Há dois sítios onde não convém ir parar. Um, por razões evidentes, é um hospital. O outro, também infelizmente por razões óbvias, é um tribunal. É cada vez mais um preocupante mistério o que se passa na cabeça de alguns dos nossos juízes. E, no caso de juízes conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça, o mistério dobra de interesse. Por douto acordão destas venerandas, inuspeitas e intocáveis criaturas pode, de ora em diante, arriar-se em crianças com deficiências mentais. Atente-se neste naco jurisprudencial: "qual é o bom pai de família que, por uma ou duas vezes, não dá palmadas no rabo dum filho que se recusa ir para a escola, que não dá uma bofetada a um filho (...) ou que não manda um filho de castigo para o quarto quando ele não quer comer?" Estes "justiceiros" não hesitam na resposta: "perante uma ou duas recusas, umas palmadas (sempre moderadas) no rabo fazem parte da educação". Quem estudou direito sabe que o conceito de "bom pai de família" serve para tudo. Ilustra o tanso que paga religiosamente os seus impostos, o marido exemplar e "corno", o pai extremoso e babado, o funcionário cinzentão e obediente, em suma, o "homem médio" que gosta de palitar os dentes em público, de vestir fatos-de-treino ao fim de semana e de arrotar. Agora, por decisão jurisprudencial, o "bom pai de família" também é aquele ou aquela que dá umas palmadas - "sempre moderadas" - no rabo da criança, mesmo que ela seja deficiente e esteja entregue a cuidados de terceiros. Caso contrário, acrescenta a nova jurisprudência, a ausência das palmadas -"sempre moderadas" - pode configurar "um negligenciar educativo" (sic). Resta dizer que a "educadora" "fechou frequentemente um menor de sete anos (que sofria de psicose infantil muito grave) na despensa, com a luz apagada, para que aquele ficasse menos activo", para além de ter amarrado "os pés e as mãos de um menor à cama". Nada disto fez estremecer as venerandas figuras do STJ, "sempre moderadas" e atentas ao "negligenciar educativo", que entenderam - ao não dar razão ao MP - que certo tipo de agressões não configuram um ílicito. Chama-se a isto "administrar a justiça".
Adenda (da tarde): Quem estiver interessado, pode ler o acordão mencionado no texto nos "comentários" a este post, graças à gentileza de um leitor anónimo. Afinal os "anónimos" sempre servem para alguma coisa.
Adenda (mais tarde): Outro leitor, muito amavelmente, pede-me para, pelo menos, corrigir algumas aspas, depois de ler o acordão na íntegra. Tem razão "jurídica", mas não foi uma leitura jurídica a que pretendi fazer, mas sim "contextualizar" uma situação concreta através dos termos utilizados pelos conselheiros. Resta acrescentar que o STJ, de facto, não deu razão nem à "agressora", nem ao MP, ou seja, confirmou a pena aplicada em 1ª instância.
Adenda (da tarde): Quem estiver interessado, pode ler o acordão mencionado no texto nos "comentários" a este post, graças à gentileza de um leitor anónimo. Afinal os "anónimos" sempre servem para alguma coisa.
Adenda (mais tarde): Outro leitor, muito amavelmente, pede-me para, pelo menos, corrigir algumas aspas, depois de ler o acordão na íntegra. Tem razão "jurídica", mas não foi uma leitura jurídica a que pretendi fazer, mas sim "contextualizar" uma situação concreta através dos termos utilizados pelos conselheiros. Resta acrescentar que o STJ, de facto, não deu razão nem à "agressora", nem ao MP, ou seja, confirmou a pena aplicada em 1ª instância.
5 comentários:
Inacreditável!!!!!!
1 . Para a caracterização do crime de maus tratos, previsto no artigo 152.º, n.º1 do Código Penal, importa a aferir a gravidade da conduta traduzida por crueldade, insensibilidade ou até vingança.
