12.1.10

VAMPIRISMO


Pouca, pouquíssima gente sabe falar de livros nos jornais portugueses. O que sabem é, geralmente, falar uns dos outros. O meio é pequeno e em cada português que sabe colocar um sujeito, um verbo e um complemento em linha recta, mesmo com erros, habita um "escritor" por vir. E os "críticos", naturalmente, possuem a mesma legítima ambição. Quando damos por eles, já estão a falar para eles, dos amigos deles ou dos que apreciavam que fossem amigos deles independentemente de viverem na Buraca ou no Nepal. Por isso quase nada do que passa por "crítica literária" em jornais é crítica literária, pelo menos na tradição ilustre da dita cuja. É, quando muito, divulgação editorial aqui ou ali pincelada pelo "interesse" do seu autor e pela sua capacidade pouco mais que gramatical, quando o é sequer. São muitas vezes aqueles que não são "profissionais" que nos supreendem por terem sido supreendidos, bem ou mal, por um livro. Parece-me ser o caso que reproduzo seguidamente. O livro que Rogério Casanova interpreta - e um bom crítico tem de saber interpretar e não limitar-se a emitir ruídos - é o que mais vejo a ser lido no metro ao lado de calhamaços de capas escuras sobre vampiros. Rodrigues dos Santos, em certo sentido, também é um vampiro. "Vampiriza", com a complacência dos seus milhares de leitores, a língua e a literatura portuguesas. O que Casanova (nom de plume) explica eloquentemente e com a ironia que jamais pode faltar ao crítico, é que Rodrigues dos Santos tem perfeitamente em conta o público ao qual se dirige. Aquelas personagens presumivelmente falam assim porque o leitor delas também fala. Aquilo vende-se porque o leitor imagina-se dentro de uma conversa "fina" que ele "atinge". E reconhece-se naquelas expressões mesmo quando aplicadas a situações ficcionais. O sucesso de Rodrigues dos Santos é directamente proporcional ao vocabulário que usa e que, com mais bomba ou menos bomba, mais estrangeirismo, menos estrangeirismo, as pessoas que o devoram usam. Estão bem uns para os outros. Pum!




Jolly Bad

por Rogério Casanova (in Suplemento Actual do Expresso de 9.1.10)


