1. Tentar andar, sim, andar meramente pelas ruas de uma grande cidade - aquilo a que nós chamamos prosaicamente de "flanar" - em dias que precedem o horrível natal (o natal do consumo, da hipocrisia e da frivolidade e não a lembrança permanente do nascimento de Cristo), é uma tarefa medonha. Restam as ruas mais despojadas, os locais que não vêm nos mapas e os cemitérios.
2. Como Cioran, sou dado a cemitérios. O convívio com os mortos (na hora da morte o mais célebre morto não deixa, por isso, de ser apenas isso, um morto) ajuda-nos a suportar com mais indulgência os vivos e a desculpá-los por não perceberem onde vão acabar. Os muros que separam os cemitérios Père Lachaise e de Montparnasse da rua têm um enorme simbolismo. É, não resisto à vulgaridade, todo um programa. Num certo sentido, Paris deixou de estar viva há muito tempo apesar da sua agitação. Nos quiosques, um "hors serie" sobre os anos cinquenta parisienses esgotou. Jean Seberg - quem é que hoje sabe quem foi Jean Seberg? - esteve morta num beco qualquer sem saída, dentro de um carro, durante uns dias, vítima de um excesso de barbitúricos e de si mesma. Antes de se matar, já Seberg era uma ruína da mulher belíssima que foi. Quase a seguir, o ex-marido e seu grande amigo, Romain Gary, depois de um jantar bem disposto com o editor Claude Gallimard, foi para casa e deu um tiro na cabeça. Os rostos bonitos, frescos, autoctónes ou importados que se cruzam connosco pertencem já a outra coisa e eu, definitivamente, não pertenço a essa coisa.
3. Isto talvez venha a propósito de ter acabado de ler a derradeira "memoir" de Gore Vidal. Estava, explica ele, para lhe ter dado outro título, algo como "entre obituários". Está a milhas de Palimpsest mas é seguramente uma obra que vale pelo capítulo anti-piegas e cruel dedicado à morte de Howard Austen, o companheiro de cinquenta e três longos anos um pouco por todo o mundo, Paris incluída. Só ao fim desse mais de meio século, conta Vidal, um pouco antes de Howard se submeter a uma inútil operação, lhe pediu que o beijasse. Nunca houve sexo - cada um pedalava a sua bicicleta - porém houve o que raramente há nestas coisas: amizade, companheirismo e cumplicidade. Julguei que já ia encontrar Susan Sontag em Montparnasse onde ela desejou repousar. Folheei-a através doutro livro cruel e belíssimo de Annie Leibovitz que, entre muitas outras coisas, "conta" uma simples história de amor entre dois seres humanos até à morte de um deles. Sontag amortalhada num vestido verde é uma sequência fotográfica extraordinária e corajosa.
4. Chega de mortos. Falemos antes dos que vão morrer. Qualquer bistrot de Paris é, ainda, um dos poucos paraísos para fumadores. Não é o meu caso e, não sendo fundamentalista anti-tabaco, detesto sair a cheirar a cinzeiro. Todavia o cheirar a cinzeiro faz parte do gozo de Paris. No dia em que a patrulha saudável ocupar definitivamente o terreno, Paris, uma certa ideia de Paris, morre. E nós inevitavelmente com ela.
2. Como Cioran, sou dado a cemitérios. O convívio com os mortos (na hora da morte o mais célebre morto não deixa, por isso, de ser apenas isso, um morto) ajuda-nos a suportar com mais indulgência os vivos e a desculpá-los por não perceberem onde vão acabar. Os muros que separam os cemitérios Père Lachaise e de Montparnasse da rua têm um enorme simbolismo. É, não resisto à vulgaridade, todo um programa. Num certo sentido, Paris deixou de estar viva há muito tempo apesar da sua agitação. Nos quiosques, um "hors serie" sobre os anos cinquenta parisienses esgotou. Jean Seberg - quem é que hoje sabe quem foi Jean Seberg? - esteve morta num beco qualquer sem saída, dentro de um carro, durante uns dias, vítima de um excesso de barbitúricos e de si mesma. Antes de se matar, já Seberg era uma ruína da mulher belíssima que foi. Quase a seguir, o ex-marido e seu grande amigo, Romain Gary, depois de um jantar bem disposto com o editor Claude Gallimard, foi para casa e deu um tiro na cabeça. Os rostos bonitos, frescos, autoctónes ou importados que se cruzam connosco pertencem já a outra coisa e eu, definitivamente, não pertenço a essa coisa.
3. Isto talvez venha a propósito de ter acabado de ler a derradeira "memoir" de Gore Vidal. Estava, explica ele, para lhe ter dado outro título, algo como "entre obituários". Está a milhas de Palimpsest mas é seguramente uma obra que vale pelo capítulo anti-piegas e cruel dedicado à morte de Howard Austen, o companheiro de cinquenta e três longos anos um pouco por todo o mundo, Paris incluída. Só ao fim desse mais de meio século, conta Vidal, um pouco antes de Howard se submeter a uma inútil operação, lhe pediu que o beijasse. Nunca houve sexo - cada um pedalava a sua bicicleta - porém houve o que raramente há nestas coisas: amizade, companheirismo e cumplicidade. Julguei que já ia encontrar Susan Sontag em Montparnasse onde ela desejou repousar. Folheei-a através doutro livro cruel e belíssimo de Annie Leibovitz que, entre muitas outras coisas, "conta" uma simples história de amor entre dois seres humanos até à morte de um deles. Sontag amortalhada num vestido verde é uma sequência fotográfica extraordinária e corajosa.
4. Chega de mortos. Falemos antes dos que vão morrer. Qualquer bistrot de Paris é, ainda, um dos poucos paraísos para fumadores. Não é o meu caso e, não sendo fundamentalista anti-tabaco, detesto sair a cheirar a cinzeiro. Todavia o cheirar a cinzeiro faz parte do gozo de Paris. No dia em que a patrulha saudável ocupar definitivamente o terreno, Paris, uma certa ideia de Paris, morre. E nós inevitavelmente com ela.
1 comentário:
Muito bom. Paris veio dar-te (ainda) mais inspiração. Abraço.
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