Eu não morro de amores pela Dra. Cardona. Acho que a sua escolha para a Justiça se ficou a dever exclusivamente à estreita ligação que mantinha com Portas e a algumas suas necessidades estratégicas de circunstância. No Governo praticamente não se dá por ela e, para sua infelicidade, esteve gravemente doente. Porém, neste episódio dos descontos dos funcionários do seu Ministério, Cardona foi literalmente lançada às feras. Primeiro, pela baralhada discursiva e inócua do seu secretário de Estado. Depois, pelo silêncio incomodado e pela falta de solidariedade do seu mentor e lider, cujos traços mais impressivos do seu carácter se revelam nestes momentos. Finalmente porque o primeiro-ministro, só depois de devidamente "picado", lhe manifestou vaga confiança. Se a matéria que deu azo a este desconforto nas hostes maioritárias é séria, como parece que é, então também um outro ministério, o das Finanças, aparece pelo meio. Mas desta casa não se falou. Et pour cause. O episódio vale o que vale e porventura haverá por aí um relativo manancial de situações idênticas que suavemente virão a lume. Cardona foi apanhada no fogo das dissenssões subterrâneas que grassam na contentinha maioria, dentro do PSD, e entre o PSD e o pequeno partido à sua direita. É provável que depois disto já tenha percebido qual é o seu lugar e o que é que ele vale na contabilidade dos interesses da coligação. A imagem de Celeste Cardona, ontem, sentada na bancada do Governo, era apenas a de uma mulher sozinha.
«Somos poucos mas vale a pena construir cidades e morrer de pé.» Ruy Cinatti joaogoncalv@gmail.com
31.1.04
30.1.04
SEM CONSENSOS
Soares é fixe...
Soares é fixe...
Um grupo de anacoretas transversais aos dois principais partidos, desta vez em número de 30, apelou ao "consenso" em sede de finanças públicas, para salvar a consolidação orçamental, como se ela tivesse salvação. Estas estimáveis luminárias não perceberam que o "clima" não é o melhor para consensos gelatinosos. A moleza da indiferenciação, nos dias que correm, é o que melhor convém ao processo de afundamento social, económico, cultural e cívico "em curso". Bem andou Mário Soares que, num artigo na Visão e hoje na televisão, disse que era fundamental "separar as águas" e estar disponível para rupturas. Deve saber-se com quem se está e contra quem é preciso travar combate, escreveu. Neste momento, qualquer tentativa de consenso, seja em que sector for, é um puro equívoco. Apenas nos olhos de Durão Barroso brilha uma esperança que mais ninguém vê. Uma vez mais, ele sabe que tem que acontecer qualquer coisa, só não sabe é quando... Só mesmo o papagaio do "regime", o Sr. Luis Delgado, é que consegue ver coisas extraordinárias no meio desta barafunda devidamente institucionalizada, "maioritária", sem sentido e "SA". Por isso me coloco ao lado de Mário Soares. Há momentos na vida em que é preciso mudar de lugar, curvar noutra direcção e passar a estar num "outro lado" qualquer. Sem consensos.
27.1.04
A CULTURA DO BOLHÃO
Na posse do director do fundido Instituto das Artes, e instado pelo recém nomeado no que respeita às "cativações" em PIDDAC e à ameaça que este e outros eventuais "cortes" orçamentais representam para o sector, no cumprimento dos seus "objectivos" para 2004, o Ministro da Cultura recorreu à sua já gasta algibeira da "gestão flexível". Pedro Roseta, aliás, para além de ministro da jóia perdida, ficará certamente na história da Ajuda como o "gestor flexível". Alguém que, ao depauperamento financeiro e estratégico da sua área de governação, responde com a amabilidade do contorcionismo da intendência. Eu sugeri lá para trás que se fechasse a Ajuda e se entregasse o assunto nas mãos da DGO, até por uma questão de dourada poupança e de maior competência, um registo muito a propos.. Um dia virá em que a "gestão flexível" não vai chegar, e nem sequer os bons ofícios "todo-o-terreno" da multifacetada adjunta do ministro para estes assuntos lhes acudirão. Numa outra banda da cultura, houve notícia de que uma cátedra de Português na Sorbonne fechou, e não me constou que alguém com responsabilidades políticas tivesse emitido um vago pio sobre o tema. Conviria, pois, que estas matérias que se prendem com a qualificação da Pátria- artes, património, leitura, teatro, ópera - não fossem tratadas como couve-flores cambadas ou peixe miúdo, e geridas, nalguns casos, como se se tratasse de bancadas de legumes ou de peixe do mercado do Bolhão.
25.1.04
EQUÍVOCOS
O PS colocou em Lisboa uns cartazes contra Santana Lopes. A experiência já lhes devia ter ensinado que, mesmo a contrario, essa é a melhor maneira de o ajudar a promover-se. Santana adora fazer-se de vítima e sai-se bem no papel. Basta ler a última crónica dele no DN ou as intervenções nas televisões. Este tipo de propaganda "anti-propaganda" só favorece o supostamente criticado e há exemplos concretos que bastam para o confirmar. Com este fait divers apenas alimentam ainda mais a sua doentia obsessão belenense. Entretanto, é bom que o PS lhe vá atirando "mais" Carrilho "às canelas". MMC tem esse saudável dom da provocação inteligente que gera em Santana uma irritação que o denuncia. Tudo o resto é folclore e pequenos equívocos sem importância.
24.1.04
....No Teatro Nacional de São Carlos, até dia 1. Embora a encenação de Andrei Serban date de 1984, no meio do deserto em que estamos presentemente sentados, esta produção lírica é um trabalho competente e que conta no papel titular com uma das suas melhores intérpretes da actualidade, Alessandra Marc. Para mais, nada como recorrer à opinião especializada.
23.1.04
SEM TECTO ENTRE RUÍNAS
1. Uma organização futebolística internacional, cujo nome me escapa, considerou os estádios do Benfica, do Porto e do Sporting como dos melhores por esse mundo. As três semanas de circo anunciado para Junho de 2004 justificaram as obras, mas nem este evento próximo consegue animar a Pátria. O pobre do Dr. Arnaut deve andar preocupado com a circunstância de o País não estar já a rejubilar com o Euro 2004. Apesar de tudo, eu acho que as pessoas não são completamente parvas.
2. Lá de Bruxelas, da Comissão, veio a análise demolidora para a agenda das nossas finanças públicas, do nosso mercado de emprego, do nosso investimento no conhecimento, etc, etc. Para quê investir no conhecimento e na investigação se o betão do futebol é mais vistoso? Não me lembro de tamanha degradação da nossa vida colectiva desde a altura em que, em 1981, o Dr. Balsemão teve a infelicidade de ser primeiro-ministro. Quem votou em 2002 para mudar, deve sentir-se defraudado. O Governo tem uma agenda medíocre e, em certas áreas, mesmo má. A peripécia do bilião de euros para a formação e para a investigação, proclamada em Óbidos, diz tudo. Não há nada de novo, é pura execução do QCA em vigor para esses registos. Porém, nem o Dr. Barroso resistiu à bravata barata, que já foi desmentida pela ministra do sector no Parlamento. Segundo os doutrinadores oficiais, foi avistada em Óbidos a "viragem". Só mesmo nas pobres e vendidas cabeças desses patetas é que ocorrem visões deste gabarito. No País dos três gloriosos estádios, há quase meio milhão de desempregados, falências em série, um serviço nacional de saúde anestesiado em demagogia, a promoção cultural e do património a degradar-se e um profundo mal-estar social e psicológico.
3. Pela primeira vez na minha vida, fiz greve. Fi-la contra esta parasitagem institucional da nossa inteligência cívica, contra o domínio do que foi outrora um grande partido nacional por uma agremiação populista de expressão popular diminuta, contra a incompetência caciqueira instalada e contra o comodismo carneiro. É lamentável que esta situação só se mantenha por causa da matemática parlamentar e da névoa mediática de um processo judicial. Na realidade, e se se vasculhar com seriedade, não há mesmo nada por trás do cenário. Lembrando Raul Brandão, estamos sem tecto, entre ruínas.
2. Lá de Bruxelas, da Comissão, veio a análise demolidora para a agenda das nossas finanças públicas, do nosso mercado de emprego, do nosso investimento no conhecimento, etc, etc. Para quê investir no conhecimento e na investigação se o betão do futebol é mais vistoso? Não me lembro de tamanha degradação da nossa vida colectiva desde a altura em que, em 1981, o Dr. Balsemão teve a infelicidade de ser primeiro-ministro. Quem votou em 2002 para mudar, deve sentir-se defraudado. O Governo tem uma agenda medíocre e, em certas áreas, mesmo má. A peripécia do bilião de euros para a formação e para a investigação, proclamada em Óbidos, diz tudo. Não há nada de novo, é pura execução do QCA em vigor para esses registos. Porém, nem o Dr. Barroso resistiu à bravata barata, que já foi desmentida pela ministra do sector no Parlamento. Segundo os doutrinadores oficiais, foi avistada em Óbidos a "viragem". Só mesmo nas pobres e vendidas cabeças desses patetas é que ocorrem visões deste gabarito. No País dos três gloriosos estádios, há quase meio milhão de desempregados, falências em série, um serviço nacional de saúde anestesiado em demagogia, a promoção cultural e do património a degradar-se e um profundo mal-estar social e psicológico.
3. Pela primeira vez na minha vida, fiz greve. Fi-la contra esta parasitagem institucional da nossa inteligência cívica, contra o domínio do que foi outrora um grande partido nacional por uma agremiação populista de expressão popular diminuta, contra a incompetência caciqueira instalada e contra o comodismo carneiro. É lamentável que esta situação só se mantenha por causa da matemática parlamentar e da névoa mediática de um processo judicial. Na realidade, e se se vasculhar com seriedade, não há mesmo nada por trás do cenário. Lembrando Raul Brandão, estamos sem tecto, entre ruínas.
