28.9.09

LAMINAGEM


(...)
Um país; tornou-se um assassino.
Viverei os poucos verões até morrer
com este mundo de agressão em cerco.
Eu queria outro país, outro lugar
e tenho este infortúnio de leis amarrotadas
que não cumprem nem o violento nem o clandestino.
Um país de acasos,
um parque de campismo selvagem, um cimento apodrecido,
a música de sem abrigos nas estações de metro
enquanto não chegam comboios avariados
às plataformas de arte depredada,
um esboroamento sanguinário.
Até a linguagem me ergueu
me sabe a sarro e a arrabalde.

Não fossem as obrigações que nos garrotam
nos fazem monstros com a lassidão de herbívoros
talvez pudesse ter o interior abandonado
e chegasse a faca do sol e me cortasse
noutra penúria mais serena.

Ainda que me digam que não olhe,
eu vejo. Ainda que me digam faz ginástica
e a depressão desaparece, nada me resolve.
Os ruídos sobem de qualquer lugar,
sintetizadores, martelos, desabamentos
uma percussão alheia a qualquer justiça.
Nenhuma janela que não fale
da construção administrativa dos piores instintos.
Todo o lixo do humano feito sebo
em qualquer lugar. Ainda que me digam
que vivemos em democracia eu digo
que não sei. Nem direitos nem deveres.
Um sem remédio ancestral.

(...)

A alguns vemo-los em qualquer pousio
depois de fecharem as lojas
e nem se sabe o que vemos.
Aos balcões de cafés de azulejo,
com telemóveis pendurados nos cintos
e os cartões de crédito em dente na carteira.
Riem-se e batem nas costas
uns dos outros, entreolham e vigiam
se alguém diverso se aproxima
para largarem uma troça arcaica, e comem
com essa fome dos que não sofreram ainda
inquietações laborais ou crêem que virá
depressa o primeiro emprego.
Ao olhá-los melhor, aos seus afectos
de pessoal especializado em escuras economias
adicionais, vejo-os depois no verão.
Ao deus dará em todos os lugares,
em tendas velhas, em rulotes,
sabe-se lá onde vão cagar. E as mulheres
com os sinais exteriores da aspereza.
E as asas do inverno marítimo
auguram aluimento.

Eu queria que na cabeça parasse
o furor de tudo o que tomba,
a derrota do dia a dia,
mas será sempre o cabide do tempo
quem estende as garras
para nos alhear.
E os e-mail atravessam zonas sem remendo,
choças de tijolo com roupas a secar.

Assim armado o país.
As gentes em catástrofe deslocam-se,
deixam por testemunho o abandono e a inépcia.
Uma a uma, uma paisagem é trucidada.
Inchou a autarquias o país.
Atravessam-no a miséria e algum dinheiro
insolentes.
Um assassino
espreita outro assassino.

Os que destroem agora
podem exigir os torcionários que virão,
pois quem destrói pressente um chefe
e vai servi-lo.
E muitos hão-de sempre ser as vítimas
da liberdade que consente a violência
da violência que não consente a liberdade.
Um assassino o país. Com as suas leis
inúteis, a sua ordem por cumprir.

Só nos resta esperar então morrer?


Joaquim Manuel Magalhães

9 comentários:

Carlos Vidal disse...

É isso caríssimo, embora não estejamos de acordo em muitos domínios, hoje sabemos que a inteligência e o desejo de justiça (mínima) perderam: como disse no 5dias, perdemos todos. JMMagalhães di-lo como ninguém:
«Eu queria outro país, outro lugar
e tenho este infortúnio de leis amarrotadas
que não cumprem nem o violento nem o clandestino.»
Um abraço
CV

sts disse...

LIVRE.

Atto, venº e obgdo - disse...

A merda vence de novo, na cafraria:
a miséria puxa miséria.
E o impávido Doge de Belém, entrelaça os dedos, ditosamente esfíngico.

Anónimo disse...

Veja a situação do ângulo oposto: que bom continuar a ser livre do poder; e de expressar essa liberdade; e de sentir que o grande líder não nos calará; mas não fechemos os olhos ao portugal-pimba que o quer perpetuar no poder.

Anónimo disse...

Pois,Magalhães,Sena,porque não O'Neil,o lamento da mediocridade,por vezes assassina. Mas há mais alguma outra perspectiva? Não andamos nisto há 200,300 anos? E a causa não está nas estrelas,mas em nós próprios,como diz o outro. Experimentámos Constitucionalismos,repúblicas parlamentaristas,Homens Providenciais e salvíficos,regimes europeus e modernos,e os resultados estão aí,ou seja onde sempre estiveram. Na mediocridade. Agora agravada pelo avanço dos outros,ocidentais e orientais,que pouco ou nada precisam de nós. Mas consolemo-nos,a mediocridade não conduz necessàriamente ao abismo,mas à soturna resignação. Ou simples resignação,sem a "soturnidade" dos Magalhães/Sena. É o que temos,e provavalmente continuaremos a ter,mais eleição menos eleição.

IO disse...

É verdadeiramente triste e tremendamente verdadeiro.

Ana Cristina Leonardo disse...

foi-se a maioria absolutista; é bom

Anónimo disse...

Nada de catastrofismos. Não caiu o Carmo e a Trindade com estas eleições. Aguardemos serenamente pelos episódios que se seguem.

de.puta.madre disse...

Toma Lá Um Poema para Leres ;) ( Tem sub-texto, links nas palavras cortadas) Vale.
http://aventar.eu/2009/03/30/coro/
Agora n ando mto nos Blogs, só on Twitter
... Mas apeteceu-me deixar este o início deste poema ... infinito ...