26.9.06

CARTA ABERTA A UM SECRETÁRIO DE ESTADO

Caríssimo dr. João Figueiredo,

V.Exa. desilude-me. Não que eu possua qualquer tipo de ilusões acerca do país e do regime. Sou um niilista social e não acredito no progresso. V.Exa. acredita, embora o seu rosto e os seus olhos me lembrem "a noite do mundo" que vai ao encontro de todos os homens, aquela de que falava Hegel. Mas para quê a filosofia quando ela é banida dos currículos escolares por inútil para o tal progresso em que V.Exa. confia? E para quê a filosofia quando um empresário notoriamente bimbo, que acompanha Sua Excelência o Presidente da República na visita de Estado, afirma a plenos pulmões que o que é preciso é estudar economia, gestão e "qualidade"? Será que ele lava os dentes? Ainda ontem V. Exa. permitiu que a opinião que se publica e o audiovisual envacalhassem a função pública sem distinções, nem dó, nem piedade. Parece que servir o Estado se tornou subitamente um pecado capital. Ou acha V. Exa. que se nos entregarmos nas mãos da "sociedade civil" e das empresas que vivem do Estado e dos impostos que os funcionários públicos e os trabalhadores por conta de outrem pagam (porque não têm outro remédio), empresas essas que declaram consecutivamente prejuízos fiscais e honorários dos seus administradores inferiores aos que eu pago à minha empregada doméstica, o país, digamos assim, "neoliberalizado" a partir da Expo e de Matosinhos, era mais próspero? Supõe ainda V. Exa. que precisamos de heróis avençados para nos explicarem o que já todos nós sabemos e que, por razões de oportunidade política, passaram hoje a vilões? Eles sempre foram assim, dr. Figueiredo, ou não sabia? O senhor "fixou" metas e imaginou que eles, os sábios, as iam cumprir. Então e a vidinha deles? Não são as presenças em "comissões" salvadoras da pátria que os safam. O senhor queria "resultados" em Novembro de 2005 e eles só lhe deram uma parte agora. O senhor queria outra parte dos resultados em Abril de 2006, e eles ainda nem sequer a começaram. Ah, dr. Figueiredo, desconfie sempre dos demasiado engravatados que, depois, acabam sempre a assoar-se à sua gravata. Finalmente os seus sábios querem que V. Exa. reduza para 45 dias o prazo para a conclusão dos concursos públicos. Concordo e ajudo-o com uns exemplos. Por mero desporto, em Maio último concorri democratica e legitimamente a três ou quatro lugares das chamadas "direcções intermédias". Entreguei o que me pediram e cumpri o que me exigiram ou, pelo menos, ninguém me notificou para adendas. Num deles, o método de selecção era a entrevista pública. Compareci. Um dos membros do júri era professor universitário, externo ao organismo. Só soube que o concurso já estava encerrado num corredor, por mero acaso e há poucos dias, e a pessoa escolhida- por sinal da "casa" - já enfiada no lugar. Consta que me calhou um honroso "bronze". Então e a lei e "Código de Procedimento Administrativo", perguntará V. Exa? Pergunte-lhes a eles, que são um organismo de "controlo". Claro que existem tribunais, mas não tenho a certeza se me apetece confiar-lhes os papéis para "administrarem a justiça" porque também não tenho a certeza se ela é bem "administrada". Para mau, já basta assim. Depois, entreguei mais três papeletas, se a memória me não falha, noutros organismos. Em cinco meses - 150 dias -, nem um murmúrio ou lista de admitidos ou excluídos. Nada. Um desses organismos foi dirigido por V. Exa. e agora tem uma magistrada do Ministério Público à frente. Naturalmente não espero dela outra coisa senão o cumprimento da legalidade. Quando é que a vai cumprir, é que, pelos vistos, não sei. Do meu, nem vale a pena falar. O "pecado" de ter estado fora uns anos redime-se, como V. Exa. bem sabe, com a eternização no mesmo lugar da carreira. Não gosto de falar de mim, mas também não aprecio falar do que não sei. Disto tenho a certeza. Mais, aliás, do que V. Exa. tem em relação ao que pediu à sua "comissão". Desculpe que lhe diga, mas é bem feito. V.Exa. tem no Estado pessoas com formação e experiência que o poderiam ter ajudado a não levar tudo tão insensatamente para o fundo e para a presente trapalhada do "trás-para-diante". Descanse que não sou eu, que, por não acreditar, seria sempre um mau elemento. Um "complicado", por assim dizer. Todavia, o que não falta por aí são "perfis de competência". Esta carta é uma forma delicada de lhe tentar fazer ver que, com o devido respeito, V. Exa. não vai a lado nenhum. Nem V. Exa., nem o governo de que V. Exa. faz parte. Nem, graças a Deus, o país que tem um dia glorioso dedicado exlusivamente à bola. Isto só é bom para safados e V. Exa. é um homem de bem e de recta intenção. Não perceba isso demasiado tarde.

Com a consideração e a estima pessoais do,

João Gonçalves

8 comentários:

Anónimo disse...

O EÇA é que tinha razão !!! Infelizmente, ele está sempre actual!!

Anónimo disse...

O EÇA é que tinha razão !!! Infelizmente, ele está sempre actual!!

João Villalobos disse...

Brilhante! :)

Maria Lua disse...

Lindo, lindo, lindo!
Pronto, está dito!

Anónimo disse...

Mande-o aviar para Alcoentros...

Anónimo disse...

Meu caro joão Manuel G.

Só se desilude quem se iludiu.
E, francamente, nos tempos que correm, não revela ter bom senso realista, iludir-se.
1 abraço
Jorge G. Santos

Anónimo disse...

«tem no Estado pessoas com formação e experiência»
Confirmo absolutamente.
Quisessem as chefias.
Mas não sabem, nem querem saber.
O desperdício conjugado com a decadência.
Estamos tramados.
Nada a fazer.
Z

Anónimo disse...

Podem dizer-me o que é hoje em dia, o perfil de uma pessoa competente na AP? Trinta anos, arrogante, bem vestido(a) e muito, muito ignorante, mas com pose, bem falante e falsos como Judas...É isto que hoje interessa na AP. Bem, também tem de vingar gente como o Cravinho, porque ainda por cima, aqueles, podem ser corruptos, não digo que o são, mas para lá caminham. Isto está ingovernável, mas as escolhas são dos politicos, por isso não se queixem. Parabéns ao João Figueiredo que teve a coragem de extinguir algo que, com aquela forma de trabalho, confundiram muito a AP, e sabem o pior? Ninguém dizia que o Rei ia nuo. Por isso parabéns. Existem séniores na AP que têm curriculo de trabalho, de investigação, de estudo e que podem ter uma voz activa para ser ouvida. Também não serão todos, mas existem. Naõ matem a cotovia....... Vejam se ainda vão a tempo senão o Socrates, sózinho não vai a lado nenhum. Nem os Ministros com más escolhas fazem o que quer que seja dos seus Ministérios. Não basta ter uma boa politica. É preciso ter gente qualificada para, primeiro, dizer se é possível, naquelas circunstâncias, implementá-la e, caso seja possível, executá-la tal como foi criada. Para isso é preciso conhecer bem a AP, a Ciência da Administração, o Direito Financeiro da AP, o Procedimento Administrativo, as conexões tributárias dos actos, o direito civil, na parte dos contratos, da sociedades, a gestão pública, etc, etc, etc, e, por fim mas não dispiciendo, amar a AP. Até lá.