21.1.04
ENTRE O RISO E O ESQUECIMENTO
O Sr. Bush brindou os EUA e o mundo com mais uma pérola sobre o "estado da União". Como está em fase eleitoral, prometeu para "dentro" mais dinheiro nas áreas da governação que mais votos podem dar ou tirar. Para "fora", esclareceu que, lá onde os interesses norte-americanos se encontrem ameaçados, ele manda avançar a tropa, sem dar satisfações a ninguém. Mas a parte trágico-cómica da peroração da criatura deu-se quando Bush se referiu a coisas inteiramente privadas, tais como o sexo e o casamento. Aos jovens americanos, o presidente recomendou (sic) a abstinência sexual, designadamente por causa das doenças. Relativamente ao casamento, lembrou os distraídos do carácter "sagrado" (sic) deste contrato, evidentemente só celebrável por pessoas de sexos diferentes. O que equivale a dizer que zurziu a hipótese demoníaca de same sexers se unirem, de direito ou de facto. Embora eu considere o casamento em geral como uma piroseira burocrática, seja entre quem for, entendo que não compete a nenhum poder político definir com quem é que os seus cidadãos devem dormir. George W. Bush, do alto do seu limitado horizonte intelectual, não pensa assim e disse-o ao mundo. O que é grave é que este cavalheiro seja tido por alguns governos do planeta como o seu guru político e, em casos extremos, espiritual. Bush já deu provas suficientes de que não compreende o mundo em que vive. Nem sequer se pode dizer que seja medievo, porque isso constituiria uma ofensa histórica. A América, que eu muito admiro, não tem praticamente memória nenhuma, tendo lá simultaneamente o seu "tudo" e o seu "nada". Os EUA "profundos", conservadores, desconfiados e puritanos, apesar de tudo mereciam melhor do que esta pudicícia pouco mais que boçal de um presidente perdido algures entre o riso e o esquecimento.
20.1.04
DE QUE FALAMOS QUANDO FALAMOS DE JUSTIÇA?
2. Diz Deleuze:
A jurisprudência é a filosofia do direito, e procede por singularidade, prolongamento de singularidades. Evidentemente, tudo isto pode dar lugar a tomadas de posição se se tiver alguma coisa a dizer. Mas hoje não basta "tomar posição", ainda que concretamente. Seria necessário um mínimo de controlo sobre os meios de expressão. Caso contrário, rapidamente daremos por nós na televisão a responder a perguntas idiotas, ou num frente-a-frente, num costas-a-costas, a "discutir um pouco". Participar, portanto, na produção da emissão? É difícl, é uma actividade profissional, já não somos nós os clientes sequer da televisão, os verdadeiros clientes são os anunciantes, os famosos liberais.
(in Conversações (1972-1990), trad. de Miguel Serras Pereira, Ed. Fim de Século, 2003)
Michel Foucault
e Gilles Deleuze
1. Tendo pela frente os rostos patibulares dos senhores que administram a justiça neste País, o poder político legitimamente sufragado nas urnas foi dizer como acha que as coisas, justamente na justiça, se devem passar. Aos ditos senhores, os que estavam acordados, deve-lhes ter entrado por um ouvido e saído por outro. A imagem da justiça tem tudo a ver com aqueles facies inexpressivos, quase etéreos e geralmente alheios à vida vivida no quotidiano das pessoas vulgares. O Dr. Sampaio quer controlo judicial sobre determinados actos do Ministério Público (boa ideia!), o Dr. Barroso, promete "reformas" e o Dr. Júdice, da "câmara corporativa", exige-as. Aliás, o primeiro-ministro referiu há dias que a Justiça estava a passar por uma "revolução tranquila" que, de tão tranquila, como a sua sorridente titular, nem se dá por ela. Voltemos, porém, aos "administradores da justiça". Se há coisa que o nosso País tem a mais é juristas. É um curso que dá para quase tudo, e até pela negativa, como se viu nas recentes admissões ao curso de magistrados do CEJ. Para além disso, por detrás de cada gestor político, existe sempre um legislador impaciente e putativo. Todos gostam de deixar a sua "marca" e nada melhor do que um "diploma legal", a juntar aos muitos que servem para muito pouco, que ninguém lê e que ninguém cumpre. Por causa da "mediatização" de determinados processos, a justiça anda na rua. Vai ser "julgada" na rua, aliás, e muito por sua culpa. Talvez fosse mais útil aos seus "operadores" lerem Michel Foucault ou Gilles Deleuze do que marrar nas sebentas sofríveis dos nossos doutrinadores domésticos, ou aplicar cegamente códigos ou proclamar reformas que banalizam o conceito e a mensagem. A justiça desceu da barra do tribunal para a praça, para os jornais, para as televisões, para o abismo. Não está mais onde devia estar, nem se sabe quando e se voltará a estar. O exemplo disto está nas palavras do Procurador Geral da República, cujo discurso se centrou "num" processo concreto. O escândalo absorveu a justiça e, daqui em diante, é ele quem a vai absolver ou danar.
2. Diz Deleuze:
A jurisprudência é a filosofia do direito, e procede por singularidade, prolongamento de singularidades. Evidentemente, tudo isto pode dar lugar a tomadas de posição se se tiver alguma coisa a dizer. Mas hoje não basta "tomar posição", ainda que concretamente. Seria necessário um mínimo de controlo sobre os meios de expressão. Caso contrário, rapidamente daremos por nós na televisão a responder a perguntas idiotas, ou num frente-a-frente, num costas-a-costas, a "discutir um pouco". Participar, portanto, na produção da emissão? É difícl, é uma actividade profissional, já não somos nós os clientes sequer da televisão, os verdadeiros clientes são os anunciantes, os famosos liberais.
(in Conversações (1972-1990), trad. de Miguel Serras Pereira, Ed. Fim de Século, 2003)
Michel Foucault
e Gilles Deleuze
19.1.04
TRÊS VEZES
Nos 81 anos de Eugénio de Andrade, não é justo inventar palavras gastas para o felicitar. Basta-me a delicadeza do seu verso depurado e singelo, como um olhar manso lançado ao sol inesperado de Inverno, um lume onde tantas vezes me aqueço, aqui três vezes repetido.
BALANÇA
No prato da balança um verso basta
para pesar no outro a minha vida
(Ofício de Paciência, Porto, 1994)
DO LADO DO VERÃO
Vinha do sul ou dum verso de Homero.
Como dormir, depois de ter ouvido
o mar o mar o mar na sua boca?
AO LUME
Nem sempre o homem é um lugar triste.
Há noites em que o sorriso
dos anjos
o torna habitável e leve:
com a cabeça no teu regaço
é um cão ao lume a correr às lebres.
(O Outro Nome da Terra, Porto, 1988)
Nos 81 anos de Eugénio de Andrade, não é justo inventar palavras gastas para o felicitar. Basta-me a delicadeza do seu verso depurado e singelo, como um olhar manso lançado ao sol inesperado de Inverno, um lume onde tantas vezes me aqueço, aqui três vezes repetido.
BALANÇA
No prato da balança um verso basta
para pesar no outro a minha vida
(Ofício de Paciência, Porto, 1994)
DO LADO DO VERÃO
Vinha do sul ou dum verso de Homero.
Como dormir, depois de ter ouvido
o mar o mar o mar na sua boca?
AO LUME
Nem sempre o homem é um lugar triste.
Há noites em que o sorriso
dos anjos
o torna habitável e leve:
com a cabeça no teu regaço
é um cão ao lume a correr às lebres.
(O Outro Nome da Terra, Porto, 1988)
18.1.04
JOSÉ CARLOS ARY DOS SANTOS (1937-1984)
Por quê Mário?
Por quê Cesariny?
Por quê - ó meu Deus de Vasconcelos?
Não sabes que um polícia de costumes é o agente interino
da moral dos vitelos?
Alarga Mário a larga pássara do canto
e verás que à ilharga da imagem
o deus da vadiagem
fará de ti um santo.
Meu santo minha santa
Filomena tirada dos altares
quando a alma dos outros é pequena
melhor é ir a ares.
Areja Mário a pluma que sobeja
ao teu surrealismo
antes o ar de Londres que o de Beja
antes a bruma do que o sinapismo
Fornica meu poeta
sem a arnica
dos padrecas da terra.
Antes em Telavive que o tal estar
aqui
de cu pró ar
a ver quem nos enterra.
A fundo Mário se quiseres
baratinar os chuis.
Nem vinho já sabemos nem mulheres
mas os colhões de teres
os três olhos azuis.
O Diário de Notícias andou a semana toda a perguntar a leitores, com direito a fotografia e a profissão, se sabiam quem era Ary dos Santos. Naturalmente as respostas variaram entre o disparate e a aproximação. Houve sensatos que declararam não fazer a mínima ideia. Para além de poeta do amor e da cidade, Ary era essencialmente uma voz. Enorme, incómoda, corrosiva, por vezes irritantemente panfletária e de rima despropositada, essa voz (ao lado de outras vozes diferentes, como Natália Correia, Cesariny, Luis Pacheco ou Francisco Sousa Tavares, num registo completamente distinto) tinha o timbre da indignação e da insubmissão. Ao mesmo tempo que se entregava generosamente à vida, através da publicidade onde trabalhou, dos poemas que inventou, das canções que "poemou", Ary dos Santos sofria por dentro essa ternura mansa e quase vegetal de que falava O' Neiil e que, afogada precocemente em álcool e solidão, o exauriu aos 47 anos. Era convictamente comunista, morrendo na mágoa da rejeição da sua efectiva militância, pela ortodoxia de costumes do PCP, por ser homossexual. Frequentou as Faculdades de Direito e de Letras, contudo teve o bom-gosto de não concluir qualquer licenciatura. Em 1966, quando editou a sua Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, Natália Correia incluiu nela dois poemas de Ary dos Santos. É um desses textos, praticamente desconhecido no acervo mais divulgado do poeta, que aqui fica em jeito de saudação memorialística.
Em louvor e simplificação de Mário Cesariny de Vasconcelos
Por quê Mário?
Por quê Cesariny?
Por quê - ó meu Deus de Vasconcelos?
Não sabes que um polícia de costumes é o agente interino
da moral dos vitelos?
Alarga Mário a larga pássara do canto
e verás que à ilharga da imagem
o deus da vadiagem
fará de ti um santo.
Meu santo minha santa
Filomena tirada dos altares
quando a alma dos outros é pequena
melhor é ir a ares.
Areja Mário a pluma que sobeja
ao teu surrealismo
antes o ar de Londres que o de Beja
antes a bruma do que o sinapismo
Fornica meu poeta
sem a arnica
dos padrecas da terra.
Antes em Telavive que o tal estar
aqui
de cu pró ar
a ver quem nos enterra.
A fundo Mário se quiseres
baratinar os chuis.
Nem vinho já sabemos nem mulheres
mas os colhões de teres
os três olhos azuis.
