6.11.04

A NOIVA DO PIRATA



Este post apresenta um livro. Um livro que reúne algumas das crónicas que Eduardo Prado Coelho escreveu no Público. Nem sempre tenho pachorra para ler o que o Eduardo escreve. No entanto, normalmente gosto dos textos em que evoca pessoas ou situações. Ele chama-lhe o "lado de fora de um diário, suspenso dos acontecimentos públicos". "Crónicas no Fio do Horizonte" (Edições ASA) é essa selecção bastante equilibrada e tanto quanto possível "intemporal" de algumas dessa crónicas. Deixo aqui uma que me agrada particularmente e que me recorda melhores tempos nestes tempos em que não há nada que fique para recordar.
A NOIVA DO PIRATA
Entro nesse lugar mítico de Saint-Germain que é o café Les Deux Magots e, depois de passar a demorada porta giratória, volto-me para a esquerda e dirijo-me até à mesa do fundo, não a da janela, espera, mas a outra ao lado, debaixo do enorme espelho empalidecido pelos muitos rostos que nele desapareceram um dia. Debaixo do espelho, uma fotografia onde se vê o espelho em que neste momento me vejo, e à frente dele, com um livro aberto sobre a mesa, absorta na leitura, está ela, está o retrato de Simone du Beauvoir. E assim eu sei que ao sentar-me nesta mesa, exactamente a mesma, estarei exactamente naquele lugar onde estava, e continuará a estar a Beauvoir, numa tarde de inverno há sessenta anos. Os gestos encaixam uns nos outros, e isso faz-me crispadamente feliz: "je me suis regardé dans une glace/ Et j'ai vu que j'avais rêvé/ Je me suis dit: faudra bien que m'y fasse.../ Tout finira par arriver..."
Será por isso que a porta vai rodar de novo, silenciosamente, e eternamente vestida de negro, de cabelos negros, de olhos negros, de luminosas palavras enegrecidas pelo metal da voz, Juliette Gréco poderá aparecer: atravessou rostos e paisagens, portos e bares gingados, manhãs cinzentas de tédio, os filmes de vidas suspensas em torno de um copo de vinho, ouviu o riso do acordéon, brincou com o garota na esquina da rua des Blancs-Manteaux, e recomeçará a dizer com a sua voz felina e espreguiçada: "Désabillez-moi/ Désabillez-moi/ Oui, mais pas tout de suite/ Pas trop vite."
Amanhã, no Centro Cultural de Belém, improvável e imaterial, emergindo da espessa noite da história, entre Boris Vian e Sartre, Prévert e Bataille, Gérard Philippe e Jean Vilar, Malraux e Giacometti, Jacques Brel, Hemingway e Miles Davis, Juliette Gréco virá até nós - cantar, dizer as palavras dos poetas, de um tempo em que a poesia era uma forma de respirar e habitar as manhãs, e atravessar os telhados de Paris, e organizar a Resistência, e ouvir jazz nas caves de Montparnasse, e fotografar um beijo infindável diante do Hotel de Ville, e encontrar Kikki e Gainsbourg. Os poetas são Mac Orlan e Léo Ferré, Queneau ou Prévert, Brel ou Desnos. O que quer dizer que estas palavras estão certas como um tempo que foi e é para sempre a beleza de ter sido.
Havia um pássaro e havia um peixe, e havia entre eles um amor de ternura sem fim: mas como fazer quando um está na água, e o outro lá em cima? Uma formiga de dezoito metros com um chapéu na cabeça - não existe, não existe. Uma formiga puxando um carro de pinguins e de patos feios - não existe, não existe. Mas porque não?, mas porque não? - perguntam os poetas. Mas porque não? - pergunta a Gréco. Ainda. Sempre. Com ela estaremos de novo mais altos do que no dia, mais longe do que na noite. Estaremos (vê, ouve, está) na luz deslumbrante do primeiro amor.
Nota: Julliette Gréco cantou no CCB em Janeiro de 2001

Sem comentários: