9.11.04

GABRIELA



O José Pacheco Pereira lembrou outro dia uma frase de Cesare Pavese: "Passei toda a noite sentado diante de um espelho para fazer companhia a mim próprio". E comentou: "no limite, há quem acabe assim, com o espelho por companhia". Muitos dos anti-heróis dos livros de Vergílio Ferreira fazem fé neste dito. E é assim porque muitos de nós envelhecemos mal, contra mundum ou, no limite, sem qualquer mundo. Contra estes bisonhos e por vezes tentadores "estados de alma", recomendo a revisão da primeira das telenovelas, Gabriela, que a SIC começou a passar a horas apenas convenientes para donas-de-casa (parece que repete pela alta noite). Em 1977, quando só havia uma televisão a preto-e-branco, constava que o país "parava" para assistir à vida do pequeno mas significativo cosmos de São Jorge de Ilhéus, sublimemente retratado no romance homónimo de Jorge Amado, a que um punhado de geniais actores brasileiros - alguns entretanto desaparecidos - dava vida e cor. As telenovelas que agora enchem os horários das televisões, ou, mesmo, serões inteiros, como na TVI, relevam quase invarivelmente do foro da pura idiotia. O que está a dar são as peripécias e as frivolidades da vida de meia dúzia de adolescentes semi-analfabetos dentro de histórias sem o mínimo de consistência ou verosimilhança. Quaisquer cinco minutos de desempenho em Gabriela valem seguramente as indigentes noitadas que as telenovelas, as actuais da Globo e as portuguesas da TVI, oferecem ao "estimado público". A avaliar pelos "índices de audiências", o "estimado público" também não merece melhor. Se calhar - e volto ao Pavese e ao Vergílio Ferreira -, sou eu quem está a envelhecer mal e sem saber muito bem como "fazer companhia a mim próprio". Na dúvida, sento-me no sofá e, pela calada da noite, fico com a sensualidade quente de Gabriela, ela que veio de longe, da terra, do pó e do nada para nos tornar ilusoriamente mais felizes.

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