A CONSOLAÇÃO DA FILOSOFIA
Descobri Maria Filomena Molder, na década de oitenta, num seu ensaio acerca de Jorge Martins ( Imprensa Nacional-Casa da Moeda ). Mais recentemente, "encontrei-a" num livro sobre Walter Benjamin, Semear na Neve ( Relógio D' Água ). A propósito da publicação de um novo livro, A Imperfeição da Filosofia, desta última editora, Helena Vasconcelos proporcionou uma notável entrevista com Filomena Molder no suplemento Mil Folhas do Público , de 17 de Janeiro. É reconfortante - deveria antes dizer inquietante, no melhor do seu sentido - o confronto com as palavras luminosas de Maria Filomena Molder. É uma vez mais no "consolo" da filosofia que apetece continuar depois de a ler. No meio de tanto lixo que nos entra pela porta através de tanta folha inútil de jornal, no meio da insuportável ignorância tagarela em vigor, esta serenidade perturbante é como que um bálsamo. Como tudo é efémero, desde as páginas web dos jornais até à própria utilização da linguagem, troco o habitual link pela reprodução integral desta inteligente entrevista, com a vénia costumeira a Helena Vasconcelos, directora da revista online Storm Magazine.
Um Brilho sem vacilações
Por Helena Vasconcelos
Maria Filomena Molder, filósofa, professora e escritora reúne em "A Imperfeição da Filosofia" (Ed. Relógio D'Água, Novembro, 2003) textos que exploram o universo do pensamento e seduzem pela sua extrema limpidez, aliada a uma enorme erudição. Filósofos - dos Clássicos aos que marcaram o século XX como Wittgenstein e Walter Benjamin - escritores e poetas - como por exemplo, Dante, Jorge de Sena e Rilke - pintores, fotógrafos, cineastas (como David Lynch) chegam-nos "revigorados" por esta voz que, ainda que meditativa , tem a capacidade de nos atingir em pleno e de nos estimular.
Maria Filomena Molder iniciou a sua fulgurante trajectória como docente do Departamento de Filosofia da Universidade Nova em 1980, onde lhe foi atribuída a cadeira de Filosofia Medieval. Dessa experiência ficou-lhe o interesse por Santo Agostinho, Santo Anselmo e outros doutores da Igreja com quem mantém vivo contacto, apesar de os seus interesses terem continuado a expandir-se, principalmente em campos tão férteis como a Estética e a Filosofia da Linguagem. Desta autora, é possível encontrar na mesma editora a obra "Semear na Neve".
Mil FOLHAS - Como se tem desencadeado o seu percurso de professora de Filosofia Medieval até esta "abertura" para a Estética e para a Filosofia da Linguagem?
Maria Filomena Molder - Na verdade, não estava preparada para ensinar filosofia medieval, no sentido de já ter levado a cabo uma longa e exaustiva investigação. Mas foi a cadeira que me foi distribuída quando, em 1980, entrei para o Departamento de Filosofia da Universidade Nova, precisamente no seu segundo ano de existência, e me dediquei inteiramente ao seu estudo durante os dois breves anos em que a leccionei. No entanto, desde os meus tempos da Faculdade de Letras que alguns dos autores medievais e dos seus problemas me tinham afectado profundamente (e evoco aqui o Padre de Cerqueira, meu professor de Medieval). Exemplifico: Santo Agostinho e o mistério do tempo e da memória, o modo original de conceber a linguagem, o modo de citar (que tomei como regra íntima) - quanto mais próximo de nós está um texto, menos a citação aparece como uma citação, ficando, por assim dizer, incorporada nas nossas palavras; Santo Anselmo e a sua delirante prova ontológica, que tantas voltas nos dá à cabeça, uma autêntica mina para exploração das relações entre o possível, o real e o pensável; o problema dos universais (a Arca de Noé é uma das suas apresentações mais antigas), que vem ter connosco sempre que tentamos distinguir um gato de um cão ou de saber qual é a diferença entre a arte e uma obra de arte. Além destes, tive a oportunidade de voltar a estudar durante esses dois anos um autor, que é como o último dos Gregos, Plotino, aquele que já não se vê propriamente como filósofo, e se atribuiu apenas o papel de intérprete, e que para as coisas da Estética (que é uma palavra tão recente!) se revelou um autêntico manancial, sobretudo para a compreensão da relação entre forma e informe e para a visão do universo como o acto de um dançarino.
P.- Acha que a sua base "medievalista" a preparou para o desenvolver do seu pensamento ou precisou de fazer um "corte" , voltando às raízes clássicas da nossa cultura?
R.- Releio sempre Plotino, que não é um pensador medieval, mas foi tão lido directa ou indirectamente pelos medievais, e regresso muitas vezes aos abismos agostinianos: ao imenso palácio da memória, ao labirinto do tempo (não só o famoso "se não mo perguntam sei o que é, se mo perguntam não sei o que é", mas também o surpreendente, o admirável, resultado - é que ele acaba mesmo por nos esclarecer em que consiste o tempo: uma distensão da alma). E, recentemente, por obrigações de distribuição de serviço, voltei à filosofia medieval, mas agora, e mantendo-se a minha impreparação nos termos referidos, decidi-me a ler com os estudantes "A Divina Comédia", na qual encontrei tudo o que esperava encontrar, mais tudo o resto: o "absoluto que pertence à terra", que sendo um leit-motiv de Broch, não se podia aplicar melhor a Dante - ele chamava-lhe liberdade; as relações entre poesia e filosofia, entre sonho, visão e poesia; a visão infernal do tempo; uma das compreensões mais temíveis do suicídio; o carácter desmedido, insolente, da poesia; uma metafísica da luz... Na verdade, encontra-se tudo n' "A Divina Comédia"! Levou-me a reler, por exemplo, o tratado sobre os anjos de São Tomás de Aquino. Acrescente-se que o melhor guia para "A Divina Comédia", poema que não poderia ser mais medieval e continua a resistir a qualquer esforço de classificação, é o poeta russo Óssip Mandelstam.
P.- O seu trabalho tem vindo a desenvolver-se de uma forma segura e revigorante. Como chegou a esta íntima conexão do pensamento filosófico com a literatura, a fotografia, o cinema, a ciência e as artes plásticas?
R.- Gostaria de lembrar que se pode fazer filosofia (aliás, o mesmo se passa com a arte) a partir do que quer que seja (embora não se faça de qualquer maneira, como também acontece com a arte), e sempre se fez. O primeiro crítico sistemático da poesia foi Platão, e o seu primeiro defensor, Aristóteles, que ainda sabia (e aqui ele já citava o dificílimo Heraclito) que em todos os lugares pode haver deuses ou, usando as palavras de Colli, o primeiro dever do filósofo é não caluniar as aparências. Desde pequena que não posso viver sem música e sem cinema. Descobri na adolescência a poesia, as outras artes.
P.- Fala de Sócrates e do seu pedido para que seja aceite a "natureza incompleta da filosofia". Em relação ao título deste seu livro - "A Imperfeição da Filosofia" - será que está a reportar-se às palavras do filósofo ? Ao debruçar-se sobre essa "imperfeição" quer dizer que a sabedoria implícita no termo Filosofia não é completa e que em vez de "consolo" traz a inquietação inerente à descoberta continuada?
R.- Reli Boécio e a sua "A Consolação da Filosofia" - uma obra escrita na prisão de Ticinium em 524 ou 525, antes de ele ser executado - por causa do Dante. É um admirável esforço de se libertar do desespero, da desilusão, do medo da morte e do desprezo pela morte desonrosa. Nessa obra, vemos pela última vez brilhar sem vacilações a relação entre filosofia e modo de vida ou, melhor, a filosofia entendida como modo de vida, coisa que os Modernos tenderam a ocultar de forma mais ou menos eficaz. No meio da devastação, há quem jogue ao xadrez. Que a filosofia providencie a consolação tem alguma parecença com o jogo: suspende-se a relação com a imediatez, abre-se uma pequena fenda e tenta-se respirar melhor. Por seu lado, a imperfeição tem a ver com incompletude, um sentimento de perda, e com agilidade, leveza, tentar não cair como o acrobata. Isto é, a filosofia traz realmente inquietação e só atravessando essa parede ardente podemos chegar a vislumbrar que ela rima com "descoberta continuada".
P.- Refere o suicídio no contexto a que a ele se referiu Camus que disse: "Só há um problema filosófico realmente sério: o suicídio."?
R.- Não me sinto capaz de falar do suicídio a não ser por interposta pessoa. N' "A Divina Comédia", Dante dá-nos a ver duas inexcedíveis aproximações, ambas perturbadoras. Num dos círculos do Inferno, numa vastidão hostil, crescem umas estranhas árvores, em cujos ramos retorcidos em vez de seiva corre sangue humano. Com crueldade involuntária, Dante parte um desses ramos e ouve uns lamentosos gritos de dor. Sem o saber, acaba de mutilar um suicida, por quem ele tem grande admiração e sente piedade, Piero della Vigna, homem de espírito nobre, acusado injustamente de traição. O suicida aos olhos da crença cristã é um escândalo, pois é um gesto de rebelião contra a vontade criadora de Deus, através da rejeição de si próprio, do seu corpo próprio. E, por isso, o suicida é aquele que jamais poderá resgatar o seu corpo, perdeu o direito a ele, quer dizer, o mistério da ressurreição foi por ele absolutamente selado. A outra aproximação encontramo-la à entrada do Purgatório, guardada por alguém que não é só um pagão, mas também um suicida, Catão. Mas, aqui, que a morte própria tenha origem no amor pela liberdade é um excesso bem-vindo aos olhos de Dante. Mais perto de nós, e próximo de Camus, temos o testemunho de Jean Améry.
P.- No seu texto sobre Rilke fala da "atmosfera da civilização", essas sucessivas "crostas" criadas pelo ser humano, que nos isolam de Deus. Será que, como diz Steiner, a religião poderia ser definida como uma resposta narrativa à interrogação de Leibnitz: "Por que há alguma coisa em vez de nada?"?
