Para quem não saiba, a França - e algum "mundo" intelectualmente vivo e sério - prepara-se para comemorar os cem anos de Jean-Paul Sartre. Os franceses não costumam brincar nestas coisas e levam a sério a memória dos seus maiores. Foi assim, por exemplo, com Malraux em 1996. Havia Malraux por todo o lado, nas ruas, nas livrarias e no metro de Paris nesse Novembro frio. Chirac colocou-o no Panteão. Em Junho chega a vez de Sartre. Eu embirro profundamente com a deriva estalinista do homem e com o seu esquerdismo tantas vezes insuportável. A sua figura também não era propriamente do mais agradável à vista. Nada disto porém me importa perante a grandeza da sua obra e perante o deslumbramento em que consiste a sua escrita. De longe, prefiro a sua ensaística - filosófica e literário-filosófica ao resto - a que junto esse livrinho extraordinário que é Les Mots. Estou curioso para ver o que é que os nossos jovens escribas "liberais" e outra intectualidade "orgânica" da direita e da esquerda irão escrever acerca de Sartre. Para já, Eduardo Prado Coelho, no Público, dedicou dois "fios do horizonte" a Sartre. Com a amigável vénia, e para que se não percam na voragem virtual do site do jornal, aqui os deixo, antecipando de alguma forma o mais que seguramente me apetecerá escrever ou colocar no blogue sobre Sartre até Junho.
O intelectual dos intelectuais (1)
por Eduardo Prado Coelho
Estava na praia, em São Martinho do Porto. Tinha 16 ou 17 anos. Todas as manhãs chegava ao café por volta das nove e meia, com jornais e um livro. Alguns desses livros eram volumosos. Por exemplo, O Ser e o Nada e, mais tarde, a Crítica da Razão Dialéctica, ambos de Sartre. Antes de ir para praia por volta do meio-dia, lia páginas sucessivas, procurando compreender, o que nem sempre era fácil.Mais tarde, a Europa-América convidou-me a traduzir um dos livros de ensaios, Situações. O que fiz com o prazer de descobrir uma escrita vertiginosa, um sentido da estética da linguagem, embora Sartre visasse mais a transmissão da mensagem do que o prazer do significante. Mas Situações vinha-me explicar que um escritor está sempre no meio da história, confrontado com o conflito essencial da sua época: para ele, a oposição entre socialismo (que em dada altura desastradamente identificou com a URSS) e capitalismo (fundamentalmente, os EUA). Sartre escreve admiravelmente, mas não é com a escrita que se preocupa. Um famoso debate perguntava: "Que é a literatura?" E acima de tudo nós íamos aqui encontrar uma dessas noções que tiveram a sua época: o compromisso - ou, se preferirem, l"engagement. Mais do que o homem da liberdade, o homem em que o para-si fazia sentido libertando-se do em-si, Sartre foi para nós, envolvidos na ideia de esquerda, o homem do compromisso. E nesse sentido foi o intelectual - ou melhor, o intelectual dos intelectuais. O modo siderante como argumentava (e as suas polémicas com Camus, Merleau-Ponty, Aron, ficaram famosas) parecia não ter equivalente. Os livros de filosofia que escrevia pareciam totalizar a cultura e história do seu tempo. A política era nele uma paixão permanente. Nas manhãs de praia, ouvindo o ruído das ondas, tinha a sensação de que ele pensara tudo e de que ele dera um sentido a tudo.Depois, vieram os tempos das estruturas, isto é, aqueles em que o sujeito não imaginava os possíveis da história, mas aparecia como um efeito de superfície de um processo obscuro em que as marcas do sentido iam operando como se fossem máquinas. Não se falava em sujeitos que desejam, mas em máquinas desejantes. Até que um dia Derrida escreveu sobre Sartre em Les Temps Modernes. E antes Deleuze tinha escrito sobre ele. Michel Foucault tinha declarado numa entrevista de 66 a Madeleine Chapsal: "Fizemos a experiência da geração de Sartre como sendo uma geração certamente corajosa e generosa, que tinha a paixão da vida, da política, da existência. Mas para nós descobrimos outra coisa, uma outra paixão: a paixão do conceito e do que eu chamaria "o sistema"."O que é interessante, e resume a segunda metade do século XX, é que Sartre e Deleuze, e ainda Foucault e por fim Derrida pareçam hoje encontrar-se na figura do intelectual. Mas Sartre foi certamente o intelectual dos intelectuais.
Sartre (2)
Gilles Deleuze escreveu nos seus "Dialogues" com Claire Parnet: "Na Libertação permanecíamos bizarramente apanhados na história da filosofia. Simplesmente entrava-se através de Hegel, de Husserl e de Heidegger. Precipitávamo-nos como cães enraivecidos numa escolástica pior do que a da Idade Média. Felizmente havia Sartre. Sartre era o nosso Exterior, era verdadeiramente a corrente de ar do pátio (e era pouco importante saber precisamente quais eram as suas relações com Heidegger do ponto de vista de uma história por vir). Entre todas as possibilidades da Sorbonne, era ele a combinação única que nos dava a força para suportar a nova ordem restabelecida. E Sartre nunca deixou de ser, não um modelo, um método ou um exemplo, mas um pouco de ar puro, uma corrente de ar que o acompanhava quando vinha do Flore, um intelectual que mudou singularmente a situação do intelectual. É estúpido perguntarmos se Sartre é o princípio ou o fim de alguma coisa. Como todas as coisas e pessoas criadoras, ele está no meio, cresce pelo meio."Aqueles que viram o filme que passou no Instituto Franco-Português e também, numa versão diferente, na Fundação Calouste Gulbenkian (com salas à cunha, o que prova que Sartre não está esquecido) terão visto sobretudo quartos despojados, como se Sartre fosse um monge com a Plêiade ao fundo. Quase não havia livros. Uma secretária simples, reduzida a uma tábua de madeira, um divã austero, uma forma reduzida e displicente de vestir. Sartre vai à rua e procura comprar jornais, seja qual for. Percebe-se que é um fanático da informação - e isto num tempo em que apenas havia rádio, e se aguardava por esse magia insólita que é a televisão. Estava longe de ser bonito ou sedutor. E contudo ele foi um desses homens rodeados de mulheres, a começar pela "sartreuse", como se poderia chamar marialvamente a Simone de Beauvoir. Esta tinha um pensamento duro, e uma escrita rude e sem recortes. Mas ela e Sartre constituíram um desses casais míticos do século XX. Cada um tinha amantes, e, no caso de Simone, havia homens e mulheres. É famoso o seu caso com o romancista americano Nelson Algren (com quem amainou o seu feminismo e teve mesmo atitudes de inesperada condescendência). Às vezes Sartre e Simone trocavam amantes. Mas tiveram um princípio que suscitou o espanto e admiração de várias gerações: defenderam uma relação fundada numa transparência absoluta. Porque não há em Sartre espaço para o inconsciente. Num dos seus textos, com dimensão autobiográfica, Sartre escreveu: "As nossas relações pareciam superiores em valor, em carácter essencial, a todas as que eu tinha tido com outros homens e outras mulheres, na mesma época. É claro que era machista, mas, quando encontrei Simone de Beauvoir, tive a impressão de ter as melhores relações que se pode ter com alguém. As relações mais completas. Não falo da vida sexual e da vida íntima. Falo também da conversa ou da discussão a propósito de uma decisão importante da vida."
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