25.4.07

25 DE ABRIL DE 2007


Cinderela em São Bento

por Rui Ramos


"Já sabemos - dito por quem de direito - que a licenciatura de Sócrates não é o maior problema do país. Estamos ainda para saber se não é o maior problema do primeiro-ministro. Entretanto, o Governo e os seus procuradores tentam, sem excessos de subtileza, convencer-nos de que pode tornar-se um problema sério... para quem tiver o atrevimento de falar sobre o tema. É verdade que ainda não chegámos à Rússia de Putin, e que continua a ser geralmente seguro beber em restaurantes. Presumo, portanto, que ninguém arrisque mais martírio do que o de um telefonema zangado.
De resto, a campanha oficial e oficiosa contra o "golpe de Estado através da imprensa", indistintamente atribuído à vingança de um "grupo económico" ou a mais uma conspiração da "direita radical", esclareceu as regras do jogo: prosas a duvidar da mais célebre licenciatura de Portugal garantem pelo menos uma ficha de "vendido" ou "fascista".
Felizmente, não corro esse risco, porque o objectivo deste texto é dar razão ao Governo. Em tudo. Primeiro, no que diz respeito à conspiração.
Há, de facto, uma conspiração contra Sócrates. Lembro-me perfeitamente de quando começou: no dia 25 de Abril de 1974, faz hoje 33 anos. Foi nesse dia que os membros do Governo em Portugal deixaram de estar devidamente calafetados contra o "jornalismo de sarjeta" e as "campanhas orquestradas". Foi também por esses tempos que se começou a notar uma certa irreverência no modo como os cidadãos se referiam em público aos dirigentes do Estado. Para facilitar ainda mais a vida aos conspiradores, os portugueses cometeram o erro de preferir uma "democracia formal", e portanto pluralista e aberta à controvérsia. Resultado: nunca mais se pôde trabalhar em paz no governo deste país. Como todos sabem, a situação tem-se agravado. Nos piores momentos, dir-se-ia que estamos em Inglaterra ou na América. Sim, a conspiração contra Sócrates tem um nome: chama-se democracia.
Terá ele percebido isso? A prometida "regulação" do jornalismo e a descida dos seus homens, em missão "ideológica", até às empresas de comunicação social provam que percebeu. Há quem considere que Sócrates deveria ter-se conservado acima de tudo isto. De facto, ninguém lhe contestou legitimidade para governar, e nenhum outro poder (Presidente, Parlamento, tribunais) o incomoda. Mas toda a gente admite que a sua "imagem" saiu amarrotada. E só isto justifica a reacção de Sócrates.
Ele compreendeu aquilo que a maioria dos seus críticos ainda não percebeu: que o seu é um Governo de Cinderela, que não foi feito para resistir a demasiadas badaladas.
Cavaco Silva em 1985 e Guterres em 1995 surgiram com fórmulas mais ou menos novas, e perante uma economia a crescer. Passaram assim por cima das primeiras gafes e escândalos. Em 2005, Sócrates trouxe velhas "paixões" para enfrentar uma ruína. Não era um líder popular, nem a sua eleição correspondeu a uma vaga de entusiasmo. Venceu Alegre e depois Santana, porque teria sido preciso génio para falhar contra Alegre e Santana.
Os votos que lhe deram a maioria absoluta (2,5 milhões) poucos mais eram do que os que, em 1999, não deram uma maioria absoluta a Guterres (2,4 milhões). A partir dessa base, Sócrates perdeu tudo o que havia de importante para perder. Perdeu as autárquicas e os principais municípios - com 1.930.191 votos, quase o mesmo resultado (1.918.359) que, em 2001, fez Guterres desistir. E perdeu as presidenciais, com um candidato que arranjou a pior votação de todos os candidatos apoiados por governos desde 1976. Com certa habilidade, passou a viver de um equilíbrio fundamental: por um lado, deu ao PS o pasto das administrações do Estado e das empresas públicas, feitas para sossegar animais ruminantes, e ainda ofereceu às esquerdas, com a nacionalização dos abortos, uma viagem de saudade até 1911; por outro lado, satisfez as teorias daqueles que, à direita, estão convencidos de que nada como músculos de esquerda para meter na ordem funcionários e pensionistas.
Quanto tempo pode durar este ajuste? O Presidente, como lhe compete, coopera. E o eleitorado? Que acontecerá em 2009 se o país prolongar o maior período de divergência com a Europa desde há 60 anos? E se o PSD, por distracção, elege alguém com bom aspecto? Sócrates não está condenado. Mas está mais vulnerável do que a rotina dos comentários tem reconhecido.
O Governo sabe que a série de badaladas para a meia-noite pode começar assim, com os percalços de uma licenciatura. Quando os pajens voltarem a ser ratos e a carruagem uma abóbora, desta Cinderela talvez nem fique o sapatinho."

in Público, 25.4.07 (edit meu), foto: "gentileza" We have caos in the garden

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