Sob o pomposo título de «A Harmonia das Nações: A Europa Barroca», lá voltou o CCB a oferecer aos lisboetas a sua anual patuscada de solfa com todos. Eu sei muito bem que o preparado vem todo de fora, em camiões TIR, devidamente acondicionado, pronto a levar ao microondas e a servir. Assim não dá grande trabalho, e o tempo que resta chega e sobra para ir aos manuais de história do Ciclo tirar a esmo nomes de gente coroada para dar mais cachet às cantinas. Tudo isto dou de barato, já que os tempos de come-em-pé que vivemos são o que são. Dou igualmente de barato a misturada artística exibida ao longo de todo o embrechado programático, no qual nem sequer estranhei ver o bom a seduzir o assim-assim e o menos mau de mão dada com o vamos a ver, sem referir as entorses ao instrumentarium que de imediato anotei após consulta ao desdobrável.
Tampouco falo da manifesta falta de acerto que percorria o programa, no qual se não vislumbrava uma simples peça de Scarlatti (o Domenico) ligada a D. João V, que o contratou, ou – o que é nada – apenas quatro sonatas a evocar Maria Bárbara, que com ele aprendeu a tanger cravo e o levou consigo para a corte de Madrid. E o resto, não sendo igual, era o mesmo. Purcell (o Henry), que mais feliz estaria junto da sua tão benquista e chorada Maria II, só o achei em salas de outras nobrezas, e Couperin (o François), cravista e compositor de Luís XIV, esse, coitado, nem por uma única vez sequer se deu a ouvir nos salões do Rei-Sol. Quanto a Rameau (o Jean-Philippe), alguém lá se dignou a meter uma cunha para que entrasse nos áulicos jardins de Sanssousi e do Buen Retiro, certamente por falta de convite para o caveau de Passy do estroina Sieur La Pouplinière. E com respeito a Gibbons, Weelkes, Byrd, Praetorius e Hassler, aí é que não logrei mesmo alcançar as etéreas esferas de quem neles viu tanta precocidade barroca, já que a época em que viveram nunca por nunca mo faria suspeitar. Será que se abriu algum dicionário ao calha, e das trevas se fez luz?
Mas se até aqui o desatino ia nisto, o título, esse, apresentou-se-me logo como um despautério coroado de rei. Posto de parte o subtítulo «A Europa Barroca», a qual – santa ignorância a minha! – ainda hoje continuo sem perceber bem de que Europa e de que Barroco se palrava (que afinidades éticas, estéticas ou meramente cronológicas podem existir entre o freirático Quinto João e o iluminista Frederico-o-Grande, ou entre este e Luís XIV, o prussiano livre-pensador, logo homem da razão e da ciência, e o francês, tal como o seu homólogo português, com uma visão teocêntrica do mundo?), posto de parte o subtítulo, dizia eu, fica o título «A Harmonia das Nações».
Que harmonia? A do baixo-cifrado? A dos sistemas de composição em uso? A das arrebatadas querelas em torno da ópera, primeiro a dos bouffons e depois a dos gluckistas contra os piccinnistas? Ou a harmonia no sentido de entendimento sem manhas, de respeito mútuo, de consenso, de concerto? Se da primeira hipótese se tratava, o que nem por sombras acredito que por uma única vez haja passado pela cabeça dos organizadores, essa harmonia, afora certos pormenores formais, será muito discutível. E se se tratava da segunda, então aí o caso mais delicado se me oferecia, assim pensei, pois relevava de uma certa falta de conhecimentos de História.
Sem pretender ser exaustivo, cabe então perguntar: que harmonia existiu entre a França e a Inglaterra de Maria II, cujo consorte, Guilherme de Orange, holandês, protestante, depois de em 1688 ter feito a «Gloriosa Revolução», obrigou o sogro, Jaime II, católico, a fugir para aquele país, ali passando a conspirar, com o apoio de Richelieu, contra o genro que o derrotara? E Luís XIV, mais as suas guerras com os holandeses, com a Liga de Augsburg (animada pelo referido Guilherme de Orange), e a Guerra da Sucessão Espanhola, esta acabando por envolver praticamente todas as potências europeias numa série de infindáveis recontros e cavilosas alianças que ocuparam boa parte do reinado do francês? E Frederico II, «o Velho Fritz», longamente envolvido em guerras com a Áustria, e depois na Guerra dos Sete Anos, sem enumerar as infindáveis batalhas que travou com Carlos da Lorena, com russos, com boémios, com polacos, etcoetra, etcoetra?
E basta de guerras e de tanta desafinação de nações! Quem ler estas linhas que ajuíze da harmonia das ditas, bem como da frivolidade que hoje reina nos mui cultivados espíritos daqui e de alhures. Adiante, pois o que interessa é martelar a toda a hora que o êxito no belenense Centro Cultural foi grande, a ocupação dos seus espaços maior e que para o ano há mais bodo. Tudo está bem quando acaba bem, e é o que conta. O resto não passa de conversa fiada de uns quantos desmancha-prazeres que teimam em fazer reparos a tudo. No fundo, para quê tanta impertinência se o próprio termo «barroco», português de origem, significa já de si pérola rugosa, gema falsa, talvez mesmo pechisbeque (digo eu)? Por isso, vendê-lo a incautos, como no Martim Moniz, levando-os a crer que compram joalharia, não passa afinal de um velho conto de vigário, arte em que ninguém nos leva a palma. Assim são os espertos. Quanto aos que reparam em tudo – os impertinentes –, a esses só lhes posso recomendar que meditem neste preceito do visionário Cocteau: «Le drame de notre temps, c'est que la bêtise se soit mise à penser.»
«Somos poucos mas vale a pena construir cidades e morrer de pé.» Ruy Cinatti joaogoncalv@gmail.com
1.5.06
EQUÍVOCOS DE UM TÍTULO E OUTROS ENGANOS
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2 comentários:
Aqui está um poste a que tiro o chapéu.
Ainda que eu seja muito pouco versado nestas lides, acho que o entendi perfeitamente e saúdo-o por ter posto o dedo na ferida, relativamente ao que se passa em Portugal, e aos respectivos enlatados que nos querem fazer engolir.
Embora não estivesse presente no CCB, conseguiu transmitir-me de forma que presumo, fiel,o clima do evento e respectivas fragilidades e incongruências...
Termino com uma transcrição de Ruud K. Maas - the world of Baroque Favourites- Decca-, que, como é óbvio, é mais do que do seu conhecimento:"The word “baroque” comes from the Portuguese term barrocco meaning a misshapen pearl, and initially came to be applied to music in a pejorative sense – as misformed and extravagant – at the end of the period we now think of as “Baroque”. This comes as something of a shock given that music from this era now comfortingly familiar; however, in retrospect it does point up an important distiction between the period 1600 – 1750 and the immmediately preceding “Renaisssance” era, the later typified by the skilful interplay of parts characteristic of the great sixteenth-century polyphonic vocal music.(...)"
Parabéns.
... "EXCELENTE" Post
... obrigada
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