7.1.10

«A BOA DISTÂNCIA»



Sugeri no mês passado que, no novo pântano intelectual e político em que se tornou o PS, fazia falta a palavra de pessoas como Manuel Maria Carrilho. "A boa distância" é, de alguma maneira, a "resposta" a esse desafio e o título que o seu autor escolheu para o "ciclo" de artigos de reflexão que fará, às quintas-feiras, no Diário de Notícias, um jornal muito necessitado de alguém fora da "quadratura" paroquial.


DE OLHOS BEM ABERTOS

por Manuel Maria Carrilho

«Deus ri-se das criaturas que se queixam dos efeitos,
mas que continuam a alimentar as suas causas»

Bossuet

Vivemos hoje, individual e colectivamente, lúcida ou inconscientemente, as consequências das nossas opções. Quando estas consequências são boas, todos reivindicam um papel, quantas vezes a despropósito. Quando elas são más, não aparece ninguém a assumir responsabilidades. Pelo contrário, todos as enjeitam, escondendo-se atrás do inesperado, como se de repente uma ordem sobrenatural – a crise, claro! – se abatesse sobre a humanidade. Assim entendida, a crise corre o risco de conduzir a uma inquietante irresponsabilidade, passando-se ao lado do essencial, que é – quer se trate do autismo financeiro ou do desastre ecológico, do impasse económico ou do susto social – o do realista confronto connosco próprios. Confronto incómodo porque, por um lado, revela toda a fragilidade do racionalismo calculista que tem dominado o mundo nas últimas décadas. E, por outro lado, porque destaca a força dos elementos irracionais – a que os gregos chamavam pathos – no comportamento humano, seja pelo lado dos que iludem (“traders”, publicitários, políticos, agências de “rating”, etc), seja pelo lado de todos os que são iludidos, numa espiral de cumplicidade que marcou o singular crescimento destes últimos vinte anos. A crise é, contudo, a hora do inevitável confronto com algumas evidências, que têm sido evitadas pela cegueira que sempre tende a acompanhar a perseguição dos nossos desejos. O homem, dizia Adam Smith, gosta de colher o que nunca semeou, vivendo o impossível como se de algo natural se tratasse. E o impossível foi, na circunstância, um crédito sem consequências, como se as dívidas contraídas se esfumassem no imperativo da despesa ou na magia do consumo. Foi esta a ilusão que a crise veio por brutalmente em causa. Tanto como evidenciar os indubitáveis excessos da finança, ela veio questionar este modo de viver, que se impôs com a precarização generalizada de populações enfraquecidas pelo aumento do custo de vida, mas constantemente seduzidas e electrizadas pelo hiper-consumo. Situação a que só conseguiram fazer face, dada a estagnação salarial, recorrendo cada vez mais ao crédito. O calcanhar de Aquiles está, pois, aqui: o crescimento assentou, nas últimas décadas, e de uma forma cada vez mais intensa, no crédito. Esgotado este recurso, dados os já estratosféricos níveis da dívida (primeiro da privada, e agora também da pública), haverá algo que ponha de novo este modelo em funcionamento? Esta é a questão nuclear, que continua sem resposta. E, entretanto, a tenaz aperta-se. Como ainda por estes dias explicavam J.P.Fitoussi no Le Monde e P.Krugman no The New York Times, ou se continua a beneficiar o infractor que joga com cinismo no “too big to fail”, correndo-se o risco de se caminhar para uma nova bolha. Ou se aposta na normalização da situação, e as hipóteses de recessão e de uma explosão do desemprego são imensas. Não admira, pois, que se fale tanto em mudar de paradigma. Mas para se mudar de facto de paradigma, é fundamental que, de olhos bem abertos, se compreenda a verdadeira novidade desta crise, tanto quanto à sua natureza como quanto às suas consequências. Este passo, contudo - como bem se viu no mês passado em Copenhaga -, dificilmente será dado pelos mesmos actores que conduziram à situação actual. Esperá-lo, é como acreditar que um dinossáurio se torne num mamífero… É preciso outro espírito, que combine realismo e utopia e perceba que hoje tudo está de facto ligado. São necessárias outras visões, outras instituições e outros gestos, que não sejam de pura retórica, como acontece com as vagas promessas de um crescimento “mais verde”, “mais sustentável” ou “mais tecnológico”. Como diz Mia Couto, este “desenvolvimentês” tornou-se na linguagem do engano mais comum, porque fala do que na verdade é incapaz de pensar. E, assim, mantém os que a ouvem reféns de tudo aquilo que conduziu à crise quando, justamente, do que se precisa agora é de mudança de expectativas e de comportamentos, de linguagem e de valores.

6 comentários:

Anónimo disse...

Sendo uma boa reflexão, não passa do pensar "políticamente correcto" a demoras, de alguém que conviveu tranquilamente no governo com a gestão suicidária de guerras. Quando começou no nosso País, a loucura do crédito fácil, a aventura da subsidiação dos combustíveis, a demagogia de cancelar barragens no Coa?

radical livre disse...

estamos a anos-luz da 'correctio morum' e da 'feminae probrosae' da legislação Flavia.

num mundo onde as regras de higiene são mais evidentes a prostituição masculina e feminina continua sem vigilância médica.

para os fabricantes de leis a saúde dos contribuintes não é levada em linha de conta

importante é o aborto, o casamento dos homossexuais, a eutanásia

ainda acabamos em 'carregadores de liteiras' (lecticarius)

Anónimo disse...

De necrófagos pertencentes ao sistema está o mundo cheio. Gostei do pormenor dos cirúrgicos "20 anos" (podia ter escrito 14). Mas o melhor é a solução: mudar de expectativas, linguagem, comportamentos. Como dizia Guterres: o mundo olhará para portugal com outros olhos. Já Sócrates optou por um portugal mais próspero, mais rico, mais moderno e blá, blá, blá. Não há nada como as contas do lápis da mercearia, mas nesse ninguém toca.

Eduardo Freitas disse...

Ron Paul tem umas ideias estimulantemente opostas ao mainstream de que Paul Krugman faz parte. Em particular, de há muito que defende serem os Bancos Centrais, e em particular o FED que, by creating money out of thin air, instigam a práticas e comportamentos que, aquando do rebentar da inevitável bolha, levam à ruína milhões sem beliscar uns quantos, entre eles os agentes do "Big Government".

Manuel Brás disse...

O racionalismo calculista
dominante na sociedade
espelha a faceta simplista
delirante de alarvidade.

É medonha a espiral
dessas forças sedutoras
baseadas numa moral
de tenazes delatoras.

A mudança oratória
deixando o ilusionismo
é vital e probatória
para abolir o cinismo.

Anónimo disse...

Mauzinho.Não percebeu que o Estado fabricou a crise porque precisa de Juros baixos para engordar o seu poder. Mas a luta do Estado e dos Socialistas de Esquerda e Direita contra a inevitável semana de trabalho de 4 dias e consequente necessidade da eficiência do estado ao nível de uma Ryanair(um exemplo entre muitos) é uma batalha perdida.
Mesmo com o Estado(mais as empresas dominantes) a tentar por todas as maneiras tornar as empresas(as que estão a nascer são as mais afectadas) mais ineficientes aumentando a regulação não conseguem esconder a grande diferença entre a produtividade Privada vs produtividade Pública, que está destruir o Ocidente.

lucklucky