10.12.10

DO AFFAIR ASSANGE INTERESSA-ME O SUBLINHADO ACERCA DO NOSSO PROVINCIALISMO


«A Wikileaks é uma organização política, com escreveu Pacheco Pereira, e não jornalística, mas trabalha na comunicação social e tem relações especiais com cinco dos melhores jornais do mundo. A sua política é esta: mudar o mundo pela comunicação e não pela revolução. Além de segredos militares e diplomáticos dos EUA — principal alvo das “wiki-fugas” de informação —, a organização já tornou públicos documentos sobre membros de um partido racista britânico, a descarga de lixo tóxico na costa africana e corrupção empresarial, entre outros pacotes de informação. Na Islândia, a Wikileaks foi consultora do parlamento na criação de legislação que transforma o país num paraíso da liberdade de imprensa. A legislação foi aprovada por unanimidade parlamentar em Junho. Na origem da decisão extraordinária da Islândia esteve a sua crise financeira, que se deveu em parte ao secretismo em negócios de bancos. Os telegramas diplomáticos ultimamente anunciados pela Wikileaks serão, muitos deles, irrelevantes enquanto material jornalístico ou de interesse público, como aquele em que um diplomata dos EUA “explica” que Putin e Medvedev são como Batman e Robin; o “fait divers” apenas sugere que o diplomata estaria mais bem colocado na Disneyland, a fazer de Pateta. Mas alguns telegramas são de interesse público, sobre inúmeros países e regimes, como o que respeitante ao envolvimento de dirigentes no narcotráfico ou sobre o pedido de autorização para voos da CIA em território português. Nem todos os telegramas causam danos. Pelo contrário. Em Portugal, o ministro Amado pôde credibilizar a inocência do governo no caso dos voos da CIA; uma fonte do Kremlin não viu nada de mal na informação saída da Rússia. No PÚBLICO, Teresa de Sousa escreveu que os telegramas revelam que o governo dos EUA “prossegue o seu objectivo legítimo de manter a liderança americana de uma forma equilibrada, pensando no interesse americano numa perspectiva global”. Haverá maior elogio à superpotência? Enquanto organização agregadora de informação e não-jornalística, não cabe à Wikileaks seleccionar o material obtido. Se o fizesse, cairia no mesmo erro de secretismo e falta de transparência que condena nos poderes políticos e militares. Por demissão, desinteresse ou acomodação, o jornalismo tem desleixado o tipo de investigação que a Wikileaks faz. Cabe agora aos jornalistas o papel secundário de extrair dos documentos material de interesse jornalístico. Os serviços secretos ocidentais não descobriram razões políticas para que os alvos principais da Wikileaks tenham sido, até agora, os EUA e o velho Ocidente, mas a história ensina que a hipótese é valida. Alguns ex-colaboradores do site mencionaram essa obsessão. Mas, se as “wiki-fugas” prejudicam os sistemas de poder democráticos, o que, por tabela, favorece os mais fechados ou ditatoriais, não se pode condenar a revelação de documentos relevantes na esfera pública pelo facto de não haver segredos russos ou chineses na Internet. Os recentes ataques à Wikileaks por parte do sistema político-militar-financeiro americano, incluindo ameaças de assassínio, são do mais brutal contra a liberdade de expressão que ocorrem desde a 2ª Guerra Mundial no mundo democrático e constituem mais um alerta sobre o que esperar contra a liberdade nos países livres. Acresce que os EUA, como afirmou o ministro australiano dos Negócios Estrangeiros, são responsáveis pelas suas fugas de informação. Os seus sistemas de segurança revelaram-se demasiado frágeis e talvez mesmo criminosamente displicentes, se se confirmar que todos os documentos estavam reunidos no mesmo local e acessíveis para cópia por um soldado. O jornalismo deve reconhecer-se na missão da Wikileaks de investigar e dar a conhecer erros e até crimes dos poderes. Por causa dessa tarefa, por vezes corajosa e generosa, morrem por ano dezenas de jornalistas em todo o mundo. Como é possível jornalistas e comentadores portugueses atacarem a divulgação de documentos de interesse público? Até arrepia ler e ouvir alguns deles, super liberais ou de “esquerda” (porém “moderada”), condenando a divulgação de documentos pela Wikileaks e assumindo a mesma posição do poder político e militar americano.»


