Faz hoje cinco anos entrei pela primeira vez no São Carlos como fugaz membro da sua direcção. Ia lá desde os concertos para jovens geridos por José Atalaya, com os meus pais, aos domingos de manhã. No liceu, assistia, das defuntas "torrinhas", ao que se passava lá em baixo. Corria para o Coliseu, às "récitas populares", cedinho para apanhar bom lugar na "geral", com uns binóculos de caça que o pai de uma colega emprestava. Ouvi Kraus, pela primeira vez, na varanda do Coliseu de pé. Sim, porque o Coliseu, quando era vivo, era indissociável do São Carlos. Nesse tempo o Coliseu tinha um bar, um inesquecível bar, a que o saudoso Manuel Rio de Carvalho dedicou um magnífico artigo no Jornal de Letras, algures nos anos oitenta. Os bingos e a remodelação mataram esse esprit. Depois veio a Zampieri, a fogosa Zampieri com o Don Carlo, Il Trovatore e a Aida. Veio e ficou por muitas e felizes récitas, desde Luisa Miller à Força do Destino, da Norma à Manon Lescaut. Ribeiro da Fonte falhou uma Semiramide com Marilyn Horne, mas a Horne veio em forma de concerto. Pizzi encenou o mais belo Rinaldo a que assisti, com Tereza Berganza. Nos últimos anos de vida, João de Freitas Branco regressara ao teatro onde tinha, em pleno "fascismo", acabado com a obrigatoriedade do "black tie". Depois da EP - com João Paes, Serra Formigal, Manuel Vaz, Luís Barbosa e Ribeiro da Fonte - chegou a Fundação, o primeiro e mais decisivo passo para o abismo. Seguiram-se o instituto público e dois directores artísticos, um nacional e Paolo Pinamonti. Amaral Lopes, em 2002, convidou-me para integrar o conselho directivo com Pinamonti e uma senhora cujo nome já esqueci. Percebi rapidamente, como José Figueiredo com Salazar (não é presunção, é uma realidade), que o São Carlos só podia ser dirigido em ditadura. Mantenho-o. O actual governo acabou com o instituto e com Pinamonti, e criou uma entidade pública empresarial para pastorear o teatro e a Companhia Nacional de Bailado. A temporada em curso - que prossegue esta semana com o Macbeth - é ainda da responsabilidade de Paolo Pinamonti. Do senhor alemão escolhido pelo comissário Vieira de Carvalho, pouco se sabe e ele, seguramente, pouco há-de querer saber. Os novos responsáveis pela gestão, oriundos do ISCTE e do INH, só terão sucesso se efectuarem uma profunda ruptura no funcionamento da casa, agora com a CNB incluída. Ruptura que passa por acabar com sinecuras inexplicáveis, com disparidades salariais incompreensíveis e com uma burocracia interna totalmente desajustada e macrocéfala. O teatro deve concentrar os seus esforços e o dinheiro dos contribuintes na valorização dos corpos artísticos - coro, orquestra e, agora, bailado -, simplificando e reduzindo ao mínimo a componente "administrativa", ou seja, não adicionando os "vícios" do teatro com os da CNB. Quando me demiti - uma coisa que me doeu como doença incurável - defendi, como continuo a defender, que o teatro necessita de ser fechado para para se "reformar". O "show must go on" a qualquer preço não serve, a prazo, os interesses do teatro e, em última instância, os do público que desconhece "da missa a metade". O São Carlos é apenas uma ilha no meio da desgraça e da miséria gerais. Será. Salazar, todavia, considerava-o a "sala de visitas" do país e por isso o protegeu. Este regime e os seus serventuários têm-se servido mais do São Carlos do que jamais o serviram a ele. Não temos outro. Convinha, mesmo a quem não sabe dar-se ao respeito, respeitá-lo.
4 comentários:
Eu nasci e cresci no canto coral: cantei todas as peças eruditas que um coro deve inscrever obrigatoriamente no seu repertório, do canto gregoriano ao neo-paganismo de Orff. Na década de setenta, em plena infância, acompanhei o meu Orfeão a Lisboa e a Setúbal; mais tarde, aí voltei já para cantar boa parte do Messias, de Händel.
Sempre vibrei com a Arte e tenho uma paixão intensa pela ópera, mais avivada agora que nunca devido às sinuosidades da minha história pessoal. Compreendo a causa que te move, João. É preciso que a Roda da Fortuna rode e justiça e oportunidade se reencontrem para fazeres de novo aí, no S.Carlos, o que falta.
Plenamente de acordo. Linkei.
Fátima
A coexistência de bailado, música e ópera não é nada que salas bem mais significativas, e de países com mais sólida tradição cultural, não façam. Em Munique, cidade que tenho a sorte de conhecer bem e onde ainda há dias vi Wagner (Der fliegende Holländer na Staatsoper) e Mozart (Così fan tutte no Prinzregenten Theater) é assim: já lá vi concertos, bailado... E nunca vi a nenhum apreciador de música cairem-lhe os parentes na lama por isso, nessa cidade onde há mesmo uma grande noite da Música (bem inclusiva e que neste ano foi num belíssimo sábado quente, 12 de Maio) onde todo o provincianismo pseudo-elitista cai ao lixo de onde nem devia sair.
O Teatro São Carlos e, neste caso, a gestão do OPART, só necessita de gestores competentes, inteligentes, justos e que devolvam ao pessoal, especialmente ao administrativo, o reconhecimento do seu trabalho e a equivalente remueração. Não precisa ser fechado, precisa de ser limpo do "lixo" que vai ficando de umas gestões para outras e que põem sempre à frente os interesses pessoais e criam a confusão no meio da qual vão reinando....Deste tipo de directores/administradores/vogais é que os trabalhadores estão fartos!! Nem todos, claro.....
Enviar um comentário