R.- Que a civilização seja constituída por uma sobreposição de crostas que nos separariam de Deus é uma ideia wittgensteiniana, ou melhor, é a devolução por Wittgenstein de um lugar- comum de muitas culturas, incluindo a ocidental, qualquer que seja a sua formulação, e isto desde que nós nos podemos lembrar. Esse lugar comum exprime o sentimento de perda de um contacto íntimo com o mistério da vida, do ser, de deus ou dos deuses, e obriga muitas vezes a procedimentos mais ou menos austeros de desprendimento e ascetismo, que atravessam a religião, a filosofia, a arte: voltar a conhecer a simplicidade do coração, voltar a beber a água pura das fontes. O que é uma maneira de reconhecer um grau de inadaptação "quantum satis" do ser humano à sua própria história. A pergunta pelo nada, a pergunta de Leibniz (retomada de maneira particular por Heidegger, do qual Steiner é um grande leitor), é a pergunta que não se refaz nunca do mistério de haver isto tudo que há, e conheceu respostas antes de a filosofia as ter formalizado. A descrição do Génesis é uma dessas respostas, que protege, como um tesouro ou um escândalo incomunicável, o porquê. Num dos mais belos hinos védicos, isso, que não pode deixar de ser ocultado, é apontado assim: pode ser que aquele que sustenta tudo saiba o porquê desta existência secundária (que inclui os homens e os deuses), mas também pode acontecer que esse também não saiba.
P.- Diz que a "imoderação própria da actividade filosófica tem a ver com a natureza do amor".Parece uma referência a uma espécie de movimentação física arrebatadora como o sexo. Será que se refere a Eros e à nossa mortalidade?
R.- Há uma embriaguez própria do acto contemplativo, no sentido em que a suspensão da vida a que ele obriga pode levar a um comprazimento solipsista, mas esse estar consigo próprio também pode originar formas mais ou menos agudas de dilaceração. Como muito bem diz a imoderação a que me refiro, atribuindo-a à natureza do amor, tem a ver com o deus Eros, essa força física, cósmica, que faz mover tudo e, em particular esses que tentam decifrar os discursos escritos nas suas própria almas, e, portanto, apresenta-se como um desafio à nossa mortalidade. É no "Fedro" que Platão descobre esse chamamento, que permita vencer a tentação (e a ilusão) solipsista, e toma formas paradoxais. No caso do discurso de Aristófanes, encontramos esta pergunta: os amantes não procuram outra coisa a não ser estarem juntos, que querem eles? No caso do discurso de Diotima, que se faz ouvir pela voz de Sócrates, no termo da descrição da escala de graus da experiência erótica, surpreendemos a alma a deixar cair tudo o que parecia decisivo: a figura, o saber, o logos, de modo a poder despenhar-se no pélago, no mar do desejo.
P.- A linguagem utilizada na sua escrita é muito próxima da Poesia e, em muitos aspectos possui uma espécie de esplendor da visualização cinematográfica e/ou fotográfica. Aliás, a sua íntima ligação com essas duas linguagens é bem explícita. Como distingue o olhar sobre a pintura, a fotografia, o cinema e o olhar focado na palavra e no pensamento?
R.- Há quem tenha, e de modo excelente (em particular os poetas e os artistas), encontrado grandes afinidades entre a palavra e a pintura. Mas, na verdade, trata-se mais da aproximação entre escrita e pintura do que da relação entre palavra e pintura. O pensamento dá-se bem com a palavra. Não me encontro entre aqueles para quem as palavras não chegam e, em contrapartida, estão convencidos de que há outras coisas que chegam. A palavra nasce na nossa boca, um dos lugares íntimos do nosso corpo, e, ao mesmo tempo, solta-se, expandindo-se, criando correntes de energia, e, como se não bastasse, é imediatamente um esforço compreensivo e expressivo. Ao contrário do que acontece com as mãos, instrumentos de realização, à voz humana, paradoxalmente, porque não podia ser-nos mais íntima, é atribuído um estatuto de mediação, que certamente provém da sua vocação conceptual, a palavra engana, louva, fere, mata, calcula. Quer dizer, a palavra não se mistura com aquilo de que fala, as palavras não são coisas. As artes passam adiante dessa separação entre o que há e o nosso dizer, há um elemento nelas que resiste definitivamente ao poder do logos (o que também sucede na poesia, mas com contornos únicos: a palavra resiste à palavra, e aí a música faz uma das suas aparições), que é o poder de irem ter directamente com as coisas, de se colocarem ao lado delas. Não sendo um prolongamento do corpo, as artes fazem parte do reino dos corpos, e qualificam directamente o espaço (aqui a arquitectura toma a dianteira). A escrita, em parte, também conhece estas determinações, daí a relação com as artes, mas há uma parte da escrita que não pertence ao espaço, que procede do som e do espírito da voz. Acho que não respondi inteiramente à sua pergunta. Mas sugiro-lhe que fiquemos por aqui.
P.- Os problemas da linguagem atravessam a sua obra. Vivemos em tempos babélicos? Ou, pelo contrário, estamos já num pós-Babel? Será que a palavra se transformou em ruído, que vivemos enclausurados neste "mortal coil" [invólucro mortal] onde ecoa o "shuffle" [tumulto] de que fala Shakespeare em "Hamlet"?
R.- Dá muito que pensar que na "Epopeia de Gilgamesh", onde existe a primeira referência ao grande Dilúvio, destruidor de toda a vida (a que só escapou um ser humano, o primeiro versão de Noé), tenha sido decidido pelos deuses, pela razão simples e suficiente de já não poderem suportar o ruído que os homens faziam. A Torre de Babel é um lugar de atracção atormentada e um lugar que originou muitos lamentos, em que se misturam a confusão das línguas, a mudez e a surdez, o ruído. De tempos a tempos o projecto da Torre retorna. Mas o momento em que Babel fosse resgatada, e o coração humano não conhecesse essa desmedida (talvez um outro nome para a pedra sacrílega que Nietzsche diz estar à porta de qualquer civilização), não seria o dia da vitória sobre a multiplicidade das línguas. Vejo-o mais como equivalente ao dia de Pentecostes: cada um falaria na sua própria língua e todos seriam capazes de entender.
P.- De que é que nós, os seres humanos, temos medo? Do vazio? Do Nada?
R.- Gostaria de lembrar que o primeiro texto literário conhecido, escrito na Suméria centenas de anos antes da "Ilíada" e da "Odisseia", a "Epopeia de Gilgamesh"(que é por um lado o nome da personagem e o próprio autor), concentra-se em volta de duas experiências, que se podem abater sobre qualquer um de nós separadamente, mas que no poema são simultâneas: cair em si e descobrir o medo da morte pelo escândalo da morte alheia, a daquele que se ama. Devido a essas descobertas, acompanhadas por sentimentos insuportáveis de terror e de perda, Gilgamesh empreende uma viagem à procura da imortalidade. No termo da viagem, depois de ter falhado todas as tentativas de o conseguir (e que se resumem, por um lado, à impossibilidade de dominar o tempo e, por outro, à incapacidade de se metamorfosear até ao fim), o príncipe Gilgamesh regressa à sua cidade de Uruk, senta-se à beira das suas muralhas e escreve num poema tudo aquilo por que passou. Quer dizer, aquele que procurou desesperadamente, e em vão, por uma imortalidade incomportável, acaba de surpreender uma outra forma de imortalidade, a única que nos convém: imprimir sinais em tabuinhas de barro, contar uma história. Mesmo presentes, os deuses não atravessam sempre essa história, sobretudo quando o que está em causa é contar a alguém aquilo que aconteceu, uma prerrogativa humana. É aí que se engendram o poder da memória, o dever da transmissão e a tarefa de rememorar. Por outro lado, se nós conseguimos imaginar a corrupção do nosso corpo, o nosso tornar-se cadáver, já não somos capazes de modo nenhum de antecipar a irrealidade do nosso pensamento, quer dizer, a imaginação sem a condição do espaço emudece e paralisa. Isso é fonte de grande angústia.
P.- No ensaio que dá o título ao livro fala de Platão e do seu "projecto de uma arte de escrita" que escapasse ao "destino" da maior parte dos textos: ou serem uma "fonte de equívocos", encantando os leitores com falácias - domínio do romance, da ficção a que tanto quis fugir Daniel Defoe; ou serem um instrumento mais ou menos imposto ao leitor quando se entra nos domínios da retórica, da política ou da pedagogia. Essa "arte de escrita", do domínio filosófico, ganha em liberdade, permitindo uma espécie de "desprendimento" e de alastramento nos vários campos da experiência e do saber que parece ser do seu agrado. Concorda?
R.- Nessas hipóteses interpretativas, acerca do que a escrita filosófica não é, fazem-se ouvir as palavras de Platão sobre o assunto: a escrita é sempre enganadora ou porque encanta ou porque persuade e, em qualquer dos casos, em geral, a escrita é impotente, muda e incapaz de se defender. E ele, no "Fedro", tenta a introdução do único gesto que poderia diminuir essa impotência, justamente um projecto de escrita filosófica ou uma arte da escrita, em que aquele que escreve adverte aquele que lê contra os perigos em que está aquele que escreve, contra a petrificação, a esclerose, a mudez do efeito retórico. Gosto muito dessa expressão: "uma espécie de 'desprendimento'", que é ao mesmo tempo reserva, poder juntar um tesouro, e liberdade de seguir em qualquer lado, e em qualquer coisa, os vestígios daquilo que se procura.
P.- Alain de Botton - que escreveu "As Consolações da Filosofia" - diz que os seres humanos têm seis "gurus" para seis preocupações universais: Sócrates e a impopularidade; Epicuro e a falta de dinheiro; Séneca e o estado de frustração; Montaigne e a imperfeição; Schopenhauer e desgosto, Nietzsche e a necessidade da dificuldade. É uma espécie de "filosofia, modo de usar". Que autores escolheria - estes ou outros - como "pilares" a que podemos sempre recorrer?
R.- Não há experiência mais gratificante do que o reconhecimento da grandeza de alguém, mas essa experiência contém uma ameaça, a de se ser aniquilado. Para escaparmos a essa ameaça, é preciso que transformemos o reconhecimento da grandeza alheia em sentimento de veneração. Não se pode começar a pensar verdadeiramente sem essa forma de iniciação, que implica olhar para trás, conservar as cinzas, pagar as suas dívidas, provar a si próprio que não se é mais indigno do que aqueles que nós desprezamos. Estas palavras não poderiam ter sido escritas por mim, sem Goethe, Baudelaire, Benjamin e Montaigne. Mas ainda falta falar de Heraclito, Platão, Aristóteles, Plotino, Kant, Nietzsche, Wittgenstein, Broch, Colli. É evidente que a série está incompleta.
