«Esta história lisboeta é curiosa. Primeiro, pelo modo como surgiu. Ao princípio, se bem se lembram, ia ser apenas outra "trapalhada" para fazer escorregar mais uma candidatura de Santana Lopes. Mas a maré cresceu, e de repente as águas estavam a molhar inquilinos inesperados. Há aqui uma lição para os jardineiros de notícias: cuidado com o que plantam, porque estas ervas são traiçoeiras. Entretanto, toda a gente teve de meter as pedras no saco e deixar Santana passar. Quanto aos inquilinos, forçados pela inundação noticiosa a trocar os apartamentos da câmara pela berlinda da imprensa, imagino que a maioria esteja a regressar ao conforto municipal dos seus lares. Tudo acabará bem. Já em 1989, segundo lembrou Mário Crespo, a história correu e ninguém se aleijou. Há países onde estas coisas têm consequências, mesmo que temporárias. De uma das vezes que foi forçado a demitir-se, Peter Mandelson não tinha feito mais do que aceitar confidencialmente um empréstimo particular de um seu colega no Governo (para comprar uma casa, essa fatalidade). Note-se: o dinheiro não era do Estado, mas do ministro que o emprestou. No entanto, pareceu impróprio que o detentor de um cargo público dependesse, sem declarar, do favor pessoal de outro. Em Lisboa, o usufruto de um bem público foi cedido por um presidente da câmara a uma vereadora da oposição, eleita pelos cidadãos para criticar e escrutinar os seus actos. Mandelson regressou: aqui, ninguém chegou a ter de sair (...) Qual é então o segredo de consciências tão brancas e limpas como as que vimos estendidas na corda de secar da imprensa? Que detergente produziu tais maravilhas de inocência? Quais os seus ingredientes? Dois, pelo menos. O primeiro é este: antes de se meter nestas coisas, o cidadão precisa de adquirir previamente, nos saldos da vida, o perfil "moral" apropriado. Os personagens da história, como lembraram os próprios ou o seu clube de fãs, são "referências", sobrecarregadas de virtudes, méritos, talentos e opções políticas correctas. Tornaram-se predestinados, cuja cotação moral já não depende dos seus actos. Criticá-los só deixa mal quem critica. O segundo ingrediente é este: convém ter o cuidado, como tiveram neste caso sucessivas gerações de presidentes, vereadores e funcionários, de criar hábitos e precedentes, sem deixar que se estabeleçam regulamentos e controle. Estamos aqui perante o ovo de Colombo da irregularidade: onde não há regras, ninguém pode violar regras. Eis por que, neste caso, nenhuma legalidade foi de facto beliscada, e nada de "anormal" se fez. Com estes passes de mágica, qualquer de nós pode pôr tranquilamente a consciência a dormir em qualquer casa: todas as acusações parecerão mesquinhas, nenhuma terá base legal, e a descida de Portugal no índice da Transparency International continuará a ser um mistério. Valerá a pena notar que muitos casos de "envelopes pardos" também começam assim, com vazios legais e pessoas insuspeitas, prontas para se justificar pelas suas "circunstâncias"? O Inferno não está apenas cheio de boas intenções, mas também de boas consciências..»
Rui Ramos, Público
2 comentários:
De facto estes casos aparecem e desaparecem sem consequências. Uma explicação é que (na generalidade, enquanto povo) temos as elites que merecemos! Somos iguais a eles; se pudéssemos faríamos exactamente o mesmo!
Em que saldos de que vidas adquirimos esse "perfil moral"? Será genético? Será que no fundo não passamos de parolos egoístas e vaidosos, com acesso ao Mundo e arvorados em cosmopolitas?
Nem mais! O artigo devia ser recomendado à senhora Inês Pedrosa que, em defesa da amiga Sara Brito, ataca e insulta quem afirma o óbvio. Para pessoas decentes, bem entendido.
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