16.2.04

KANT MAS NÃO ENCANTA


Passaram 200 anos sobre a morte de Immanuel Kant. O evento mereceu a devida comemoração nas academias, nas revistas e em algumas publicações da especialidade, ou mesmo sem ela. Grande parte do pensamento jurídico dominante, presumivelmente "racionalista" e, em muitos sentidos, "moralista", muito deve aos ensinamentos kantianos os quais, por seu turno, muito "bebem" da lição remota de Platão. Nos alvores deste blogue, invoquei o pragmatismo filosófico, particularmente o seu lastro norte-americano, na pessoa de Richard Rorty. Apesar de ter sido formado no lance tradicional da filosofia clássica ocidental - platónica, "cristã" e de raíz "a-historicista" -, a leitura de Rorty alertou-me para a necessidade de valorizar outros registos, "re-situando" o sentido e a função da filosofia, lá onde ela me aproxima ou afasta dos outros, da "história" e da minha própria forma de "enunciar". Daí a ligação da filosofia com a realização de uma "política democrática", de que fala abundantemente Rorty, bem como a formosa e poderosa exploração da noção de"contingência". A isto, o racionalismo e a "metafísica" kantianos torcem o olho da mesma maneira que o pragmatismo e as suas consequências ( título de um livro de Rorty, As Consequências do Pragmatismo, trad. das edições Piaget ) o fazem relativamente ao "filão" e ao "sistema de moralidade" de que Kant é herdeiro e defensor. Ficam, de ilustração, algumas palavras de Richard Rorty, no seu extraordinário Contingência, Ironia e Solidariedade, traduzido pela Ed. Presença.

(...) A ideia de uma componente humana central e universal chamada "razão", faculdade que seria a fonte das nossas obrigações morais, embora tenha sido muito útil na criação das sociedades democráticas modernas, é agora uma ideia que podemos dispensar (...) Tenho vindo a defender que as democracias se encontram hoje em posição de afastar algumas das escadas usadas para a sua própria construção (...) As nossas responsabilidades para com os outros constituem apenas o lado público da nossa vida, lado que se encontra em concorrência com as nossas afecções privadas e com as nossas tentativas privadas de autocriação e que não tem nenhuma prioridade automática sobre esses motivos privados. Se tem ou não prioridade em casos determinados é questão de deliberação, processo que geralmente não será facilitado por se recorrer a "primeiros princípios clássicos". A obrigação moral, nesta perspectiva, deve ser junta a muitas outras considerações, em vez de automaticamente triunfar sobre elas.


Richard Rorty

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