«Uma das muitas características partilhadas por todas as personagens de Fúria Divina é a escabrosa incompetência nas funções que desempenham: os investigadores não sabem investigar, os sedutores não sabem seduzir, os terroristas não sabem aterrorizar. Curiosamente, algumas exibem os requisitos minimos para serem críticos literários; embora nenhuma das personagens seja abençoada com a meta-revelação de que faz parte de um livro sofrível, três delas fazem a segunda observação mais pertinente que é possível fazer sobre o que está a acontecer à sua volta: “isto parece um filme”. Um filme, de facto, e não dos bons. Temos a vítima que aproveita o último fôlego para desenhar uma mensagem críptica no chão; temos o explosivo desactivado no último segundo; temos louras “parecidas” com Meg Ryan e coronéis russos que “dão ares” a Anthony Quinn. O resto do elenco é despachado com pinceladas Benetton: os americanos dizem “hell”, “goddamn it”, “fucking tarado”ou “fucking génio”; a professora inglesa diz “jolly good”; o cientista alemão diz “Gott in Himmell!”; o agente da Mossad diz “shalom”; o militar russo diz “previt”; um eventual bombista da ETA diria certamente “Olé!” antes de acender o rastilho. A acção envolve as tentativas de um terrorista islâmico para detonar um engenho nuclear, e as tentativas de uma equipa multinacional para impedir o atentado. “Acção” é talvez um termo demasiado caridoso para aplicar ao que é essencialmente diálogo expositivo. Como num gymnasium para cretinos, as personagens passam grande parte do tempo a informarem-se umas às outras de coisas que já deviam saber, e a chegar às conclusões óbvias vinte páginas depois do leitor, não deixando, para o efeito, de se “fitarem interrogadoramente”, ou de assumir “uma expressão interrogadora”, ou “uma expressão interrogativa”, ou até mesmo, se estiverem com pressa, “uma expressão inquisitiva”. Em sucessivas visitas guiadas ao Museu de Pesquisa Rodrigues dos Santos, recebemos extensos memorandos sobre a construção de uma bomba nuclear, a história do Islão, a topografia de Veneza, e a gastronomia dos Açores. Depois temos a prosa, que é fucking péssima. Provavelmente consciente da sua deficiente imaginação auditiva e do seu espectacular anti-talento dramático, o autor desenvolveu uma técnica de mímica literária, que consiste em distorcer a fisionomia das personagens até esta se acomodar àquilo que a prosa não consegue transmitir sozinha. Isto resulta em sucessivas catástrofes estilísticas , nas quais agentes da CIA e fanáticos religiosos são reduzidos a participantes num sketch dos Malucos do Riso, “erguendo”, “carregando” e “franzindo” as sobrancelhas, “virando”, “revirando” e “arregalando” os olhos. O muzak inócuo do romance anterior do autor, A Vida Num Sopro, (menos mau do que este, no sentido em que uma bomba convencional é “menos má” do que uma bomba nuclear), dá lugar à dissonância e ao feedback. Cabeças “giram pela sala” e olhares são “arremessados” pela janela, sem a intervenção de qualquer engenho explosivo. Com o pé firmemente apoiado no pedal wah-wah, o autor rasga malhas inacreditáveis sobre, entre outras coisas, baratas que se peidam em francês; trucida frases com rimas internas (“pegou num bule fumegante e deitou chá na chávena do visitante”); e ergue andaimes desnecessários sempre que algúem abre a boca, recorrendo ao seu maneirismo predilecto, aqui completamente fora de controlo. (Uma amostra reduzida: “exclamou, intrigado”, “murmurou, atónito”, “sussurrou, pensativo”, “suspirou, exasperado”, “hesitou, desconcertado”, “argumentou, combativo”, “sorriu, benigno”, “abanou a cabeça, frustrado”, “gritou, escandalizado”, “mordeu o lábio, hesitante”, “abriu a boca, estupefacto”. Este leitor contou mais dezassete exemplos antes de desfalecer, extenuado). Exibindo todos os defeitos e nenhuma das virtudes do género a que tenta pertencer, Fúria Divina é uma guerra santa sem tréguas, na qual os únicos mártires são os leitores. »

10 comentários:

Anónimo disse...

Ao que isto chegou! Já não bastava o Sokas...

AAA disse...

eheheh, hilariante.
Li o Codex não sei quantos e jurei para nunca mais gastar dinheiro em lixo literário deste fulano.

Alves Pimenta disse...

Nunca li (nem lerei) qualquer livro desse sujeito.
Bastou-me ouvir-lhe as frequentes calinadas, no tempo em que ainda tinha pachorra para o Telejornal da RTP. Livra!

Miguel Neto disse...

Pedi emprestado um livro desse "autor". Sem me considerar nem sequer um pequeno crítico literário, fiquei com a impressão de que se tratava de uma das maiores porcarias que me tinha passado pelas mãos.

A propósito e pegando no "Prós & Prós" de ontem (que já não via há mais de um ano e que ontem vi porque um dos jovens intervenientes é amigo cá da casa), quantos jovens autores, com muito mais talento e capacidade, não conseguem ver publicados as suas obras porque estão "tapados" pelo dr. Rodrigues dos Santos e outros equivalentes?

Outro aspecto "interessante" e que dá que pensar, é o facto de tanta gente, comprando os livros do dr. Rodrigues dos Santos, lhe alimenta o ego, lhe recheia a conta bancária e assim promove e apoia a mediocridade.

Isto está lindo e tudo aponta para que vá ficar ainda melhor.

Manuel Figueiredo disse...

Caro João Gonçalves

Na minha modesta opinião, as críticas que tem feito à literatura (com ou sem aspas) do Rodrigues dos Santos são algo injustas.

Só li dois livros e meio (o meio é precisamente a “Fúria Divina”) e não me parece que ele tenha a pretensão de escrever grande Literatura, pelo contrário, julgo que o objectivo é somente o entretenimento dos leitores com histórias actuais (actuais, no sentido da oportunidade dos assuntos abordados), com mais ou menos “suspense” como obriga o género.

