26.2.04

K DE KAFKA


A Colecção de bom gosto literário do Público, chamada Mil Folhas, deu à estampa, esta semana, O Processo de Franz Kafka. O pobre do Franz Kafka, que é mais conhecido, à pele, pelo adjectivo ("kafkiano") do que propriamente pela profundidade da sua escrita, não era nenhum soturno. Ao contrário do que se poderia pensar, seria um homem relativamente bem disposto e convivial. Teve a fortuna de nascer na "Mittel Europe", em Praga, em pleno império austro-húngaro, o último momento de felicidade europeia antes do desastre. Formou-se em direito e trabalhou fundamentalmente em companhias de seguros. Não durou muito. Em 1924, uns anos após o estertor violento do império, e com apenas 40 anos, Kafka não sobreviveu à tuberculose que o minava. Joseph K., o desafortunado protagonista de O Processo, marcou toda a aventura e a crítica literárias do século XX. Joseph K., o protagonista, no anonimato assassino e burocrático que o liquida, sobrevive na sombra de cada homem contemporâneo. Como escreve Agamben, "Kafka procura ensinar aos homens o uso do único bem que lhes restou: não a libertar-se da vergonha, mas a libertar a vergonha". Joseph K., no momento derradeiro em que se sente já para além de qualquer bem ou de qualquer mal, só quer salvar a sua vergonha e não tanto uma inocência tragicamente inútil: parecia-lhe que a sua vergonha lhe sobreviveria. No sem sentido em que corremos diariamente, Kafka está presente para que a humanidade mantenha "pelo menos a sua vergonha", o que, no dizer de Agamben, lhe permitiu reencontrar " qualquer coisa como uma felicidade antiga".

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