"As sombras cresciam mais densas, corriam já quase toda a praia até à orla das ondas - até ao extremo da baía onde já palidamente tremeluzia o farolim. Só o cão. Via-o sempre. Talvez porque estivesse entestado ao sol, com um halo à volta, entestado ao clarão vermelho que o sol fora largando atrás. E era belo assim, como deitado num berço, divinizado de luz, um deus nascido? Um cão. Olho-o longamente, comovo-me - se eu me ajoelhasse? Devo estar bem bêbado mas não é possível. Tenho um sistema hidráulico perfeito, aguento quanto quiser, podia estar mesmo a beber toda a vida. Na extensão marinha, a luz amortece. Reparo nisso porque os cadáveres de um a um, parece-me, de um a um, submersos na água mais escura, foram desaparecendo, até que ficou só o clarão ondeado à superfície do mar."
Vergílio Ferreira
2 comentários:
Esqueçamos o cão por hoje... a atracção pela água regressa insistentemente!
Faz-me lembrar James Joyce in “Ulisses”
“O que é que Bloom admirava na água...?
A sua universalidade: a sua igualdade democrática e a constância à sua natureza procurando o seu próprio nível: a sua vastidão no oceano...a sua profundidade ...a inquietação das suas ondas...a independência das suas unidades...a variabilidade dos estados do mar...o seu apaziaguamento após a devastação...a sua imperturbabilidade em lagoas e pequenos lagos nas montanhas...a sua violência em maremotos, trombas de água... torrentes, remoinhos, turbilhões, enchentes...cataratas...inundações,dilúvios, aguaceiros... as suas virtudes curativas... a suas propriedades para limpar,apagar a sede e o fogo, alimentar a vegetação... as suas metamorfoses como vapor, névoa, nuvem, chuva, saraiva, neve, granizo.. a sua solidez em glaciares, icebergs...a sua docilidade em fazer funcionar azenhas...a sua fauna e flora submarinas... a sua ubiquidade em constituir 90% do corpo humano: a nocividade dos seus eflúvios em pântanos lacustres..poças estagnadas sob a lua em quarto minguante.”
Soberba recordação!
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