3.12.06

LE PALACE


Há um outro morto célebre de Paris a que não resisto fazer uma breve referência: Roland Barthes. Ou melhor, dois, sendo o outro um local. É evidente que o Barthes da semiótica nunca me interessou para nada. Se dúvidas tivesse, bastava-me ter lido o prefácio de Eduardo Prado Coelho, de 1974, a "O prazer do texto" (e "O prazer do texto") para acabar com elas. Existe, porém, um outro Barthes - o das "Mitologias", de "A câmara clara", da "Lição", dos "Fragmentos de um discurso amoroso" e de "Incidentes", tudo traduzido e, em geral, bem - que já me "diz" qualquer coisa. Barthes era um homem estranho e solitário, "preso" à figura maternal (isso é muito evidente em La chambre claire, escrito depois da morte da mãe) de tal maneira que, após um atropelamento na Rive Gauche a seguir a um almoço com François Mitterrand, a sua saúde se complicou de tal forma que, por assim dizer, se deixou morrer. "Incidentes" é um livro que aparece por aí naqueles estafados "mercados de livros" - sempre os mesmos - ao preço da uva mijona (Quetzal Editores). Vale a pena. É póstumo e consiste em alguns artigos escritos para revistas e jornais e em pedaços de um "diário" não formal do autor. Teve na altura o "picante", hoje em dia de uma vulgaridade atroz, de surpreender Barthes na sua intimidade algo infeliz e na sua sexualidade medíocre, virada inteiramente para a "realização instantânea" com rapazes ora pagos, ora deslumbrados pelo professor, e não pelo homem que rapidamente abandonavam. Ou nem isso sequer: "perguntei-me se realmente eu teria feito mal (toda a gente se espantaria: dar dinheiro a um gigolo, antes!) e disse para comigo que, visto que no fundo também não tinha assim tanta vontade de dormir com ele (nem com mais ninguém), o resultado era o mesmo: deitando-me ou não, às oito da noite estaria no mesmo ponto da minha vida; e, como o simples contacto dos olhos, da palavra, me erotiza, foi esse o gozo que eu paguei". Mas adiante. Está no livrinho um artigo escrito para a Vogue-Hommes, em Maio de 1978 (e assim chego ao local), sobre Le Palace. Le Palace era um teatro que foi transformado em "discoteca" e que fez um furor inaudito nas noites parisienses. Situava-se em frente ao restaurante Le Chartier - de onde não saio porque é daquelas casas de Paris onde o anonimato colectivo, o "ambiente", a beleza do estabelecimento, um bom queijo e melhor "rouge" superam a banalidade da comida - e, nos anos do fim, tornou-se estupidamente numa referência "gay" em que as tardes de domingo permitiam aos do Barreiro e da Massamá locais divertirem-se. Estive lá por duas vezes, nos anos noventa, apenas para tentar imaginar o que tinha lido com Barthes e para poder admirar a beleza decadente do espaço. A foto acima, tirada há três dias, ilustra o Palace actual: uma porta fechada para sempre com grafitti da "época" a condizer. "Proust teria gostado? Não sei: já não há duquesas. No entanto, debruçando-me lá do cimo sobre a plateia do Palace agitada por raios coloridos e silhuetas que dançam, adivinhando à minha volta na sombra das bancadas e dos camarotes descobertos todo um vai-vem de corpos jovens ocupados em não sei que circuitos, parecia-me reencontrar, numa transposição moderna, algo que tinha lido em Proust: aquela soirée na Ópera, em que as salas e as frisas formam, sob o olhar apaixonado do jovem Narrador, um meio aquático, docemente iluminado por plumas, olhares, pedrarias, rostos, gestos esboçados como por divindades marinhas, no meio das quais reinava a duquesa de Guermantes. Nada mais que uma metáfora, em suma, vinda de longe na minha memória para embelezar o Palace com um derradeiro encanto: o que nos advém das ficções da cultura".

1 comentário:

Anónimo disse...

Este «Palace» mais depressa me lembra o "Cine Marítimo" e os grandes três filmes à matinée de Domingo.