2 . A reiteração é, na maior parte das vezes, elemento integrante destes requisitos mas, excepcionalmente, o crime pode verificar-se sem ela.
3 . Castigos moderados aplicados a menor por quem de direito, com fim exclusivamente educacional e adequados à situação, não são ilícitos.
4 . Devendo, no entanto, ter-se consciência de que estamos numa relação extremamente vulnerável e perigosa quanto a abusos.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:
I -
A arguida AA, foi julgada pelo Tribunal Colectivo de Setúbal e condenada como autora de um crime de maus tratos a BB, p. e p. pelo art. 152 º, n.º 1 a) do C. Penal, na pena de dezoito meses de prisão;
Tendo tal pena sido suspensa por um ano.
Desta decisão interpuseram recurso directamente para este STJ, quer o M.ºP.º, quer a arguida.
Vejamos primeiro o recurso do M.ºP.º:
II -
O Ex.mo Procurador restringe-o à parte do acórdão em que se decidiu que os factos provados relativamente aos ofendidos CC, FF e DD não integravam o crime de maus tratos imputado no despacho de pronúncia,
E concluiu a sua motivação do seguinte modo:
1 - No crime de maus tratos a deficientes com atrasos mentais do art. 152°, n° 1, al. a) do Código Penal protege-se o bem jurídico saúde, este entendido como bem estar físico, psíquico e social e, de uma forma mais geral, os seus direitos individuais enquanto pessoas vulneráveis e mais desprotegidas;
2 - O conceito de maus tratos da norma penal abrange os maus tratos físicos, considerados como aqueles que afectam a integridade física das pessoas aí mencionadas, os maus tratos psíquicos, considerados como aqueles que afectam a auto estima e a competência social do dependente, entre os quais se incluem as humilhações, provocações e molestações, e ainda os tratamentos cruéis, estes considerados como aqueles que sejam desumanos, de forma inadmissível;
3 - Considerando a configuração actual do crime de maus tratos, relativamente a pessoas com deficiência mental, entende-se que o legislador não exige, para a sua verificação, a reiteração de condutas ou mesmo que estas revistam especial gravidade;
4 - Na verdade, atenta a razão de ser da criminalização das condutas aí tipificadas e o alargamento operado no tipo, considera-se que o motivo da agravação é a especial relação existente entre o agressor e a vítima, independentemente da gravidade intrínseca das condutas;
5 - No que respeita à situação particular das crianças ou jovens deficientes em virtude de atraso mental há que analisar com um cuidado acrescido as situações em que estas são vítimas de casos que possam ser enquadrados como maus tratos;
6 - A particular situação destas pessoas resulta do facto das mesmas requerem especiais cuidados educativos e tratamento pedagógico adequado ao estado de desenvolvimento (físico e psíquico) em que se encontram;
7 - Assim sendo, qualquer conduta que envolva violência física, psíquica ou emocional com este tipo de pessoas deficientes assume maior gravidade dada a vulnerabilidade e a exigência de maiores cuidados educativos e pedagógicos, por parte das pessoas com responsabilidade na sua guarda e educação;
8 - No caso dos autos, a arguida era a encarregada de lar onde se encontravam internados jovens com deficiência mental;
9 - O douto acórdão recorrido apenas condenou a arguida relativamente aos factos praticados quanto a um dos deficientes, pois considerou que, relativamente aos outros três envolvidos, inexistia reiteração de condutas, mas actos isolados, insuficientes para se enquadrarem no tipo de crime em causa;
10 - Para a existência da reiteração de condutas, nos casos de maus tratos envolvendo jovens com deficiência mental, há que atender ao facto do agente violar de forma repetida os seus deveres funcionais com vários deles, que estejam na sua dependência;
