O Paulo Querido fez um comentário oportuno a este post. Sobretudo porque, ao contrário do que é costume em comentários, o Paulo defende a noção de "conversa" como participação numa conversa mais vasta que são as possibilidades de conhecimento. Vê-se que o Paulo leu o Thomas Kuhn. Todavia, mantenho que deve distinguir-se entretenimento de literatura o que não quer dizer que não possa haver muito do primeiro na segunda. O que sustento é que uma literatura que não passe de entretenimento não é literatura. Porquê? Recorro a uma das mais (para mim) emblemáticas "definições" de literatura que conheço, a de Vladimir Nabokov no posfácio a Lolita. «Quanto a mim, uma obra de ficção só existe se me consegue proporcionar aquilo a que chamo sem rodeios o gozo estético, isto é, uma sensação de estar, de certo modo e algures, ligado a outros estados de ser em que a arte (curiosidade, ternura, generosidade, êxtase) é a norma. Não há muitos livros desses. Tudo o mais é um acervo de lugares-comuns ou aquilo a que alguns chamam "literatura de ideias", a qual não passa muitas vezes de um acervo de lugares-comuns em enormes blocos de gesso, cuidadosamente transmitidos de século para século, até que aparece alguém com um martelo e dá uma boa martelada a Balzac, a Gorki ou a Mann.» Gozo estético e ligação por cima de coisas como presente, passado e futuro a "outros estados de ser" é que permitem falar, por exemplo, em literatura e em sabedoria, um termo recorrente no crítico Harold Bloom para os "autores fortes". Nada disto acontece com aquilo a que apelido de subliteratura que, se lida em demasia, causa obstipações irritantes e danos permanentes. Por mais que eu "leia" (não leio) Rodrigues dos Santos, Sparks, Nora Roberts, Rebelo Pinto ou uma senhora com um nome italiano que é muito "lançada" por cá, etc., etc., não só não me entretenho - para isso busco "policiais" - como nenhum daqueles objectos me permite encontrar com outros estados de ser que usam a mesma linguagem que eu uso mas que, ao contrário do que eu digo ou escrevo, provocam um gozo estético a que, à falta de melhor, chamamos literatura. Os "temas" destes objectos citados constituem uma pífia "literatura de ideias" e um amontoado de lugares-comuns que não resistem nesse confronto com outros estados de ser porque não pressupõem quaisquer estados de ser especiais para serem lidos. Limitam-se a borboletear com as palavras e com aqueles que as compram em blocos de gesso. Nem para a colecção de lepidópteros de Nabokov serviriam. Uma boa martelada nesses blocos de gesso e não se perde, de facto, nada.
9 comentários:
eu gostava de comentar este post e o comentário do paulo querido, mas não vou fazê-lo porque senão ainda aparece aí o bonifácio a falar de impostos e a chamar-me filho daquilo a que já chamaram o João Gonçalves e eu não me esqueço quando, nem como nem porquê...
em vez disso recordo ao paulo querido o poema de jorge de sena (da "Arte de Música") "«LA CATHÉDRALE ENGLOUTIE» DE DEBUSSY"
só um pequeno excerto:
"É desta imprecisão que eu tenho ódio:
nunca mais pude ser eu mesmo -- esse homem parvo
que, nascido do jovem tiranizado e triste,
viveria tranquilamente arreliado até à morte.
Passei a ser esta soma teimosa do que não existe:
exigência, anseio, dúvida, e gosto
de impor aos outros a visão profunda,
não a visão que eles fingem,
mas a visão que recusam(...)"
L'écrivain, c'est celui qui résume le pourquoi du monde dans un comment écrire", escreveu já não sei quem.
Que o Rodrigues venda muito, ponto um. Ponto dois, prefiro Cícero, Séneca, prefiro-me a mim mesmo para êxtases de estesia literária.
Agradeço ao Dr. João Gonçalves a possibilidade que me dá, sem eu pedir, de me brindar com textos muito cerebrais e com muita estética. Agradeço aos comentadores que são sempre uma fonte e uma possibilidade de aguçarmos a nossa mente.
Voltando à literatura. De facto, a literaura pode proporcionar entretenimento, mas de acordo com a perspectiva do autor deste blog e das perspectivas de autores que traz para a sua argumentação ela é~, na sua essência, estética das palavras e das imagens. E, nesta medida, será mais prazer do que entretenimento. Procuramos o entretenimento que se esvai depois de consumido em vez do valor da estética e do prazer que modificará a nossa percepção e marcará a nossa visão do mundo? Pois, a cada um aquilo que mais lhe aproveita.
Cada um tem direito ao seu traque.
