4.3.06

O RESTO FIEL


1. Por causa deste texto de Vasco Pulido Valente, fui ler a "homília de quarta-feira de cinzas" do Cardeal Patriarca de Lisboa, D. José Policarpo. Fui ver onde é que "encaixava" a "crítica" ao "direito à blasfémia". Vale a pena ler a passagem completa (sublinhados meus). "A primeira interpelação da Quaresma é a de tomarmos Deus mais a sério. É o grito, em tom dramático, do Profeta Joel: “Convertei-vos a Mim de todo o coração, com jejuns, lágrimas e lamentações. Rasgai o vosso coração, não os vossos vestidos. Convertei-vos ao Senhor vosso Deus” (Jl. 2,12-13). E São Paulo, em tom igualmente sério, escreve aos Coríntios: “Nós vos pedimos, em nome de Cristo: reconciliai-vos com Deus” (2Cor. 5,20). Se nós, os cristãos, não acolhemos estes apelos, quem os há-de ouvir? Este é o maior problema espiritual, com consequências morais, da nossa cultura contemporânea: relativizou-se Deus. Está na moda fazer profissão de fé de agnosticismo; o homem, considerado como individuo e não como pessoa, necessariamente comprometido com uma comunidade, tornou-se o único critério de verdade e de discernimento ético; Deus deixou de ter lugar na história. Apesar do apregoado respeito pelas religiões e pela fé de quem acredita, alguns não hesitam em brincar com o sagrado; chegou-se mesmo a apregoar, em nome da liberdade, o direito à blasfémia. Fiquem sabendo que para nós que buscamos o rosto de Deus e procuramos viver a vida em diálogo com Ele, isso nos indigna e magoa, porque temos gravado no nosso coração aquele mandamento primordial: “não invocarás o Santo Nome de Deus em vão”. Como afirmou um prestigiado colunista, que aliás se confessa descrente, com o sagrado não se brinca. O respeito pelo sagrado é algo que a cultura não pode pôr em questão, mesmo em nome da liberdade. A todos esses que sentem não acreditar em Deus, eu digo em nome do povo crente: a vossa dificuldade em acreditar em Deus, não toca na realidade insofismável de Deus. Nós respeitamos a vossa descrença, e não hesitamos em dar-vos as mãos em todas as lutas pelo bem e por causas justas. Mas respeitai a nossa fé, mesmo no exercício da vossa liberdade; sobretudo respeitai Deus em quem acreditamos."
2. Duas ou três observações. O "relativismo" tomou conta dos costumes e é hoje, em praticamente todas as "áreas", o "pai espiritual" do "pensamento único". A forma mais fácil e simplificada de o homem se olhar e de olhar o mundo é a do filisteu. O filistinismo é, por essência, o paraíso do lugar-comum, do relativismo e da concepção da vida como pura "vida material". D. José Policarpo pergunta: "que significado tem a Quaresma no contexto da nossa sociedade contemporânea, onde muitos não acreditam em Deus, onde, mesmo muitos cristãos, não cultivam a fé como relação viva e confiante com Ele, onde a Sua Palavra não é luz que ilumina a vida, onde a Sua Lei não interpela a liberdade, onde a doutrina da Igreja é pura sugestão? A Quaresma é, para a Igreja, um momento de verdade, de se assumir como “resto fiel”, Povo que o Senhor escolheu e conduz. É tempo para assumirmos corajosamente a nossa diferença, no mundo em que vivemos: diferença na fé, nas motivações e nos critérios". Esta é efectivamente a Igreja de João Paulo II e, agora, a de Joseph Ratzinger. Duvidosamente podia ser outra coisa: "o resto fiel", diferente na fé, "nas motivações e nos critérios". Pedir-lhe "outra coisa" é pedir-lhe que deixe de ser Igreja, "esta" Igreja.
3. No livro O Sal da Terra, Ratzinger é muito claro: "A Igreja também adoptará outras formas. Parecer-se-á menos com as grandes sociedades para ser cada vez mais uma Igreja de minorias, para viver em pequenos círculos vivos de pessoas realmente convictas que tenham fé e que actuem a partir dessa fé. Mas é precisamente assim que se tornará outra vez, para usar uma expressão bíblica, no "sal da terra". Nesta mudança fundamental, a constante de que o Homem não é destruído na sua dimensão essencial, volta a ser mais importante, e as forças que o podem apoiar como Homem tornam-se tanto mais necessárias. Por isso, a Igreja precisa, por um lado, da flexibilidade para aceitar as atitudes e as regras que se transformaram na sociedade e para se desligar de interdependências anteriores. Por outro lado, ela precisa cada vez mais da fidelidade para preservar o que deixa o Homem ser Homem; o que faz com que ele sobreviva e mantenha a sua dignidade. Ela tem de manter tudo isto e de manter o Homem aberto ao alto, a Deus; porque só daí pode vir a força de paz neste mundo".
4. Quando, em O Sal da Terra, o entrevistador pergunta a Ratzinger se existem muitos caminhos para Deus, o então cardeal responde simplesmente:" tantos, quanto há pessoas". Os filósofos pragmatistas criticam a distinção platónica entre a aparência e a realidade, entre a "alma" e o "corpo" e não sentem qualquer tipo de necessidade "exterior", de um "mais-além". Eu, como bom céptico e péssimo crente, duvido embora acredite naquilo a que Nietzsche chama os "nós secretos da vida". Para a humanidade indiferente, não existe uma "moral" ou uma "estética". A sorte dessa mal chamada "humanidade" é que ainda há homens que contrariam o "humano" para tentar dar um qualquer "sentido" ao "resto", fiel ou não. Isto apesar de já nenhum "sentido" nos salvar ou danar, se existir algum.

1 comentário:

Anónimo disse...

Aguarda-se comentário do Anonymous "beatinho", que é mestre em teologia do "venha a mim primeiro".