24.9.06

O MESMO ARREMELGADO IDIOTISMO


À memória de Fernando Pessoa

Se eu pudesse fazer com que viesses

Todos os dias, como antigamente,
Falar-me nessa lúcida visão -
Estranha, sensualíssima, mordente;
Se eu pudesse contar-te e tu me ouvisses,

Meu pobre e grande e genial artista,
O que tem sido a vida - esta boémia

Coberta de farrapos e de estrelas,

Tristíssima, pedante, e contrafeita,

Desde que estes meus olhos numa névoa
De lágrimas te viram num caixão;

Se eu pudesse, Fernando, e tu me ouvisses,

Voltávamos à mesma: Tu, lá onde

Os astros e as divinas madrugadas

Noivam na luz eterna de um sorriso;

E eu, por aqui, vadio de descrença

Tirando o meu chapéu aos homens de juízo...

Isto por cá vai indo como dantes;

O mesmo arremelgado idiotismo
Nuns senhores que tu já conhecias
-
Autênticos patifes bem falantes...

E a mesma intriga: as horas, os minutos,

As noites sempre iguais, os mesmos dias,

Tudo igual! Acordando e adormecendo

Na mesma cor, do mesmo lado, sempre

O mesmo ar e em tudo a mesma posição
De condenados, hirtos, a viver -

Sem estímulo, sem fé, sem convicção..


António Botto

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