Desculpem o desassombro.
Que José Rodrigues dos Santos já tenha vendido um milhão de livros é, em primeiro lugar, bom para ele. Os direitos de autor devem ser bastante interessantes e muita inveja causarão em outros(as) que, querendo-os, não os conseguem. Recordo, a propósito, Corin Tellado, finada no ano que se está esgotando, que escreveu, salvo erro, mais de 4000 títulos em perto de 400 milhões de livros.
Mas, de facto, o que é que isto tem a ver com literatura?
PS - A propósito de Gorki (alvo de uma boa "martelada" por parte de Nabokov), recordo-me de ter comprado, aí por 1975/76, na feira do livro na Av. da Liberdade, por 17$50, o melhor (do muito) que li do autor: «A confissão de Matvei» (na tradução inglesa, "A Confession").
A leitura das aulas de Literatura Russa do Nabokov serve essencialmente para uma coisa: entre todas para provar que Estaline não foi um defeito genético do comunismo mas sim uma evidência da alma russa.
O autor de Lolita, de ascendência aristocrática, critica com o aparo espetado contra tudo que lhe soe a ideias de que não comungue. Aliás, por cá há muita crítica dessa, estalinista com polarização inversa.
Os autores arrumam-se nos que não prestam porque não pensam como nós e nos que prestam porque não nos ofendem a sensibilidade ideológica.
Com mais ou menos gesso, Nabokov foi incapaz de apreciar Gorki apenas porque este defendeu a expropriação latifundiária. Mas isso é do domínio freudiano e não das musas.
Mais lúcido, o nosso padre Manuel Antunes - que triste ser português - foi capaz de criticar o autor soviético sem que a aversão ao marxismo lhe embotasse o distanciamento.
O JG parece o Vasco Pulido Valente há 40 anos atrás...
Que parasitismo.
É simples, lá pelo quarto de século cheguei a uma conclusão tramada, a literatura morreu com o Henry Miller, e é tramada porque me tramou, apenas isso, pois que depois dele, isto é, escritores & escrevinhadores posteriores, não encontrei mais nenhum que realmente me provocasse gozo estético e me arrebatasse do lado das palavras, tal foi o efeito que o sacrista do Miller teve no adolescente que eu aparentemente fui, descobri -- isso sim -- autores anteriores a ele que me levaram ao êxtase, de resto fui entretendo como pude os neurónios e os olhos, não com literatura light (JR dos S só na pantalha, li uns croquetes de MRP na MaxMen por curiosidade com a "novidade" (a revista, mais que a cronista)), mas com alguns injustamente chamados sub-géneros, como o policial e a ficção científica (que tem escritores magníficos, embora eu com a fc é como com o presunto, saboreio poucos mas mastigo de todos) e a banda desenhada, a romanceada sobretudo, mas também a de arrojo gráfico (lá está, é consumo da tal estética mas por via "intra-venenosa"), e isto tudo para dizer que sim, que concordo, já concordava no geral com o anterior post, fica tudo resolvido com esta fita-cola: "que não passe de entretenimento". Porque aí começam os (des)níveis. Entre os que descobrem mundos distantes nas palavras de JR dos S e "experiência" em MRP, e os que estiveram lá, fizeram aquilo e trouxeram a camiseta.
Para uns, "aquilo" passa de entretenimento. Para outros, não. É isso aí dos "estados".
O meu ponto não era este, mas passou a ser.
Também não era o efeito alavanca de alguma subliteratura nos índices de venda de livros no país, mas aproveito e subscrevo o comentarista do post anterior que referiu a tese.
No mais: porque o pude observar nos meus próprios desvios, e nos desvios e gente próxima, concordo quanto aos efeitos perniciosos da sobre-exposição às subliteraturas e sub-géneros, o excesso de consumo deforma um homem; não percebo a ligação ao dinheiro (é uma escala de sucesso absolutamente distinta da qualidade e independente do grau de "literaturês" de uma obra ou escritor); ah e ainda, obrigado pela menção.
Incrível a coincidência, ainda ontem perante a pergunta: tens algum JRS que me emprestes? Respondo: não! Não é o estilo de livro que eu compre. Porquê? Não tenho absolutamente nada contra JRS, nem contra os seus leitores, cada um deve ler o que muito bem lhe apetece. Concordo com a linha do JG, seguindo Harold Bloom, qto ao Nabokov é muito mais respeitável o autor do que o homem da crítica. O gozo estético é evidentemente bem mais formativo do que o entretenimento, contudo não desprezo o segundo, tem o seu lugar, como qualquer outra manifestação artística mais ligeira.
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