P.- Os seus livros possuem a inefável qualidade de poderem ser lidos sem uma preparação puramente filosófica. [Será que deseja fazer da prática do pensamento um instrumento vivencial, como em tempos idos era a leitura da Bíblia?] Aquilo a que chamou a "descoberta continuada" poderá estar ao alcance de (quase) todos?
R.- "Os limites da alma nunca os conhecerás", terá dito Heraclito por meio de um dos seus transmissores, o que é uma bela maneira de se contrapor à advertência socrática sobre os limites, o célebre "conhece-te a ti mesmo!". Ele que era e foi conhecido pelo seu desprezo indefectível pela multidão dos homens e pelas suas variadas formas de cegueira e embuste, não pôde evitar uma declaração de comunidade, que é, ao mesmo tempo, uma prova de confiança na possibilidade de nos decifrarmos a nós próprios: "A todos os homens pode caber a sorte de se reconhecerem a si mesmos e de sentirem a imediatez (o mais íntimo, o frémito da vida)"
Walter Benjamin
Descobri Maria Filomena Molder, na década de oitenta, num seu ensaio acerca de Jorge Martins ( Imprensa Nacional-Casa da Moeda ). Mais recentemente, "encontrei-a" num livro sobre Walter Benjamin, Semear na Neve ( Relógio D' Água ). A propósito da publicação de um novo livro, A Imperfeição da Filosofia, desta última editora, Helena Vasconcelos proporcionou uma notável entrevista com Filomena Molder no suplemento Mil Folhas do Público , de 17 de Janeiro. É reconfortante - deveria antes dizer inquietante, no melhor do seu sentido - o confronto com as palavras luminosas de Maria Filomena Molder. É uma vez mais no "consolo" da filosofia que apetece continuar depois de a ler. No meio de tanto lixo que nos entra pela porta através de tanta folha inútil de jornal, no meio da insuportável ignorância tagarela em vigor, esta serenidade perturbante é como que um bálsamo. Como tudo é efémero, desde as páginas web dos jornais até à própria utilização da linguagem, troco o habitual link pela reprodução integral desta inteligente entrevista, com a vénia costumeira a Helena Vasconcelos, directora da revista online Storm Magazine.
Um Brilho sem vacilações
Por Helena Vasconcelos
Maria Filomena Molder, filósofa, professora e escritora reúne em "A Imperfeição da Filosofia" (Ed. Relógio D'Água, Novembro, 2003) textos que exploram o universo do pensamento e seduzem pela sua extrema limpidez, aliada a uma enorme erudição. Filósofos - dos Clássicos aos que marcaram o século XX como Wittgenstein e Walter Benjamin - escritores e poetas - como por exemplo, Dante, Jorge de Sena e Rilke - pintores, fotógrafos, cineastas (como David Lynch) chegam-nos "revigorados" por esta voz que, ainda que meditativa , tem a capacidade de nos atingir em pleno e de nos estimular.
Maria Filomena Molder iniciou a sua fulgurante trajectória como docente do Departamento de Filosofia da Universidade Nova em 1980, onde lhe foi atribuída a cadeira de Filosofia Medieval. Dessa experiência ficou-lhe o interesse por Santo Agostinho, Santo Anselmo e outros doutores da Igreja com quem mantém vivo contacto, apesar de os seus interesses terem continuado a expandir-se, principalmente em campos tão férteis como a Estética e a Filosofia da Linguagem. Desta autora, é possível encontrar na mesma editora a obra "Semear na Neve".
Mil FOLHAS - Como se tem desencadeado o seu percurso de professora de Filosofia Medieval até esta "abertura" para a Estética e para a Filosofia da Linguagem?
Maria Filomena Molder - Na verdade, não estava preparada para ensinar filosofia medieval, no sentido de já ter levado a cabo uma longa e exaustiva investigação. Mas foi a cadeira que me foi distribuída quando, em 1980, entrei para o Departamento de Filosofia da Universidade Nova, precisamente no seu segundo ano de existência, e me dediquei inteiramente ao seu estudo durante os dois breves anos em que a leccionei. No entanto, desde os meus tempos da Faculdade de Letras que alguns dos autores medievais e dos seus problemas me tinham afectado profundamente (e evoco aqui o Padre de Cerqueira, meu professor de Medieval). Exemplifico: Santo Agostinho e o mistério do tempo e da memória, o modo original de conceber a linguagem, o modo de citar (que tomei como regra íntima) - quanto mais próximo de nós está um texto, menos a citação aparece como uma citação, ficando, por assim dizer, incorporada nas nossas palavras; Santo Anselmo e a sua delirante prova ontológica, que tantas voltas nos dá à cabeça, uma autêntica mina para exploração das relações entre o possível, o real e o pensável; o problema dos universais (a Arca de Noé é uma das suas apresentações mais antigas), que vem ter connosco sempre que tentamos distinguir um gato de um cão ou de saber qual é a diferença entre a arte e uma obra de arte. Além destes, tive a oportunidade de voltar a estudar durante esses dois anos um autor, que é como o último dos Gregos, Plotino, aquele que já não se vê propriamente como filósofo, e se atribuiu apenas o papel de intérprete, e que para as coisas da Estética (que é uma palavra tão recente!) se revelou um autêntico manancial, sobretudo para a compreensão da relação entre forma e informe e para a visão do universo como o acto de um dançarino.
P.- Acha que a sua base "medievalista" a preparou para o desenvolver do seu pensamento ou precisou de fazer um "corte" , voltando às raízes clássicas da nossa cultura?
R.- Releio sempre Plotino, que não é um pensador medieval, mas foi tão lido directa ou indirectamente pelos medievais, e regresso muitas vezes aos abismos agostinianos: ao imenso palácio da memória, ao labirinto do tempo (não só o famoso "se não mo perguntam sei o que é, se mo perguntam não sei o que é", mas também o surpreendente, o admirável, resultado - é que ele acaba mesmo por nos esclarecer em que consiste o tempo: uma distensão da alma). E, recentemente, por obrigações de distribuição de serviço, voltei à filosofia medieval, mas agora, e mantendo-se a minha impreparação nos termos referidos, decidi-me a ler com os estudantes "A Divina Comédia", na qual encontrei tudo o que esperava encontrar, mais tudo o resto: o "absoluto que pertence à terra", que sendo um leit-motiv de Broch, não se podia aplicar melhor a Dante - ele chamava-lhe liberdade; as relações entre poesia e filosofia, entre sonho, visão e poesia; a visão infernal do tempo; uma das compreensões mais temíveis do suicídio; o carácter desmedido, insolente, da poesia; uma metafísica da luz... Na verdade, encontra-se tudo n' "A Divina Comédia"! Levou-me a reler, por exemplo, o tratado sobre os anjos de São Tomás de Aquino. Acrescente-se que o melhor guia para "A Divina Comédia", poema que não poderia ser mais medieval e continua a resistir a qualquer esforço de classificação, é o poeta russo Óssip Mandelstam.
P.- O seu trabalho tem vindo a desenvolver-se de uma forma segura e revigorante. Como chegou a esta íntima conexão do pensamento filosófico com a literatura, a fotografia, o cinema, a ciência e as artes plásticas?
R.- Gostaria de lembrar que se pode fazer filosofia (aliás, o mesmo se passa com a arte) a partir do que quer que seja (embora não se faça de qualquer maneira, como também acontece com a arte), e sempre se fez. O primeiro crítico sistemático da poesia foi Platão, e o seu primeiro defensor, Aristóteles, que ainda sabia (e aqui ele já citava o dificílimo Heraclito) que em todos os lugares pode haver deuses ou, usando as palavras de Colli, o primeiro dever do filósofo é não caluniar as aparências. Desde pequena que não posso viver sem música e sem cinema. Descobri na adolescência a poesia, as outras artes.
P.- Fala de Sócrates e do seu pedido para que seja aceite a "natureza incompleta da filosofia". Em relação ao título deste seu livro - "A Imperfeição da Filosofia" - será que está a reportar-se às palavras do filósofo ? Ao debruçar-se sobre essa "imperfeição" quer dizer que a sabedoria implícita no termo Filosofia não é completa e que em vez de "consolo" traz a inquietação inerente à descoberta continuada?
R.- Reli Boécio e a sua "A Consolação da Filosofia" - uma obra escrita na prisão de Ticinium em 524 ou 525, antes de ele ser executado - por causa do Dante. É um admirável esforço de se libertar do desespero, da desilusão, do medo da morte e do desprezo pela morte desonrosa. Nessa obra, vemos pela última vez brilhar sem vacilações a relação entre filosofia e modo de vida ou, melhor, a filosofia entendida como modo de vida, coisa que os Modernos tenderam a ocultar de forma mais ou menos eficaz. No meio da devastação, há quem jogue ao xadrez. Que a filosofia providencie a consolação tem alguma parecença com o jogo: suspende-se a relação com a imediatez, abre-se uma pequena fenda e tenta-se respirar melhor. Por seu lado, a imperfeição tem a ver com incompletude, um sentimento de perda, e com agilidade, leveza, tentar não cair como o acrobata. Isto é, a filosofia traz realmente inquietação e só atravessando essa parede ardente podemos chegar a vislumbrar que ela rima com "descoberta continuada".
P.- Refere o suicídio no contexto a que a ele se referiu Camus que disse: "Só há um problema filosófico realmente sério: o suicídio."?
R.- Não me sinto capaz de falar do suicídio a não ser por interposta pessoa. N' "A Divina Comédia", Dante dá-nos a ver duas inexcedíveis aproximações, ambas perturbadoras. Num dos círculos do Inferno, numa vastidão hostil, crescem umas estranhas árvores, em cujos ramos retorcidos em vez de seiva corre sangue humano. Com crueldade involuntária, Dante parte um desses ramos e ouve uns lamentosos gritos de dor. Sem o saber, acaba de mutilar um suicida, por quem ele tem grande admiração e sente piedade, Piero della Vigna, homem de espírito nobre, acusado injustamente de traição. O suicida aos olhos da crença cristã é um escândalo, pois é um gesto de rebelião contra a vontade criadora de Deus, através da rejeição de si próprio, do seu corpo próprio. E, por isso, o suicida é aquele que jamais poderá resgatar o seu corpo, perdeu o direito a ele, quer dizer, o mistério da ressurreição foi por ele absolutamente selado. A outra aproximação encontramo-la à entrada do Purgatório, guardada por alguém que não é só um pagão, mas também um suicida, Catão. Mas, aqui, que a morte própria tenha origem no amor pela liberdade é um excesso bem-vindo aos olhos de Dante. Mais perto de nós, e próximo de Camus, temos o testemunho de Jean Améry.