Contudo, há uma perspectiva dos livros do Rodrigues dos Santos que tenho visto pouco mencionada: a abordagem de temas históricos ou científicos e respectivas teorias mais ou menos especulativas. Por falta de conhecimentos suficientes tomo por bom o que leio, tanto mais que não dei conta de críticas relativamente a esses temas – estou a lembrar-me das especulações sobre a identidade de Colombo e das teorias sobre a formação do Universo. Julgo mesmo que a maioria das pessoas está como eu, sem capacidade crítica relativamente ao que lê, independentemente da opinião sobre o estilo literário do autor.

É novamente o caso da “Fúria Divina”. Como livro de aventura, ficção, acção, seja lá qual for a categoria, parece-me muito fraco em comparação com os dois livros anteriores que li (vou a meio mas subscrevo em quase tudo Rogério Casanova). No entanto, tem componentes muito preocupantes (diria mesmo aterradores) com origem no “Museu de Pesquisa Rodrigues dos Santos”, como lhe chama Rogério Casanova. Estou a pensar na anunciada (pelo homem da CIA) inevitabilidade de um atentado atómico (a facilidade de construir uma bomba desde que se possua urânio enriquecido, eventualmente roubado, e a ausência de um Estado/País que possa ser responsabilizado pelo sucedido) e na explicação do fundamentalismo islâmico.

Este livro contém, em traços gerais, a história do Islão desde a ida de Maomé para Medina até à actualidade (o Profeta, o Corão, o Califa, a divisão entre sunitas e xiitas, a faceta guerreira do Islão, a relação entre crentes e infiéis, o sufismo, etc., e já nos tempos que correm, o ensino do Corão nas madrassas e o respectivo financiamento, a guerra santa, etc.). Mais uma vez não sei avaliar o rigor do que é dito pelos personagens, por vezes em diálogos metidos a martelo, como é o caso das lições sobre fundamentalismo islâmico do herói “tuga” a uma agente da CIA especialista em terrorismo islâmico... Mas se o autor está razoavelmente correcto, então a existência de um Islão moderado propagado pela verdade oficial do Ocidente não existe! Um verdadeiro crente interpreta à letra o Corão e, entre outras coisas, acredita na difusão e imposição pela força da sua Fé! Ou seja, o chamado “fundamentalista” não é mais do que um bom muçulmano que interpreta à letra o Corão; o muçulmano “moderado” não é um bom muçulmano, é um tipo que por medo ou comodismo não está para fazer guerra aos infiéis. Isto para já nem falar naqueles que partilham valores culturais com o Ocidente como, por exemplo, a igualdade de direitos e deveres para homens e mulheres. Uma visão muito pouco animadora, convenhamos. Só por causa disto dispensava a oferta deste livro – gosto de me entreter, não gosto de me incomodar.

Talvez esteja por aqui parte da razão do sucesso de Rodrigues dos Santos. O saber tratar de uma forma ligeira temas complexos (ou “complicados”, como agora se diz a propósito de tudo e de nada), e assim levar muita gente a viajar para lá do “capacete” informativo que nos dá uma visão repetitiva, cheia de lugares comuns e politicamente correcta do mundo que nos rodeia.

PS=Trafulhice desde sempre disse...

Falando de livros...o João teria coragem para fazer um post "literário" destes?
http://arrastao.org/sem-categoria/a-internet-faz-milagres/

Gosto pouco do Daniel Oliveira, mas desta vez esteve bem. Vamos ver se o João tem coragem para lhe seguir o exemplo, nesta matéria.

fado alexandrino. disse...

Vende como paõzinho quente.
Já juntei dinheiro e vou comprar "As Benevolentes" graças ao que disse do livro.
Obrigado.

observador disse...

'tá bem,

Mas parece-me que muito dos ambientes do Grande Jogo estão mais próximos do "Homem que era quinta-feira", do que imagina.

com uma desvantagem, não tem um autor com nível a escreverem-lhes o guião.

Portanto, não amofine muito com o Rodrigues ... é bastante informativo.

jaa disse...

Adorei quando, na primeira das entrevistas que anda a fazer a escritores, o Rodrigues dos Santos perguntou ao Ian McEwan se costuma pensar no Nobel e este respondeu: «No. Do you?»

ALVITREIRO disse...

A crítica maior á sua obra, está depositada.

Podem escavacar-lhe a obra: ele, contente, aplaude-se mentalmente, lembrando o dinheiro encoirado na "burra".