11 - No caso dos autos, não faz sentido distinguir a gravidade de certos factos relativos a uma vítima dos restantes, pois todos eles foram praticados em certo contexto e durante o lapso de tempo em que a arguida era encarregada daquele estabelecimento onde estavam internadas as vítimas, jovens com deficiência mental;
12 - Considera-se que os actos em causa relativamente aos casos em que se decidiu pela absolvição, integram o conceito de tratamento cruel, pois envolvem a reprimenda em situações educacionais de pessoas especialmente vulneráveis, onde a sua dependência educativa e emocional é vincada;
13 - Não se pode, por isso, enquadrar estes actos, pretensamente isolados, como simples ofensa corporal, pois dada a agressividade imanente aos mesmos há violação manifesta da dignidade dos cidadãos deficientes, considerando-se que os factos provados integram tratamento desumano em todos os casos e não apenas no caso do BB;
14 - Em suma, face aos factos provados e à configuração do crime de maus tratos, considera-se que a arguida deverá ser condenada pela prática de quatro crimes de maus tratos do art. 152°, n° 1, al. a) do Código Penal;
15 - Para o preenchimento do crime de maus tratos referido, não se exige que os factos revelem uma especial falta de sensibilidade do agente, nem qualquer outra expressão de carácter ou elemento da personalidade particularmente censurável;
16 - O douto acórdão recorrido violou o disposto no art. 152°, n° 1, al. a) do Código Penal;
17 - O douto acórdão recorrido interpretou o disposto no art. 152°, n° 1, al. a) do Código Penal no sentido de exigir para o seu preenchimento a existência de reiteração de condutas, afastando esta em face dos factos provados, quando este tipo de crime não exige tal elemento ou, mesmo que exija o mesmo, deverá considerar-se que ele ocorreu atento o conjunto de factos provados no douto acórdão, que não se restringiu a uma conduta isolada.
Respondeu a arguida.
Entendeu que:
Face aos factos provados, não se pode saber se os factos ocorreram antes da entrada em vigor da alteração ao art. 152.º do Código Penal introduzida pelo DL n.º 48/95, de 15.3
A lei velha exigia o dolo específico, ou seja a actuação por malvadez ou egoísmo, cujos factos não constam sequer da acusação ou da pronúncia;
De qualquer modo, mesmo face à lei actual os factos provados relativamente a estes menores não integram os elementos essenciais, quer do crime previsto no art. 153.º ( na versão originária ), quer do previsto no art. 152.º, n.º 1 a)
III -
Importa, pois, neste recurso, saber se, no que concerne aos menores CC, FF e EE, a arguida devia ter sido condenada pelo crime previsto e punido pelo art. 152.º, n.º 1 a), sempre do Código Penal.
IV -
Da 1.ª instância vem provado o seguinte:
1 - A A.P.P.A.C.D.M. de Setúbal - Associação de Pais e amigos do Cidadão Deficiente Mental - é uma pessoa colectiva que visa proporcionar apoio aos deficientes mentais deste concelho e tem sede social na Avenida Francisco Xavier, lote , cave - 2900-616 Setúbal
2 - O C.R.P. - Centro de Reabilitação Profissional - é uma valência dessa instituição que funciona no local da sua sede com o objectivo de promover o desenvolvimento de actividades com vista à formação de jovens portadores de deficiência a fim de possibilitar a sua integração sócio-profissional.
3 - Entre 1990 e 2000 a arguida AA trabalhava para o Centro Sócio Educativo como encarregada do Lar Residencial, sito na Rua de ...., Setúbal, local onde esses formandos dormiam.
4 - Entre os utentes do Lar Residencial figuravam os seguintes:
- EE
- BB
- GG
- FF
- HH
- II
5 - A partir de 1992 até 12 de Janeiro de 2000 a arguida por várias vezes fechou o BB à chave, na despensa, com a luz apagada, quando este estava mais activo, chegando o menor a ficar fechado cerca de uma hora
6 - No mesmo período, por duas vezes, de manhã, em dias coincidentes com o fim-de-semana amarrou os pés e as mãos do BB à cama para evitar que acordasse os restantes utentes do lar e para não perturbar o descanso matinal da arguida
7 - Também durante o referido período a arguida dava bofetadas no BB.