Eduardo Cintra Torres, Público


Adenda (de Eduardo Cintra Torres, recebido por mail):«Não mencionei no meu artigo eventuais danos causados pela Wikileaks ao divulgar "o que não devia" por uma razão simples: ainda não aconteceu. Os EUA, como lhes compete, exageram ao invocarem esse perigo para aumentarem a aura negativa da Wikileaks. A lista dos edifícios importantes parece-me um caso desses. Qualquer organização anti-americana interessada conheceria ou facilmente faria a lista daqueles edifícios. Além disso, os terroristas têm atacado edifícios que não vêm em lista nenhuma, como as Torres Gémeas e hotéis "ocidentais" em diversas partes do mundo. Nada os detém quando querem causar o mal.»

8 comentários:

João Gante disse...

Não deixa de ser criticável a obsessão pelos Estados Unidos e demais Ocidente por parte da WikiLeaks. Como não deixa de ser criminoso divulgar empresas críticas para os EUA em caso de guerra e até os fait-divers que, se não têm grande repercussão junto de sociedades desenvolvidas, já caem pior nos fundamentalistas do costume. O resto, os crimes de guerra, narcotráfico e demais, admito a sua relevância.

Discordo de Eduardo Cintra Torres no absolutismo com que vê a liberdade de imprensa. Tal como com o conceito geral, ela deve acabar onde começa a do outro. No bom informador está a capacidade de descobrir onde está verdadeiramente essa fronteira, não a de a ignorar a todos os momentos. Para ser algo mais que uma mente simples, Assange tinha de ter a primeira capacidade, em vez de ostentar a segunda constantemente e perceber algo que não é muito difícil para um adulto: o ser humano não sobrevive sem segredos. E as sociedades, como eco de muitos seres humanos, precisam de construir realidades. Não defendo a total hipocrisia de um estado, mas muito menos sonho com um Mundo de verdades a cada esquina.

Tiago disse...

Excelente texto.

Podem discordar ou não da importância do que é afirmado pela wiki leaks, e da sua responsabilidade ou falta dela. A liberdade de expressão não exclui a irresponsabilidade. O problema é que muitas pessoas não são favoráveis à liberdade de expressão, tal como o comentário acima. São favoráveis ao controlo e limite da expressão. Definem a liberdade de expressão de um ponto de vista qualitativo. Se não corresponder aos parâmetros de qualidade por eles defendidos, consideram um abuso. Pois em liberdade de expressão, os abusos têm que ser defendidos - não o conteúdo em si, mas a liberdade de o poder afirmar.

"O ser humano não sobrevive sem segredos." Mas também o ser humano não sobrevive sem os contar. Imagine a quantidade de pessoas que deveriam ser presas por contar segredos de outras pessoas.

João Gante disse...

O Tiago, antes de colar etiquetas, é que talvez devesse mudar a sua capacidade de análise de um ponto de vista qualitativo. Não me faltam casos para contar em que me vi a defender jornais e televisões da depredação governamental e nem por isso desatei a catalogar os outros de serem contra a liberdade.

Você acha que um abuso é-o e pronto. Eu acho que um abuso que demonstra que um político é traficante de droga é relevante. Outro que refira quais as empresas que, se destruídas, colocam um país e seus habitantes em maior situação de fragilidade, já me parece que coloca demasiado em jogo. Está a ver a diferença - qualitativa? A existência de critérios?

Dito isto, já farta esse relativismo do "liberdade é dizer tudo e aí reside o meu ideal de sociedade". Quando é que deitámos fora a capacidade e os critérios de análise?

PS: Pode crer que sou a favor da prisão do senhor da WikiLeaks. Única e exclusivamente por causa da divulgação das infra-estruturas críticas. Vá, agora diga lá que sou o Patriot Act em pessoa...

Anónimo disse...

Caro João, a sua resposta confirmou ainda mais o que eu disse. E eu não pretendi de maneira nenhuma ofende-lo.

Mas ao submeter a liberdade expressão a critérios subjectivos (tal como consequências, validade, importância, etc...), está a controlá-la e necessariamente a limitá-la. Por isso você é contra a liberdade de expressão, por muito que lhe custe a admitir.

Muitas pessoas incitam à guerra, o que resulta na morte de milhares de inocentes. Mas aí ninguém fala de abusos da liberdade de expressão. Ai já se fala em "políticas". Pode-me dizer a diferença? A diferença dos que apoiam a invasão de um país e daqueles que denunciam lugares secretos dum país? Qual coloca, e cito, "um país e seus habitantes em maior situação de fragilidade"? Segundo a sua teoria, muitos políticos, (como por exemplo Durão Barroso) deviam estar presos por abuso do direito de expressão. Dito assim parece ridículo, mas é o mesmo argumento.

