15.4.06

O PODER DOS ARGUMENTOS

Nos cem anos do nascimento de Beckett, já aqui recordados, vem a propósito contar uma curiosa história da sua biografia, que uma revista literária francesa de grande divulgação publicou aí pelos idos de 90. Ei-la.
Em 1978, vivendo Ruhollah Khomeini no seu exílio francês, o futuro senhor todo-poderoso do Irão mandou certo dia um dos seus emissários ao encontro de Beckett. O motivo da visita era o de indagar junto do dramaturgo se ele estaria na disposição de receber o teocrata, precisado este que andava de alguém com prestígio que se dispusesse a aperfeiçoar os seus conhecimentos em língua e cultura inglesas. Beckett respondeu que iria pensar no assunto, mas foi adiantando que não dispunha de muito tempo para dar lições, e além disso nem sequer sabia que preço cobrar. O emissário, ouviu atentamente, e respondeu que isso não constituía problema, pois pagava-se o que fosse necessário. E ficou-se por ali.
Poucos dias depois, outro emissário voltou a avistar-se com Beckett, mas dessa vez fazendo-se acompanhar de um lacaio, transportando uma embalagem de tamanho razoável. Perguntado se já decidira se aceitava ou não, Beckett respondeu evasivamente. O emissário, sem mostrar qualquer impaciência, ordenou então ao lacaio que pusesse a dita embalagem em cima de uma mesa, após o que a desembrulhou, deixando entrever várias latas de caviar da marca Beluga. Feito um curto mas eloquente silêncio, o emissário rogou a Beckett que não interpretasse mal aquele simples gesto de cortesia, uma vez que era sabido quanto ele apreciava caviar iraniano, e em particular o daquela marca, podendo, caso assim preferisse, cobrar os seus honorários antes em espécie do que em dinheiro.
Beckett, enfim persuadido, lá se decidiu a aceitar o aluno, mas só na condição de ele se comprometer a aceitar os seus métodos. Aceite a condição, e acertado o que havia a acertar, deu-se então início às tão almejadas lições. Parece que Ruhollah Khomeini possuía conhecimentos de língua inglesa acima da média, o que fez com que, logo ao fim de três meses, o seu explicador achasse por bem introduzi-lo na prosa de Joyce. A ideia não foi nada bem acolhida, porque, ao invés de Balzac e de Zola, de cujas obras constava ser fino conhecedor, Khomeini não apreciava minimamente o autor do Ulisses. E as aulas ficaram por ali.
Não se pense porém que este incidente provocou qualquer corte de relações entre os dois homens. Bem pelo contrário. Como os compromissos são feitos para respeitar, e Beckett não era qualquer um, enquanto viveu em França, em Neauphle-le-Château, donde só sairia no ano seguinte para ir ocupar a cadeira do poder em Teerão, o aluno nunca se esqueceu do professor, fazendo-lhe chegar todos os meses às mãos, e sempre por um credenciado emissário, tão delicada pitança.

1 comentário:

João Melo disse...

interessante...