- O BB é menor de idade e sofre de psicose infantil muito grave, sendo uma criança com comportamentos disfuncionais, hiperactiva e por vezes agressiva que descompensa com facilidade.
9 - A arguida por uma ou duas vezes deu palmadas no rabo à CC quando esta não queria ir para a escola e uma vez deu uma bofetada ao FF por este lhe ter atirado com uma faca
10 - Ao EE mandou-o uma vez de castigo para o quarto sozinho quando este não quis comer a salada à refeição, tendo este ficado a chorar por ter medo de ficar sozinho
11 - A arguida não tinha preparação profissional para desempenhar as funções de responsável do Lar, nomeadamente para lidar com deficientes mentais.
12 - A arguida residia no Lar, passando aí todo o dia e aí pernoitando, trabalhando das 7h às 23h e às vezes durante a noite quando era necessário ajudar a colega que fazia o horário nocturno, nomeadamente por algum utente estar doente
13 - Só a partir de Novembro de 1991 a arguida passou a ter uma folga às 3ªs feiras, pernoitando uma noite fora do Lar
14 - A arguida tinha a seu cargo cerca de 15 utentes
15 - Em Janeiro de 2000 a arguida entrou de baixa médica por padecer de depressão grave, tendo a sua médica assistente emitido uma declaração da qual consta:" ... JJ de 55 anos sofre de depressão grave que tem vindo a agravar-se de há cerca de três anos até agora, provavelmente pelas condições de trabalho e exigência do sítio onde trabalhava e vivia..."
16 - A arguida actualmente já não trabalha com deficientes
17 - A arguida é de modesta condição social
1 - Actualmente exerce funções de empregada de limpeza no Centro de Actividades Ocupacionais.
19 - Tem como habilitações literárias a 4ª classe
20 - Vive sozinha
21 - Tem uma filha maior de idade
22 - Não tem antecedentes criminais
E foi considerado não provado que:
Entre os utentes do Lar Residencial, onde trabalhava a arguida figurasse a KK, LL, MM, NN, OO e deficiente do sexo masculino que padecia de deficiência profunda com cerca de 6/7 anos.
A arguida castigasse repetidamente os utentes do lar quando tinham algum comportamento que considerava desadequado por lhe desagradar. Que não acatasse as orientações técnicas da psicóloga dessa instituição Dr.ª PP, nem que a arguida deliberadamente evitasse alterar os alimentos que dava ao BB ao pequeno almoço ou que este descompensasse quando lhe davam sopas de pão e leite.
V -
O art. 152.º, n.º 1 do Código Penal, na parte que nos importa, dispõe que, quem tendo ao seu cuidado, à sua guarda, sob responsabilidade da sua direcção, pessoa menor particularmente indefesa, em razão da idade, deficiência ou gravidez, lhe infligir maus tratos físicos ou psíquicos ou a tratar cruelmente, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos, se o facto não for punível pelo art. 144.º.
Temos aqui uma relação entre pessoas que não levanta dificuldades no nosso caso e temos - esse sim, aqui em discussão - o conceito de maus tratos físicos ou psíquicos ou tratamento cruel.
Taipa de Carvalho ( Comentário Conimbricense ao Código Penal, I, 334 ) entende que, segundo a " ratio " da autonomização deste crime, é aqui exigida uma reiteração das respectivas condutas.
No mesmo sentido se pronunciam Simas Santos e Leal Henriques (Código Penal Anotado, 2.º Vol. 301 ) e Maia Gonçalves (Código Penal Português, 551 ).
Também na Jurisprudência este entendimento tem tido acolhimento, como se pode ver, nomeadamente, dos Ac.s deste Tribunal de 30.10.2003 (CJ STJ XI, 3, 208) e de 4.2.2004 (proc. 2857/03).
A expressão " maus tratos ", curiosamente, assumiu na nossa língua uma conceptualização própria, sendo extremamente rara a sua utilização no singular.