P.- No seu texto sobre Rilke fala da "atmosfera da civilização", essas sucessivas "crostas" criadas pelo ser humano, que nos isolam de Deus. Será que, como diz Steiner, a religião poderia ser definida como uma resposta narrativa à interrogação de Leibnitz: "Por que há alguma coisa em vez de nada?"?
R.- Que a civilização seja constituída por uma sobreposição de crostas que nos separariam de Deus é uma ideia wittgensteiniana, ou melhor, é a devolução por Wittgenstein de um lugar- comum de muitas culturas, incluindo a ocidental, qualquer que seja a sua formulação, e isto desde que nós nos podemos lembrar. Esse lugar comum exprime o sentimento de perda de um contacto íntimo com o mistério da vida, do ser, de deus ou dos deuses, e obriga muitas vezes a procedimentos mais ou menos austeros de desprendimento e ascetismo, que atravessam a religião, a filosofia, a arte: voltar a conhecer a simplicidade do coração, voltar a beber a água pura das fontes. O que é uma maneira de reconhecer um grau de inadaptação "quantum satis" do ser humano à sua própria história. A pergunta pelo nada, a pergunta de Leibniz (retomada de maneira particular por Heidegger, do qual Steiner é um grande leitor), é a pergunta que não se refaz nunca do mistério de haver isto tudo que há, e conheceu respostas antes de a filosofia as ter formalizado. A descrição do Génesis é uma dessas respostas, que protege, como um tesouro ou um escândalo incomunicável, o porquê. Num dos mais belos hinos védicos, isso, que não pode deixar de ser ocultado, é apontado assim: pode ser que aquele que sustenta tudo saiba o porquê desta existência secundária (que inclui os homens e os deuses), mas também pode acontecer que esse também não saiba.
P.- Diz que a "imoderação própria da actividade filosófica tem a ver com a natureza do amor".Parece uma referência a uma espécie de movimentação física arrebatadora como o sexo. Será que se refere a Eros e à nossa mortalidade?
R.- Há uma embriaguez própria do acto contemplativo, no sentido em que a suspensão da vida a que ele obriga pode levar a um comprazimento solipsista, mas esse estar consigo próprio também pode originar formas mais ou menos agudas de dilaceração. Como muito bem diz a imoderação a que me refiro, atribuindo-a à natureza do amor, tem a ver com o deus Eros, essa força física, cósmica, que faz mover tudo e, em particular esses que tentam decifrar os discursos escritos nas suas própria almas, e, portanto, apresenta-se como um desafio à nossa mortalidade. É no "Fedro" que Platão descobre esse chamamento, que permita vencer a tentação (e a ilusão) solipsista, e toma formas paradoxais. No caso do discurso de Aristófanes, encontramos esta pergunta: os amantes não procuram outra coisa a não ser estarem juntos, que querem eles? No caso do discurso de Diotima, que se faz ouvir pela voz de Sócrates, no termo da descrição da escala de graus da experiência erótica, surpreendemos a alma a deixar cair tudo o que parecia decisivo: a figura, o saber, o logos, de modo a poder despenhar-se no pélago, no mar do desejo.
P.- A linguagem utilizada na sua escrita é muito próxima da Poesia e, em muitos aspectos possui uma espécie de esplendor da visualização cinematográfica e/ou fotográfica. Aliás, a sua íntima ligação com essas duas linguagens é bem explícita. Como distingue o olhar sobre a pintura, a fotografia, o cinema e o olhar focado na palavra e no pensamento?
R.- Há quem tenha, e de modo excelente (em particular os poetas e os artistas), encontrado grandes afinidades entre a palavra e a pintura. Mas, na verdade, trata-se mais da aproximação entre escrita e pintura do que da relação entre palavra e pintura. O pensamento dá-se bem com a palavra. Não me encontro entre aqueles para quem as palavras não chegam e, em contrapartida, estão convencidos de que há outras coisas que chegam. A palavra nasce na nossa boca, um dos lugares íntimos do nosso corpo, e, ao mesmo tempo, solta-se, expandindo-se, criando correntes de energia, e, como se não bastasse, é imediatamente um esforço compreensivo e expressivo. Ao contrário do que acontece com as mãos, instrumentos de realização, à voz humana, paradoxalmente, porque não podia ser-nos mais íntima, é atribuído um estatuto de mediação, que certamente provém da sua vocação conceptual, a palavra engana, louva, fere, mata, calcula. Quer dizer, a palavra não se mistura com aquilo de que fala, as palavras não são coisas. As artes passam adiante dessa separação entre o que há e o nosso dizer, há um elemento nelas que resiste definitivamente ao poder do logos (o que também sucede na poesia, mas com contornos únicos: a palavra resiste à palavra, e aí a música faz uma das suas aparições), que é o poder de irem ter directamente com as coisas, de se colocarem ao lado delas. Não sendo um prolongamento do corpo, as artes fazem parte do reino dos corpos, e qualificam directamente o espaço (aqui a arquitectura toma a dianteira). A escrita, em parte, também conhece estas determinações, daí a relação com as artes, mas há uma parte da escrita que não pertence ao espaço, que procede do som e do espírito da voz. Acho que não respondi inteiramente à sua pergunta. Mas sugiro-lhe que fiquemos por aqui.
P.- Os problemas da linguagem atravessam a sua obra. Vivemos em tempos babélicos? Ou, pelo contrário, estamos já num pós-Babel? Será que a palavra se transformou em ruído, que vivemos enclausurados neste "mortal coil" [invólucro mortal] onde ecoa o "shuffle" [tumulto] de que fala Shakespeare em "Hamlet"?
R.- Dá muito que pensar que na "Epopeia de Gilgamesh", onde existe a primeira referência ao grande Dilúvio, destruidor de toda a vida (a que só escapou um ser humano, o primeiro versão de Noé), tenha sido decidido pelos deuses, pela razão simples e suficiente de já não poderem suportar o ruído que os homens faziam. A Torre de Babel é um lugar de atracção atormentada e um lugar que originou muitos lamentos, em que se misturam a confusão das línguas, a mudez e a surdez, o ruído. De tempos a tempos o projecto da Torre retorna. Mas o momento em que Babel fosse resgatada, e o coração humano não conhecesse essa desmedida (talvez um outro nome para a pedra sacrílega que Nietzsche diz estar à porta de qualquer civilização), não seria o dia da vitória sobre a multiplicidade das línguas. Vejo-o mais como equivalente ao dia de Pentecostes: cada um falaria na sua própria língua e todos seriam capazes de entender.
P.- De que é que nós, os seres humanos, temos medo? Do vazio? Do Nada?
R.- Gostaria de lembrar que o primeiro texto literário conhecido, escrito na Suméria centenas de anos antes da "Ilíada" e da "Odisseia", a "Epopeia de Gilgamesh"(que é por um lado o nome da personagem e o próprio autor), concentra-se em volta de duas experiências, que se podem abater sobre qualquer um de nós separadamente, mas que no poema são simultâneas: cair em si e descobrir o medo da morte pelo escândalo da morte alheia, a daquele que se ama. Devido a essas descobertas, acompanhadas por sentimentos insuportáveis de terror e de perda, Gilgamesh empreende uma viagem à procura da imortalidade. No termo da viagem, depois de ter falhado todas as tentativas de o conseguir (e que se resumem, por um lado, à impossibilidade de dominar o tempo e, por outro, à incapacidade de se metamorfosear até ao fim), o príncipe Gilgamesh regressa à sua cidade de Uruk, senta-se à beira das suas muralhas e escreve num poema tudo aquilo por que passou. Quer dizer, aquele que procurou desesperadamente, e em vão, por uma imortalidade incomportável, acaba de surpreender uma outra forma de imortalidade, a única que nos convém: imprimir sinais em tabuinhas de barro, contar uma história. Mesmo presentes, os deuses não atravessam sempre essa história, sobretudo quando o que está em causa é contar a alguém aquilo que aconteceu, uma prerrogativa humana. É aí que se engendram o poder da memória, o dever da transmissão e a tarefa de rememorar. Por outro lado, se nós conseguimos imaginar a corrupção do nosso corpo, o nosso tornar-se cadáver, já não somos capazes de modo nenhum de antecipar a irrealidade do nosso pensamento, quer dizer, a imaginação sem a condição do espaço emudece e paralisa. Isso é fonte de grande angústia.
P.- No ensaio que dá o título ao livro fala de Platão e do seu "projecto de uma arte de escrita" que escapasse ao "destino" da maior parte dos textos: ou serem uma "fonte de equívocos", encantando os leitores com falácias - domínio do romance, da ficção a que tanto quis fugir Daniel Defoe; ou serem um instrumento mais ou menos imposto ao leitor quando se entra nos domínios da retórica, da política ou da pedagogia. Essa "arte de escrita", do domínio filosófico, ganha em liberdade, permitindo uma espécie de "desprendimento" e de alastramento nos vários campos da experiência e do saber que parece ser do seu agrado. Concorda?
R.- Nessas hipóteses interpretativas, acerca do que a escrita filosófica não é, fazem-se ouvir as palavras de Platão sobre o assunto: a escrita é sempre enganadora ou porque encanta ou porque persuade e, em qualquer dos casos, em geral, a escrita é impotente, muda e incapaz de se defender. E ele, no "Fedro", tenta a introdução do único gesto que poderia diminuir essa impotência, justamente um projecto de escrita filosófica ou uma arte da escrita, em que aquele que escreve adverte aquele que lê contra os perigos em que está aquele que escreve, contra a petrificação, a esclerose, a mudez do efeito retórico. Gosto muito dessa expressão: "uma espécie de 'desprendimento'", que é ao mesmo tempo reserva, poder juntar um tesouro, e liberdade de seguir em qualquer lado, e em qualquer coisa, os vestígios daquilo que se procura.
P.- Alain de Botton - que escreveu "As Consolações da Filosofia" - diz que os seres humanos têm seis "gurus" para seis preocupações universais: Sócrates e a impopularidade; Epicuro e a falta de dinheiro; Séneca e o estado de frustração; Montaigne e a imperfeição; Schopenhauer e desgosto, Nietzsche e a necessidade da dificuldade. É uma espécie de "filosofia, modo de usar". Que autores escolheria - estes ou outros - como "pilares" a que podemos sempre recorrer?
