4.6.04

RECORDANDO JOSÉ RABAÇA, O EANISMO E MÁRIO SOARES

1. Referindo-se, salvo erro, a José Augusto França, Eduardo Lourenço, terminava um escrito dizendo qualquer coisa como isto: "tinha, tínhamos então vinte anos, tudo era possível e isso desculpa tudo". Eu também tinha vinte anos, ou menos, e também julgava que tudo era possível. Nos jornais, acompanhava regularmente alguns "cronistas". Francisco Sousa Tavares, o irreverente director de A Capital , era um eleito. A pouco e pouco, porém, fui descobrindo igualmente o José Rabaça. Nessa altura, Rabaça discorria fundamentalmente em defesa do Presidente da República, Ramalho Eanes, e abria definitivamente a via da ruptura com o seu partido, o PS. O PS, o primeiro partido nacional em votos, depois de duas experiências governativas, uma a solo, a outra, com um "acordo de incidência parlamentar" com o CDS (o genuíno, naturalmente), foi apeado por Eanes, seguindo-se um "interlúdio" de governação dita "de inspiração presidencial". Criaturas dos partidos (PS, PSD e CDS) e homens "independentes", face à "instabilidade" e à "incoerência" do "sistema" (leia-se: dos partidos "deles" e do Parlamento), começaram a ver em Eanes uma boa alternativa. Os apelos a uma maior intervenção presidencial sucediam-se, e acenava-se, ora com a possibilidade de um "novo partido" em torno do presidente, ora com a liderança institucional deste à frente de uma "maioria presidencial". Nada disto, obviamente, incluia o PS, pelo menos o PS de Mário Soares. Sá Carneiro, a dado passo, "desistiu" de Eanes e avançou sozinho. O resultado é conhecido. A sua AD triunfou, apesar do presidente e apesar de Mário Soares. Eu tinha-me ligado entretanto à mais famosa dissidência de "direita" do PS, o movimento reformador de António Barreto e de Medeiros Ferreira. Mais uma vez, era por causa de Eanes que se traçara aquela fractura. Nós éramos, como se dizia, "eanistas". Sá Carneiro fez um acordo com os "reformadores" e alguns destes integraram as listas da AD. O ambiente político, em 1980, era de chumbo e atingiu o paroxismo com as eleições presidenciais do final do ano. Os "reformadores" separaram-se da AD e separaram-se entre si. Uns acompanharam o candidato da AD, outros seguiram Eanes na recandidatura. As prosas de José Rabaça, em prol do presidente-candidato, entusiasmaram-me. Andei pela CNARPE (a comissão de apoio a Eanes)e aí conheci o mais dedicado defensor do "nosso" homem. Tudo se precipitou. Soares não gostou do elogio do presidente ao modelo da AD, de novo vitoriosa, nas eleições de Outubro, e largou, num mesmo gesto, a CNARPE e o PS. Tragicamente- parecia que não podia ser de outra maneira- Sá Carneiro desapareceu nas vésperas das eleições que reconfirmaram Eanes. Soares prepara-se, então, para no ano seguinte reconquistar o PS. O seu instinto dizia-lhe que a seguir viria, de novo, o País. Estava certo.