E, se é empregue no plural significa, efectivamente, que corresponde a acções reiteradas.
Mas o texto legal inclui a expressão " tratar cruelmente " que comporta, perfeitamente, acções isoladas.
Por outro lado, a autonomização relativamente a outros crimes (nomeadamente de ofensas à integridade física) que pode ser usada como argumento a favor da reiteração, não pode, a nosso ver, e ressalvada sempre a devida consideração, ser tida em conta no caso de maus tratos apenas psíquicos.
Estes podem ocorrer de modo muito intenso numa simples acção (que pode ser muito duradoura) e ter lugar de modo muito mais relevante, sob o ponto de vista da sua saúde ou mesmo dignidade, do que em alguns casos de reiteração.
Um só acto pode, efectivamente, implicar para a pessoa visada (e pensamos em especial nos menores) violação intensa e perene da sua integridade psíquica. Todos sabemos, p. ex., de gaguezes que ficam após um único acto atingidor da pessoa.
Decerto que a reiteração há-de constituir sempre um elemento muito importante para se aferir da gravidade dos maus tratos ou do tratamento cruel. Mas não cremos, face ao que se acaba de referir, que não possa ter lugar - ainda que excepcionalmente - tal crime na ausência dela.
Estamos, assim, com o Ac. deste Tribunal de 14.11.1997 ( CJ STJ , V, 3, 235 ) ao colocar o ponto de referência relativamente à verificação deste crime, não na reiteração, mas na gravidade traduzida por crueldade, insensibilidade ou até vingança.
VI -
Esta gravidade inerente às expressões " maus tratos " e " tratamento cruel " constitui, ela sim, o elemento que nos leva à improcedência deste recurso. É que, quanto a estes menores, não só não se atinge tal gravidade, como os actos imputados à arguida devem, a nosso ver, ser tidos como lícitos.
Na educação do ser humano justifica-se uma correcção moderada que pode incluir alguns castigos corporais ou outros. Será utópico pensar o contrário e cremos bem que estão postas de parte, no plano científico, as teorias que defendem a abstenção total deste tipo de castigos moderados.
Taipa de Carvalho, no artigo citado, refere que a " finalidade educativa pode justificar uma ou outra leve ofensa corporal simples " e Paula Ribeiro de Faria ( também no Comentário Conimbricense do Código Penal, a páginas 214 do Tomo I ) afirma que " de acordo com o ponto de vista maioritário a ofensa da integridade física será justificada quando se mostre adequada a atingir um determinado fim educativo e seja aplicada pelo encarregado de educação com essa intenção ". Do mesmo modo, este Tribunal no seu Ac. de 10.10.95 ( que se pode ver sumariado em www.dgsi.pt ) entendeu que " os pais detêm o poder-dever de corrigir moderadamente os filhos ".
VII -
Este poder-dever de correcção levanta, todavia, problemas delicadíssimos de fronteira.
Há que saber até onde pode ir considerando, consequentemente, insusceptível de preenchimento de qualquer ilícito criminal o que fica aquém. Sempre com a consciencialização de que estamos numa relação extremamente vulnerável e perigosa quanto a abusos. Mais intensamente ainda no nosso caso por se tratar de menores internados em instituição e com deficiências psíquicas.
A relação é de pessoa com poder relativamente a outra que o não tem e estará, com frequência, prejudicada, quanto a serenidade e ponderação, pelos comportamentos de descompensação por parte nos menores.
VIII -
A linha de fronteira passa por dois pontos:
Um reportado à finalidade da correcção;
Outro à sua adequação à educação do menor.
O bem do menor concretizado na sua educação terá se ser sempre a finalidade da correcção. De fora ficam, pois, os casos, muito frequentes, em que o agente procura (conscientemente ou não) projectar no educando os seus próprios problemas, encontrando neste elemento de descarga emocional.
Para aferimento da adequação ousamos chamar a figura do "bom pai de família ", agora, curiosamente, investido das funções que directamente resultam da consagrada expressão.