R.- Não há experiência mais gratificante do que o reconhecimento da grandeza de alguém, mas essa experiência contém uma ameaça, a de se ser aniquilado. Para escaparmos a essa ameaça, é preciso que transformemos o reconhecimento da grandeza alheia em sentimento de veneração. Não se pode começar a pensar verdadeiramente sem essa forma de iniciação, que implica olhar para trás, conservar as cinzas, pagar as suas dívidas, provar a si próprio que não se é mais indigno do que aqueles que nós desprezamos. Estas palavras não poderiam ter sido escritas por mim, sem Goethe, Baudelaire, Benjamin e Montaigne. Mas ainda falta falar de Heraclito, Platão, Aristóteles, Plotino, Kant, Nietzsche, Wittgenstein, Broch, Colli. É evidente que a série está incompleta.
P.- Os seus livros possuem a inefável qualidade de poderem ser lidos sem uma preparação puramente filosófica. [Será que deseja fazer da prática do pensamento um instrumento vivencial, como em tempos idos era a leitura da Bíblia?] Aquilo a que chamou a "descoberta continuada" poderá estar ao alcance de (quase) todos?
R.- "Os limites da alma nunca os conhecerás", terá dito Heraclito por meio de um dos seus transmissores, o que é uma bela maneira de se contrapor à advertência socrática sobre os limites, o célebre "conhece-te a ti mesmo!". Ele que era e foi conhecido pelo seu desprezo indefectível pela multidão dos homens e pelas suas variadas formas de cegueira e embuste, não pôde evitar uma declaração de comunidade, que é, ao mesmo tempo, uma prova de confiança na possibilidade de nos decifrarmos a nós próprios: "A todos os homens pode caber a sorte de se reconhecerem a si mesmos e de sentirem a imediatez (o mais íntimo, o frémito da vida)"
Walter Benjamin
17.1.04
O CENÁRIO E A CAUSA
Por que não...?
Estive a folhear o álbum de fotografias e de verbetes escritos com o nome de Pedro Santana Lopes e que a cristã-nova Zita Seabra acaba de publicar. Trata-se de uma "obra" auto-encomiástica em que participam alguns dos "empregados" de Lopes, destinada a celebrar o seu suposto contributo para o engrandecimento cultural da Pátria, de Lisboa à Figueira da Foz, passando pelo Parque Mayer. Não falta na capa o cliché do "visionário", a apontar para um horizonte indefinido, ao lado de um arquitecto famoso. Como aqui disse, coube a Agustina apresentar este livro e o elogio do autor, a man for all seasons, na palavra da escritora. Para quem o já tinha considerado "imaturo", houve um pequeno avanço também ele adequado aos tempos. A esta "obra" parece que outras se vão seguir, na mesma linha de auto-satisfação narcísica. A Manuel Maria Carrilho, que foi ministro da Cultura, a "obra" pareceu-lhe mais um livro de um empreiteiro ( até as casas de banho do São Carlos são referidas! ) do que um balanço sério de mandatos políticos. Na resposta, Lopes desafiou Carrilho a apresentar a sua obra, numa confusão abstrusa entre o betão e uma estratégia coerente de sustentação das actividades ditas culturais. Escudado no seu séquito "cultural" pimba, embalado pela pela sua boa estrela mediática e empurrado pelos seus múltiplos chevaliers servants, Santana Lopes precisa de ter pela frente quem permanentemente lhe desmonte o cenário. Até porque tanta aparição começa a cansar. Não se votou nele para ser pivot dele próprio nas televisões ou nas revistas light. O anúncio da disponibilidade de Carrilho para esse combate é algo que saúdo. A cultura é um longo trabalho de exigência e de sofisticação que deve atravessar todo o trabalho político. Não chega ter "causas" e "casas" de cultura. É antes fundamental que a cultura seja ela mesmo uma causa da política e não apenas um cenário de ocasião.
Por que não...?
Estive a folhear o álbum de fotografias e de verbetes escritos com o nome de Pedro Santana Lopes e que a cristã-nova Zita Seabra acaba de publicar. Trata-se de uma "obra" auto-encomiástica em que participam alguns dos "empregados" de Lopes, destinada a celebrar o seu suposto contributo para o engrandecimento cultural da Pátria, de Lisboa à Figueira da Foz, passando pelo Parque Mayer. Não falta na capa o cliché do "visionário", a apontar para um horizonte indefinido, ao lado de um arquitecto famoso. Como aqui disse, coube a Agustina apresentar este livro e o elogio do autor, a man for all seasons, na palavra da escritora. Para quem o já tinha considerado "imaturo", houve um pequeno avanço também ele adequado aos tempos. A esta "obra" parece que outras se vão seguir, na mesma linha de auto-satisfação narcísica. A Manuel Maria Carrilho, que foi ministro da Cultura, a "obra" pareceu-lhe mais um livro de um empreiteiro ( até as casas de banho do São Carlos são referidas! ) do que um balanço sério de mandatos políticos. Na resposta, Lopes desafiou Carrilho a apresentar a sua obra, numa confusão abstrusa entre o betão e uma estratégia coerente de sustentação das actividades ditas culturais. Escudado no seu séquito "cultural" pimba, embalado pela pela sua boa estrela mediática e empurrado pelos seus múltiplos chevaliers servants, Santana Lopes precisa de ter pela frente quem permanentemente lhe desmonte o cenário. Até porque tanta aparição começa a cansar. Não se votou nele para ser pivot dele próprio nas televisões ou nas revistas light. O anúncio da disponibilidade de Carrilho para esse combate é algo que saúdo. A cultura é um longo trabalho de exigência e de sofisticação que deve atravessar todo o trabalho político. Não chega ter "causas" e "casas" de cultura. É antes fundamental que a cultura seja ela mesmo uma causa da política e não apenas um cenário de ocasião.
OPTIMISMO
Há dois dias, numa tertúlia de cientistas portugueses, no Café Guarani do Porto, Manuel Sobrinho Simões, a propósito do estado da investigação científica entre nós, disse qualquer coisa como isto: um pessimista acha que não é possível estar pior do que o que está, enquanto que um optimista, como ele, diz que pode seguramente estar bem pior. É uma ironia, mas quem diz investigação científica, diz o resto. Só a erudição bovina de alguns "comentadores" de serviço, e serviçais, é que vê flores onde só existe esterco.
15.1.04
IRONIAS E CANSAÇOS
Um. Vinha no meu carro a ouvir o ministro da Saúde defender os aumentos proporcionados aos gestores dos hospitais SA, em pecúlio e em cartão de crédito, ao que parece. A argumentação do senhor pode servir, por exemplo, para os funcionários do Estado com responsabilidades de "gestão" ( e não só), os tais que acima de mil euros continuam a não "ver o padeiro" em 2004. Tudo, disse, devidamente autorizado pelas austeras "Finanças". Finalmente começa a entender-se o alcance deste "Portugal SA" ( o "anónimo das denúncias, e o anónimo dos "interesses" ), generosamente subsidiado com o dinheiro dos contribuintes tansos, os que declaram e pagam, naturalmente. A moda segue para os teatros nacionais. E na Cultura, como se previa, anunciam-se as habituais cativações orçamentais em PIDDAC e provavelmente em "funcionamento" , enquanto um ou outro dirigente já sonha com a sua "SA" de estimação. Agora, porém, aguentem-se e aturem-se uns aos outros nos assuntos de "mercearia". Eu "dei para o peditório" e sei do que falo. É bem feito. Estão muito bem uns para os outros. Dois. Outro dia, entre Paulo Portas e António Calvário, Santana Lopes anunciou ao mundo "um tempo novo", seguramente protagonizado por ele. Tratava-se de um mero lançamento de um livro menor, mas assistiram um primeiro-ministro e um ministro de Estado, no meio de uns quantos ornamentos do regime, eminentemente esquecíveis. Não, não foi em nenhum país africano ou que tivesse descoberto recentemente os efeitos perversos da democracia. Foi mesmo aqui, entre nós, no quentinho do Grémio Literário, ao Chiado, em Lisboa, Janeiro de 2004. Três. José Régio, de quem não gosto particularmente, tem umas quantas poesias aproveitáveis e dois livrinhos interessantes, Davam grandes passeios aos domingos e O vestido cor de fogo. No meio deste arrivismo delirante e desta "insustentável leveza" que se anda a espalhar por aí como uma praga, lembrei-me do seu Cântigo Negro, e olho para isto tudo com uma imensa ironia (preocupada) e um enorme cansaço (irritado). O que é preciso é um tempo de malditos, de saudáveis malditos.
"Vem por aqui" --- dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom se eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui"!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
--- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha mãe.
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Por que me repetis: "vem por aqui"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis machados, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
Sei que não vou por aí.
Um. Vinha no meu carro a ouvir o ministro da Saúde defender os aumentos proporcionados aos gestores dos hospitais SA, em pecúlio e em cartão de crédito, ao que parece. A argumentação do senhor pode servir, por exemplo, para os funcionários do Estado com responsabilidades de "gestão" ( e não só), os tais que acima de mil euros continuam a não "ver o padeiro" em 2004. Tudo, disse, devidamente autorizado pelas austeras "Finanças". Finalmente começa a entender-se o alcance deste "Portugal SA" ( o "anónimo das denúncias, e o anónimo dos "interesses" ), generosamente subsidiado com o dinheiro dos contribuintes tansos, os que declaram e pagam, naturalmente. A moda segue para os teatros nacionais. E na Cultura, como se previa, anunciam-se as habituais cativações orçamentais em PIDDAC e provavelmente em "funcionamento" , enquanto um ou outro dirigente já sonha com a sua "SA" de estimação. Agora, porém, aguentem-se e aturem-se uns aos outros nos assuntos de "mercearia". Eu "dei para o peditório" e sei do que falo. É bem feito. Estão muito bem uns para os outros. Dois. Outro dia, entre Paulo Portas e António Calvário, Santana Lopes anunciou ao mundo "um tempo novo", seguramente protagonizado por ele. Tratava-se de um mero lançamento de um livro menor, mas assistiram um primeiro-ministro e um ministro de Estado, no meio de uns quantos ornamentos do regime, eminentemente esquecíveis. Não, não foi em nenhum país africano ou que tivesse descoberto recentemente os efeitos perversos da democracia. Foi mesmo aqui, entre nós, no quentinho do Grémio Literário, ao Chiado, em Lisboa, Janeiro de 2004. Três. José Régio, de quem não gosto particularmente, tem umas quantas poesias aproveitáveis e dois livrinhos interessantes, Davam grandes passeios aos domingos e O vestido cor de fogo. No meio deste arrivismo delirante e desta "insustentável leveza" que se anda a espalhar por aí como uma praga, lembrei-me do seu Cântigo Negro, e olho para isto tudo com uma imensa ironia (preocupada) e um enorme cansaço (irritado). O que é preciso é um tempo de malditos, de saudáveis malditos.