2. No estertor da AD de Balsemão e durante o "bloco central" que se seguiu, a "linha" favorável à emergência do "partido eanista" manifestava-se como podia. Comemorava-se a CNARPE em almoços sibilinos (onde eu estive), criticava-se o "sistema" e apelava-se ao presidente. Contudo, Soares e Balsemão, em 1982, liquidaram, na revisão constitucional, quaisquer veleidades "presidencialistas". Os "eanistas" estremeceram e houve quem sugerisse um "apelo" do General directamente ao "povo". Eanes hesitou em dar o passo. Falhada a "via institucional", os seus mais próximos avançaram para o "movimento". Foi nesse ano que, ao defender o aparecimento de uma nova força política referenciada em Eanes, que José Rabaça é expulso do PS, onde era o militante n º 100. Sem nunca ter deixado de admirar determinadas características do presidente, do homem e do militar, com o passar dos anos eu percebi que aquele "espírito da CNARPE" não ia a lado nenhum e que, em certo sentido, era bom que não fosse. Em Maio de 1983 filiei-me no PSD e, dois anos depois, apoiei a candidatura de Mário Soares. Jamais acompanhei as aventuras do PRD. Lembro-me de ter visitado o General Eanes no Palácio das Laranjeiras, onde tinha o seu gabinete como antigo presidente. Nos dias seguintes ele ia assumir a presidência do partido, pressentindo o inevitável declínio. Disse-me que "tinha que ser" porque a tal se tinha comprometido. Para trás tinham ficado os miríficos 18% de 1985, o confronto com Soares nas presidenciais através da candidatura Zenha e o surgimento de um novo político "anti-sistema" cujos créditos lhe viriam a dar as únicas maiorias absolutas até hoje conquistadas por um partido político, Cavaco Silva. Em todos estes combates, Rabaça esteve na primeira linha, sempre ao lado de Ramalho Eanes. E sempre, sempre, contra Mário Soares.

3. Passaram vinte e tal anos. O "eanismo" produziu um conjunto de laços entre determinadas pessoas que dificilmente se desfizeram. O livro de homenagem a José Rabaça, que reúne mais de cem contributos, é, se quisermos, o epílogo dessa aventura. Lendo-o, percebe-se que o "eanismo", em boa verdade, foi um "não pensamento político", difuso, errático e inorgânico, e sempre "acima dos partidos". O erro dos "estrategas" do "eanismo, primeiro, e do PRD e da candidatura Zenha, depois, foi a obsessão na eliminação política de Mário Soares, com base em dicotomias de efeito fácil, mas precário, em nome da "pureza", da "verticalidade" e da "honestidade". Acontece que a política, feliz ou infelizmente, não se compadece com bons sentimentos e, em democracia, faz-se com os partidos, ora punindo-os, ora elegendo-os. De mansinho, os portugueses foram confundido- e bem - a democracia e a liberdade com o nome de Mário Soares. Aliás, Soares é o grande "presente-ausente" deste livro, como sempre acontece nestas coisas. Por isso mesmo, e do lado da "política", o livro espelha a confissão indirecta de uma imensa derrota.

4. Dito isto, fica o muito que é o homem José Rabaça que eu conheci. O marido da Dona Maria Helena, o pai da Manel e da Ginha, o avõ da Joana e o bisavô da Maria e do Pedro. O Rogério Alves foi "adoptado" posteriormente, ao casar com a Joana, e é dos poucos amigos que ficaram desses remotos vinte anos. A família Rabaça tem um jeito particular para lidar com os afectos e com a amizade. José Rabaça- sente-se isso nos testemunhos mais "intimistas" do livro- era o centro motor dessa generosidade sem limites que contagiou os seus mais próximos. São amigos sem desfalecimentos, um bem já raro e muito precioso.

5. Estes meus vinte a tal anos estão pejados de encontros e de desencontros irremediáveis com amigos, inimigos e "íntimos". Ficou sempre e apenas, um conjunto de acasos felizes e uma infinita frigidez "social" minha que progressivamente me tem tornado mais amargo e mais cínico, afastando-me profilaticamente dos outros. Finalmente a vida demonstrou-me que, afinal, "nem tudo era possível" e que "nem tudo se desculpa". Nem que fosse por isto, a imagem feliz do José Rabaça, prolongada na mulher, na Manel, na Joana e no Rogério, na Maria e no Pedro, sempre me vai ensinando a praticar, de vez em quando, um ritual com que eu decididamente não estou muito familiarizado. O da amizade.

(Recordando José Rabaça, 1926-1998, organização de Maria Manuel Rabaça, com prefácio de António Ramalho Eanes, Edeline Multimedia, 2004)

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