Indagamos, então, se o bom pai de família agiria como agiu o agente.
IX -
E podemos dar a resposta quanto aos factos deste recurso mesmo com uma pergunta:
Qual é o bom pai de família que, por uma ou duas vezes, não dá palmadas no rabo dum filho que se recusa ir para a escola, que não dá uma bofetada a um filho que lhe atira com uma faca ou que não manda um filho de castigo para o quarto quando ele não quer comer?
Quanto às duas primeiras, pode-se mesmo dizer que a abstenção do educador constituiria, ela sim, um negligenciar educativo. Muitos menores recusam alguma vez a escola e esta tem - pela sua primacial importância - que ser imposta com alguma veemência. Claro que, se se tratar de fobia escolar reiterada, será aconselhável indagar os motivos e até o aconselhamento por profissionais. Mas, perante uma ou duas recusas, umas palmadas (sempre moderadas) no rabo fazem parte da educação.
Do mesmo modo, o arremessar duma faca para mais a quem o educa, justifica, numa educação sã, o realçar perante o menor do mal que foi feito e das suas possíveis consequências. Uma bofetada a quente não se pode considerar excessiva.
Quanto à imposição de ida para o quarto por o EE não querer comer a salada, pode-se considerar alguma discutibilidade. As crianças geralmente não gostam de salada e não havia aqui que marcar perante elas a diferença. Ainda assim, entendemos que a reacção da arguida também não foi duma severidade inaceitável. No fundo, tratou-se dum vulgar caso de relacionamento entre criança e educador, duma situação que acontece, com vulgaridade, na melhor das famílias.
Este recurso improcede.
Passemos agora ao recurso da arguida:
X -
Conclui ela a motivação do seguinte modo:
1 - Os factos, condutas criminosas imputadas à recorrente, não estão localizados no tempo, referindo-se apenas os limites temporais dentro dos quais os factos terão ocorrido, violando-se os arts. 10, 2° e 3° do C.P.
2 - O que cria imediatamente a dificuldade de saber qual é a lei aplicável;
3- Mas os factos ocorridos antes da entrada em vigor do D.L. 48!95 de 15/3 encontravam-se já prescritos, quando a recorrente, em 8 de Novembro de 2001, foi constituída arguida, já que o prazo de prescrição é de 5 anos (crime punível até 3 anos);
4 - O crime está mal qualificado como crime continuado, pois desconhecemos as condições exógenas em que ocorreram as condutas imputadas à recorrente, que podem ter sido espaçadas por períodos de 4 ,5 ou até 9 anos.
5 - Não foi alegado e menos provado, que a recorrente tivesse agido por malvadez, o que era uma condição essencial estabelecida na lei que vigorava em 1992.
6 - Aliás está provado o contrário, pois consta da sentença que a arguida amarrou o BB à cama, por duas vezes, para evitar que ele acordasse os restantes utentes do lar e não perturbasse o seu descanso matinal, que o fechou na despensa quando ele estava mais activo e que o BB era uma criança hiperactiva e por vezes agressiva.
7 - Os comportamentos que foram dados como provados contra a arguida podem configurar castigos eventualmente excessivos, passíveis de integrar as ofensas corporais, mas de forma nenhuma maus tratos.
8 - A lei actual, que não é aplicável, dispensa o requisito de malvadez mas exige o requisito do dolo.
9 - Não foi provada sequer a negligência (sendo certo que o crime exige o dolo), quanto mais o dolo, nada se alegando a respeito de factos que caracterizam estas formas de culpa.
10 - Aliás estaria excluída a própria negligência, atentas as condições pessoais e de saúde da recorrente, afectada com uma grave depressão, motivada pelas condições de trabalho que lhe eram impostas (foi dado como provado que a arguida trabalhava 16 horas por dia, 6 dias por semana, tendo a seu cargo 15 utentes, todos deficientes, sem ter preparação profissional para desempenhar as funções de responsável do Lar, nomeadamente para lidar com deficientes mentais);
11- Se alguém foi vítima de maus tratos foi a recorrente, como bem salientou a Sra. Juíza de Instrução Criminal.
