrimo da ditadura do proletariado, tenha regressado a Portugal, após a Abrilada, sempre com a democracia na boca, palavrinha mágica que também faz parte do vocabulário actual de muito merda do socialismo? Simplesmente para enganar o povo e alcançar o poder que pretendem.
Que nos pode interessar a inteligência de Álvaro Cunhal? Também não eram inteligentes o médico Urbino de Freitas, que tentou matar os sobrinhos, o Alves dos Reis, autor de uma burla histórica, Lenine, Estaline, Mao e Hitler? Conservemo-nos sempre alerta porque são inúmeros e variados os cantos de sereia.