Essa histeria da segurança é mais areia para os olhos que outra coisa, e que os políticos agradecem. O medo dá sempre a volta à razão.

Não sei se voce é o patriot act em pessoa, mas que é a mentalidade comum dos opinadores lá isso é...

Anónimo disse...

"Mas ao submeter a liberdade expressão a critérios subjectivos (tal como consequências, validade, importância, etc...), está a controlá-la e necessariamente a limitá-la.

Sim.

"Por isso você é contra a liberdade de expressão, por muito que lhe custe a admitir."

Não. Só uma parte. O grau é importante, é crucial.
Você é Democrata? E está de acordo com a existência de uma Constituição? Sim? Então posso dizer:está contra a Democracia se também é Republicano?
A Constituição não limita a Democracia?
Limita. O grau é o ponto crucial.
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História:
O Governo Inglês tinha de decidir quem morria dos seus na Segunda Grande Guerra. Após descobrir como quebrar o Enigma Alemão não podia responder a todos ataques pois isso faria suspeitar os Alemães. Logo milhares de ingleses, civis e militares morreram com o conhecimento do Governo. Deveria ter aberto uma discussão publica?
Ou seja os resultados contam. Não é só o processo.
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A última comentário de Cintra Torres é pobre. O que acontcerá por causa disto só se saberá no futuro e não será possível saber tudo positivo e negativo que venha disto.

Agora quero ver as pessoas que defendem a wikileaks cegamente a defender a inexistência de segredos e a passagem de uma lei na Assembleia da Republica para tal.
A não ser que isto tenha sido só um voyeurismo para um big brother diplomático.

lucklucky

João Gante disse...

É de esperar medo da subjectividade de quem vê os actos pela rama. Obviamente, você acha que é subjectivo considerar uma opinião ou análise como bem ou mal formada. Uma opinião é uma opinião e para si têm todas igual valor. Não existe fraco julgamento porque você se priva de julgamento algum.

Não existem critérios nem valores porque, deixe-me adivinhar, esses derivariam da nossa hipócrita e inchada sociedade, à qual nada devemos.

Claro, as minhas preocupações com segurança só podem ser alarmistas porque quem refere segurança troca seguramente toda a sua liberdade por ela.

O importante aqui não é se amanhã vai morrer alguém num ataque terrorista. A única coisa que me interessa é que, algures, alguém viu um documento chamado "Infra-estruturas Críticas" e o publicou deliberadamente. Ou então ignorou que algo perigoso pudesse estar estar entre documentos retirados do governo dos EUA...

Esse paralelismo com Durão Barroso deve ser para rir...permita-me que o ignore a bem da qualidade da discussão. E porque ele deu razões - verdadeiras - de sobra para não voltar a ter o meu respeito.

Tiago disse...

A analogia do lucklucky com a democracia não tem sentido. Todas as formas de governo têm em si, limitações inerentes à sua natureza ou circunstâncias. E existem graus no conceito da democracia que para mim não existem no conceito de liberdade de expressão. Quando se discutem graus, entra-se no campo da regulação e limitação da expressão individual. Uma forma de governo é já por si regulada e limitada.

E joão, eu tenho medo da subjectividade quando ela interfere com liberdades individuais. De resto não tenho qualquer problema. E o meu aparente relativismo não impede a existência de critérios ou valores.

Você pode afirmar que a Wiki Leaks é irresponsável e inútil, mas quando afirma que os seus elementos devem ser presos, aí já entra por um caminho que não concordo.

E o paralelo com o Durão Barroso foi para mostrar que políticos fazem afirmações, muitas vezes baseadas em informação roubada de outros países, tal como foi o caso, através da fantástica diplomacia que muita gente defende agora, e que têm consequências muito mais nefastas que a wiki leaks alguma vez irá ter. Não está em causa o carácter político do Durão Barroso, apenas o uso de dois pesos e duas medidas para situações idênticas, em que só mudam os protagonistas.

É curioso que os defensores da diplomacia actual, estejam a criticar métodos que são usados pela própria diplomacia.

Anónimo disse...

"existem graus no conceito da democracia que para mim não existem no conceito de liberdade de expressão."

Ora aí está.
Também há coisas em que sou absolutista e outras que não.
Agora quando você diz que eu sou contra a Liberdade de Expressão está dizê-lo a alguém que na maioria dos casos estaria contra o seu limite.


lucklucky