12 - As normas aplicáveis são aquelas, mais favoráveis, que vigoravam à data em que potencialmente, os factos dados como provados podiam ter ocorrido (art. 153° do Código Penal antes da redacção do D.L. 48/95 de 15/3, que fixava uma pena de prisão de 6 meses a 3 anos);
13 - Consequentemente a pena de prisão aplicável vai até 3 anos, pelo que a prescrição ocorre em 5 anos, nos termos do art. 118° do C.P .
14- Por outro lado, o art. 153° do C.P., na redacção aplicável, exigia que o agente actuasse com egoísmo ou malvadez, factos que não constavam da pronúncia e se não provaram.
15 - Aliás, foram provadas as razões de um ou outro comportamento menos correcto, mas isolado, que não integram o crime de maus tratos.
16 - Como, e muito bem, entendeu a Mma. Juíza de Instrução que decidiu não pronunciar a arguida pelos crimes de que se mostrava acusada.
17- Mesmo que fosse aplicável o art. 152° do C.P ., na redacção actual, era necessário o dolo.
18- Foram violados por erro de interpretação os arts. 1°,2° e 3°,118 no 1 c) e 152° do C.P. e 153° do C.P. na redacção anterior ao D.L. n° 49/95 de 15/3.
Respondeu o Digno Magistrado do M.ºP.º junto do Tribunal de 1.ª Instância.
Entendeu que deve ser tomada como referência para efeitos, quer incriminatórios, quer de prescrição, a data de 12.1.2000, de sorte que a recorrente não tem razão.
XI -
Neste recurso temos, pois, de decidir se:
A fixação dos factos no tempo é de tal modo vaga que não permite a sua subsunção na redacção actual do art. 152.º;
Teve lugar a prescrição, atenta a moldura penal da lei anterior;
Existe o necessário dolo para a subsunção na lei actual.
XII -
Os factos que agora nos importam primacialmente são os referidos supra sob os nºs 5, 6 e 7.
Não estão particularmente situados no tempo, mas até se compreende a dificuldade em situá-los precisamente, já que a realidade em causa se projectou ao longo de muitos anos e ninguém terá tomado nota, seguramente, das datas precisas em que cada um deles ocorreu.
Seguro é, no entanto, o seu fim apenas em 12.1.2000. De outro modo não se compreenderia a limitação temporal levada a cano naquele n.º5.
XIII -
Como vimos supra, o crime de maus tratos pode encerrar uma situação de reiteração que passa a unificar.
Nem sequer se trata do recurso à figura do crime continuado, própria do art. 30.º, n.º2 do CP, mas duma unificação ínsita no próprio tipo legal. Como, aliás, se entendeu no acórdão recorrido(cfr-se folhas 931 ).
Neste tipo de crimes, como a conduta criminosa se mantém, é a lei que vigora ao tempo da cessação que importa, nos termos do n.º 1 do art. 2.º deste código.
Não relevariam, todavia, as condutas anteriores se praticadas em tempo em que a lei as não punia.
Mas, ao contrário do sustentado pela arguida, cremos que todos os actos por ela praticados relativamente ao BB estão necessariamente eivados de malvadez (e amarrar à cama de egoísmo), ficando preenchido este elemento essencial exigido pela redacção anterior da lei.
Lembremo-nos que se tratava duma criança que sofre de psicose infantil muito grave, com comportamentos disfuncionais, hiperactiva e por vezes agressiva que descompensa com facilidade. Se é certo que a arguida tinha primacialmente em vista outros objectivos que não o sofrimento do menor, não pode deixar de se atender a que os seus actos, pela violência que traduzem encerravam necessariamente uma descarga emocional por parte dela e uma vontade segura de vingança.
