A NOVA CABALA

No avião em que regressei de Paris, na segunda-feira, vinha Mário Soares. Sozinho, sóbrio na elegância dos seus oitenta e tal anos, Soares lia os jornais franceses. Provavelmente está deliciado com Ségolène Royal, uma mulher bonita e uma nulidade socialista típica dos tempos modernos. Custa-me observar como Soares se recusa a entender a verdadeira natureza do seu actual sucessor à frente do PS. Um homem que nos ensinou que o poder não era tudo, que não se muda o outro contra a sua vontade e que a vida existe para ser vivida em liberdade - com prazer e sem autoritarismos histéricos - não pode estar com o deserto humano e político representado pelo actual primeiro-ministro. Pior. Ao elogiar o governo como o fez na cerimónia dos 34 anos da fundação do PS, Soares solidarizou-se, entre outras coisas, com a "política do espírito" do dr. Santos Silva, com dois manifestos erros de casting como Pinho e Lino, com a azougada Pires de Lima e, finalmente, com a duplicidade de Sócrates. Sócrates esmagou politicamente Soares nas presidenciais - servindo-se miseravelmente dele quando, ao início, Soares imaginava que era ele quem se ia servir do pretty boy - e a noite passada Sócrates serviu-o gelado aos militantes atentos, venerandos e obrigados que, certamente embasbacados pelas cadeiras do poder, aplaudiram de pé o velho "leão". Acontece que discursos como os de Soares já Cavaco anda a fazer desde que tomou posse, o que torna ainda mais patética a intervenção do ex-pai da pátria, humilhado literalmente por estas duas figuras gradas do actual regime. Mário Soares é dos poucos homens que não precisa do regime para nada. E muito menos precisa de fazer fretes do género "Sócrates, coitadinho, és tão bonzinho e estás a ser vítima de uma cabala", recordando o defunto camarada Ferro cuja tese da "cabala" acabou como se conhece. Como nas palavras indecifráveis de Maurice Blanchot, Soares colocou-se definitivamente no pas au-delà. Acho que nem ele soube bem o que quis dizer.