17.5.05

O JOVEM CULTO II

Prossegue, no Diário de Notícias, o texto de Manuel de Lucena sobre Hitler, O Jovem Culto. A primeira parte está aqui.


"No pólo oposto ao de Heiden e Domenach está Kimberley Cornish, filósofo australiano descendente de ingleses, alemães e judeus, que em 1998 publicou um livro algo estranho, The Jew of Linz (Londres, Century Books) cujo subtítulo esclarece tratar-se de uma digressão sobre "Wittgenstein, Hitler e a sua secreta batalha pelo espírito". Nem menos. Batalha pelo espírito ou pela mente o original reza mind. Na exposição seguinte usarei a tradu- ção francesa (Wittgenstein contre Hitler, Paris PUF), que, saída no mesmo ano, corrige erros do texto original, reordena os seus capítulos e acrescenta um interessante prefácio do autor. É um livro com duas dimensões:

a) Uma, filosófica, aborda precisamente o problema da natureza do espírito (ou da mente). De acordo com Cornish, Hitler coincide com Wittgenstein quando este nega que cada pessoa tenha o seu espírito e que haja tantos espíritos quantas as pessoas (um comentador chama a isto "teoria da não-propriedade privada do espírito"), mas afasta-se dele quando nega que o espírito seja universal, comum a todos os homens, afirmando muito pelo contrário a existência de um espírito ariano, exclusivo da "boa raça". O filósofo australiano não pretende que Hitler tenha chegado a esta concepção por razões essencialmente intelectuais ou que "fosse capaz de a defender num seminário em Cambridge"; e antes pensa que ele "simplesmente partilhou a visão mística" de Ludwig Wittgenstein, à qual este "só mais tarde deu revestimento lógico". Mas nem por isso deixa de filiar o pensamento de ambos em Schopenhauer, cuja filosofia muito frequentada terá sido pelo jovem Adolf; e censura quem ao considerar o nazismo se recusa a reconhecer-lhe profundidade filosófica.

b) Histórica, a outra dimensão assenta no facto - desconhecido até 1987 - de Hitler e Wittgenstein terem sido contemporâneos na Realschule de Linz, estabelecimento de ensino secundário; e explora a hipótese de eles aí se terem enfrentado num conflito ao qual o Mein Kampf faz alusão e que os terá marcado para sempre. Não havendo nenhuma positiva notícia de que os dois rapazes, que não frequentavam o mesmo ano, se deram realmente um com o outro (há uma fotografia colegial onde surgem juntos, mas, nela, a identidade de W., muito provável, não é absolutamente evidente), Cornish acha todavia inverosímil que "duas personalidades tão dominadoras", dois tamanhos "prodígios da linguagem" - um teórico dela por excelência e o outro grande mestre da sua prática - tenham andado na mesma escola, ao mesmo tempo, sem se tocarem. E, não se conformando com esta ideia põe-se a investigar minuciosamente a passagem de ambos por Linz, bem como a inserção da poderosa família Wittgenstein nos círculos económicos, políticos e culturais, austríacos e não só; e, ainda, as relações que com essa família Hitler e a sua terão estabelecido. Chegando a extraordinárias conclusões. Por um lado, a de que o ódio de Hitler pelos judeus, além de precoce e não tardio como pretendem conceituados historiadores, foi de origem muito pessoal, fruto do seu recontro com W. e com a família deste Karl Meier-Wittgenstein, pai de Ludwig, grande industrial e mecenas, apoiou pintores da Secessão vienense, aos quais Hitler se opunha, e protegeu músicos judeus (e não judeus, como Brahms) inimigos do seu amado Wagner; para já não falarmos da possibilidade, mais vaga, de uma avó de Hitler ter ficado grávida de um príncipe Sayn-Wittgenstein em cujo palácio serviu... (os Meier- -W. também gostavam de passar por príncipes mas não eram). À luz de tudo isto, Cornish, concordando com quem diz que "sem Hitler não teria havido Holocausto", julga que "sem os Wittgenstein não teria havido Hitler". E não é tudo. Por outro lado, a de que sem Hitler não teria havido um certo Wittgenstein, tão influenciado pelo futuro Führer quanto este o foi por ele um Wittgenstein anti-hitleriano e militante comunista, que terá contribuído decisivamente para a derrota nazi na Segunda Guerra Mundial, fornecendo ao Exército Vermelho "as técnicas de decifração de cifras e códigos alemães que possibilitaram as vitórias russas na frente leste". Portanto, Wittgenstein acabou por vencer, salvando in extremis muitos milhares de membros de um povo para cuja desgraça involuntariamente contribuíra e do qual não julgara aliás fazer parte, sendo judeu de raça mas não de religião. Claro que o nosso australiano se congratula com essa acção salvífica; mas também julga ter descoberto que a militância de Ludwig, "estalinista puro e duro", o levou a servir a União Soviética à custa da Inglaterra, sua pátria de adopção, por ele traída quando recrutou Kim Philby e os outros espiões do círculo de Cambridge. No termo de uma minuciosa análise das actividades de W. em Cambridge, Cornish é obrigado a confessar que não obteve provas cabais disto mas tão-só múltiplos indícios que fazem do filósofo o mais verosímil suspeito do dito recrutamento, feito quase com certeza por alguém pertencente aos meios académicos por ele frequentados, sobre os quais exercia uma influência intelectual e política maior. Mais longe do que isto não consegue Cornish ir.Característica geral do seu método é acumular indícios que sozinhos pouco ou nada provam - e sobre os quais ele se lança, cheio de wishful thinkings que não tenta disfarçar - mas que tomados no seu conjunto se tornam impressionantes, compondo uma História que parece ora tentadora ora delirante. Não tenho aqui de escolher entre a sedução e a repulsa, porque, quanto ao meu assunto, as análises de Cornish, não demonstrando embora que o pensamento do Führer foi tão profundo como o pinta, bastam para vermos que esteve precoce e seriamente ligado aos debates fundamentais do seu tempo; e para pressentirmos que não foi por acaso que um Heidegger julgou poder servir-se do nazismo.Como veremos para a semana, os mais famosos biógrafos do Führer contam-nos coisas que rimam com este pressentimento, embora o não façam seu."

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