XIV -
Sendo de aplicar a lei actual, temos a moldura penal de um a cinco anos de prisão que conduz, visto o disposto no art. 118.º, n.º 1 b) do mesmo código, ao prazo prescricional de dez anos, aqui manifestamente fora de causa.
XV -
Resta o problema do dolo.
Mas, verdadeiramente, não chega a ser problema.
O crime só pode ser cometido sob a forma dolosa. Contudo, no conceito de dolo cabe o chamado dolo necessário em que o agente pretende algo de diferente, mas previu como efeito seguro da sua conduta o facto criminoso.
Quis ela evitar a hiperactividade do BB e por isso fechou-o na dispensa às escuras chegando a ficar ali fechado cerca de uma hora. Quis o descanso matinal seu e dos restantes utentes do lar e amarrou o menor nos termos supra descritos. Agiu com objectivo lícito, mas não podia deixar de saber que assim violentava, como violentou, a criança, infringindo-lhe um tratamento cruel, tanto mais que sabia ser pessoa doente, cujos problemas tinham que ser resolvidos antes de acordo com o aconselhado por médico-psiquiatra.
E, quanto às bofetadas, temos o dolo directo, pois não se provou qualquer outro objectivo relativamente ao qual a agressão funcionasse apenas com meio para atingir outros objectivos que não fossem o infligir sofrimento.
Não tem razão, pois, a recorrente.
XVI -
Nestes termos, nega-se provimento a ambos os recursos, confirmando-se a decisão recorrida.
João Gonçalves comete algumas imprecisões graves.
Apenas ficou provado que a educadora, por uma vez, fechou, durante uma hora, um menor deficiente que se recusava a comer.
Ainda mais grave, em momento algum, no referido acórdão, se legitima o comportamento da educadora em amarrar o outro menor à cama. Bem pelo contrário, foi por causa desse acto que a arguida foi condenada.
Sou um leitor assíduo e admirador deste blogue, não conheço os senhores conselheiros que produziram o acórdão e, devido à profissão, sofro muitas vezes com muitas decisões dos nossos tribunais, mas penso que este post, pela total subversão do conteúdo do acórdão, deveria ser corrigido, pelo menos, no tocante a algumas aspas.
Deixe lá de maldizer os anónimos que tanto gostam de o ler.Inteligente, ponderado e razoável como parece ser, sugiro-lhe que leia o acórdão todo e não se limite a seguir aqueles que, com meia dúzia de frases e zero conhecimentos jurídicos, condenaram os julgadores, com trânsito em julgado e tudo.
Os factos, relativos a BB, que levaram à condenação da arguida foram os seguintes:
- a arguida atou a criança à cama;
- deu-lhe bofetadas;
- fechou-a numa dispensa sem luz;
Tais factos integraram o crime de maus tratos e a arguida foi condenada numa pena de 18 meses com 1 ano de pena suspensa.
A arguida não foi condenada pelo crime de maus tratos quanto aos seguintes factos, todos eles relativos aos outros menores:
1) - palmadas no rabo de um dos menores que se recusava a ir para a escola;
2) - bofetada a um deles em reacção ao facto dele lhe ter atirado uma faca;
3) - fechou um dos menores no quarto depois de este se recusar a comer;
Quanto a 1) e 2), o STJ considerou que eram castigos socialmente adequados, citando a melhor doutrina sobre o assunto. Quanto a 3) exprimiu mais dúvidas quanto à sua adequação e, consequentemente, admissibilidade, mas disse que não configurava crime de maus tratos.
Dificilmente a decisão me parece criticável, muito pelo contrário. Acho que o tribunal analisou bem a situação.
Mais, foi progressista na defesa dos direitos das crianças, porque considerou - ao contrário da doutrina dominante - que o crime de maus tratos não exige reiteração na prática dos actos que configuram esse crime.
Daí que, tudo resumido, acho as críticas ao acórdão, no mínimo, levianas. Mas não é de crer que os críticos do mesmo reconheçam o erro.
Enviar um comentário