"Vem por aqui" --- dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom se eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui"!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
--- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha mãe.
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Por que me repetis: "vem por aqui"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis machados, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
Sei que não vou por aí.
14.1.04
QUEIXA DAS ALMAS JOVENS CENSURADAS
Dão-nos um lírio e um canivete
E uma alma para ir à escola
E um letreiro que promete
Raízes, hastes e corola.
Dão-nos um mapa imaginário
Que tem a forma duma cidade
Mais um relógio e um calendário
Onde não vem a nossa idade.
Dão-nos a honra de manequim
Para dar corda à nossa ausência.
Dão-nos o prémio de ser assim
Sem pecado e sem inocência.
Dão-nos um barco e um chapéu
Para tirarmos o retrato.
Dão-nos bilhetes para o céu
Levado à cena num teatro.
Penteiam-nos os crânios ermos
Com as cabeleiras dos avós
Para jamais nos parecermos
Connosco quando estamos sós.
Dão-nos um bolo que é a história
Da nossa história sem enredo
E não nos soa na memória
Outra palavra para o medo.
Temos fantasmas tão educados
Que adormecemos no seu ombro
Sonos vazios, despovoados
De personagens do assombro.
Dão-nos a capa do evangelho
E um pacote de tabaco.
Dão-nos um pente e um espelho
Para pentearmos um macaco.
Dão-nos um cravo preso à cabeça
E uma cabeça presa à cintura
Para que o corpo não pareça
A forma da alma que o procura.
Dão-nos um esquife feito de ferro
Com embutidos de diamante
Para organizar já o enterro
Do nosso corpo mais adiante.
Dão-nos um nome e um jornal,
Um avião e um violino.
Mas não nos dão o animal
Que espeta os cornos no destino.
Dão-nos marujos de papelão
Com carimbo no passaporte.
Por isso a nossa dimensão
Não é a vida. Nem é a morte.
Dão-nos um lírio e um canivete
E uma alma para ir à escola
E um letreiro que promete
Raízes, hastes e corola.
Dão-nos um mapa imaginário
Que tem a forma duma cidade
Mais um relógio e um calendário
Onde não vem a nossa idade.
Dão-nos a honra de manequim
Para dar corda à nossa ausência.
Dão-nos o prémio de ser assim
Sem pecado e sem inocência.
Dão-nos um barco e um chapéu
Para tirarmos o retrato.
Dão-nos bilhetes para o céu
Levado à cena num teatro.
Penteiam-nos os crânios ermos
Com as cabeleiras dos avós
Para jamais nos parecermos
Connosco quando estamos sós.
Dão-nos um bolo que é a história
Da nossa história sem enredo
E não nos soa na memória
Outra palavra para o medo.
Temos fantasmas tão educados
Que adormecemos no seu ombro
Sonos vazios, despovoados
De personagens do assombro.
Dão-nos a capa do evangelho
E um pacote de tabaco.
Dão-nos um pente e um espelho
Para pentearmos um macaco.
Dão-nos um cravo preso à cabeça
E uma cabeça presa à cintura
Para que o corpo não pareça
A forma da alma que o procura.
Dão-nos um esquife feito de ferro
Com embutidos de diamante
Para organizar já o enterro
Do nosso corpo mais adiante.
Dão-nos um nome e um jornal,
Um avião e um violino.
Mas não nos dão o animal
Que espeta os cornos no destino.
Dão-nos marujos de papelão
Com carimbo no passaporte.
Por isso a nossa dimensão
Não é a vida. Nem é a morte.
CORTE NA ALDEIA
Durante quatro dias o Governo passeou e inaugurou na zona norte. Onde escrevo "Governo", deve ler-se Durão Barroso. A seu lado, de vez em quando, apareceram alguns "ajudantes-ministros", inteiramente decorativos e surdos-mudos. Já passou o tempo suficiente para se perceber que este Governo é uma entidade macrocéfala que obriga o Primeiro Ministro a ser praticamente um "ministro com todas as pastas". Do "número um" passa-se quase instantaneamente para o deserto. Por muito resistente que Barroso seja, não é aceitável que um Governo, ainda por cima "de maioria", tenha esta fisiologia medíocre. Descontando o folclore inauguracional do costume, a digressão do chefe do Governo serviu para passar duas mensagens. A primeira, e porventura a mais significativa, a de que estamos a chegar ao fim do ciclo dos famosos "quadros comunitários de apoio". Barroso incitou os "planos de desenvolvimento regional" a explorar à exaustão as "potencialidades" financeiras dos apoios comunitários antes de estes se virarem para o centro e leste europeus. Daqui a uns anos, voltamos, pois, a ter que contar com o que temos e, sobretudo, com o que não temos, e suspeito que a generalidade da Pátria ainda não percebeu isto. A segunda mensagem é mais banal e prende-se com o anúncio e a promessa de realizações, de betão, de "associações inter municipais" (?) e de outras coisas, previstas concluir até e para lá de 2010. Ninguém resiste a estas bagatelas, e Barroso sabe que alguém, a seu tempo como sempre, pagará as novas sinecuras, a água, o comboio, a luz e o cimento.
Durante quatro dias o Governo passeou e inaugurou na zona norte. Onde escrevo "Governo", deve ler-se Durão Barroso. A seu lado, de vez em quando, apareceram alguns "ajudantes-ministros", inteiramente decorativos e surdos-mudos. Já passou o tempo suficiente para se perceber que este Governo é uma entidade macrocéfala que obriga o Primeiro Ministro a ser praticamente um "ministro com todas as pastas". Do "número um" passa-se quase instantaneamente para o deserto. Por muito resistente que Barroso seja, não é aceitável que um Governo, ainda por cima "de maioria", tenha esta fisiologia medíocre. Descontando o folclore inauguracional do costume, a digressão do chefe do Governo serviu para passar duas mensagens. A primeira, e porventura a mais significativa, a de que estamos a chegar ao fim do ciclo dos famosos "quadros comunitários de apoio". Barroso incitou os "planos de desenvolvimento regional" a explorar à exaustão as "potencialidades" financeiras dos apoios comunitários antes de estes se virarem para o centro e leste europeus. Daqui a uns anos, voltamos, pois, a ter que contar com o que temos e, sobretudo, com o que não temos, e suspeito que a generalidade da Pátria ainda não percebeu isto. A segunda mensagem é mais banal e prende-se com o anúncio e a promessa de realizações, de betão, de "associações inter municipais" (?) e de outras coisas, previstas concluir até e para lá de 2010. Ninguém resiste a estas bagatelas, e Barroso sabe que alguém, a seu tempo como sempre, pagará as novas sinecuras, a água, o comboio, a luz e o cimento.
13.1.04
SANTANA VISTO PELOS SEUS
Na última década, mais concretamente desde que Cavaco partiu, Pedro Santana Lopes procurou a liderança partidária em congressos. Primeiro contra Nogueira e Barroso, depois contra Marcelo e finalmente contra Barroso. As suas entradas em cena eram inesquecíveis momentos televisivos e de forte emoção sentida no coração dos militantes mais sensíveis. Apesar do espectáculo, das louras e do verbo tonitruante, essas mesmas hostes "laranja" nunca lhe deram crédito traduzido em votos partidários. Intuitivo como poucos, deu a volta "por fora" e foi começando a ganhar terreno "no terreno". Conquistou praticamente em absoluta solidão a Câmara da Figueira da Foz. Marcelo ignorou-o. A comunicação social estranhamente poupou-o ( e poupa-o, num jogo de amor-ódio cuja fisiologia ainda um dia se terá de contar...) e, feita a paz com Barroso, chegou a Lisboa. Não faz praticamente nada, mas continua aparentemente a encantar. Outro dia, O Independente decidiu dar voz a alguns dos seus fidelissimos. O que é que eles vêem no homem? "Ele é bom de voto", diz um. Outro não hesita: "as suas qualidades são extraordinárias e fazem dele um dos maiores políticos de Portugal [ atenção agora ] e mesmo do mundo inteiro". Um terceiro acha mesmo que "não há mais nenhuma pessoa que reúna todas as qualidades que ele tem". Um quarto vê ali uma "capacidade de trabalho impressionante". E há mais. Desde quem enxergue na criatura "um pensamento político profundo", até quem ali veja " a afirmação da modernidade" que "aposta na inteligência emocional e no contacto directo com as massas". Estes desvaires babados falam por si e dispensam quaisquer comentários, a não ser um. Com um toque mais ou menos risível, todos eles apontam num sentido a ter em conta: Santana é um voluntarista que capta bem votos. E vai até lá, lá onde esse voto se possa encontrar. Agustina Bessa Luis, que não é exactamente um modelo de sucesso na aventura da política, mas que foi directora do "túmulo do Rossio" na era Santana, apresenta o livro ( o primeiro de três ou quatro, parece!) de Santana Lopes, Causas da Cultura, uma recolha de textos e fotos acerca da passagem de Lopes pela Secretaria de Estado da Cultura, entre 90 e 95. Ou seja, ele vai "a todas". Alguns dos seus "herdeiros espirituais" estão hoje à frente de alguns organismos de cultura, audiovisuais ou mesmo políticos, a milhas de distância da, apesar de tudo, sagacidade do seu mentor. Seguramente isto vai ter a costumada "boa imprensa". Aliás, será deveras interessante recensear as presenças no evento. Porque este frenesim corresponde a uma ambição. Os anteriores candidatos a Belém que tiveram, ora um bom score eleitoral (Freitas do Amaral), ora a vitória (Soares, Sampaio), "cresceram" , em ambição, dos respectivos partidos de origem para a Nação, contornando-os e contando, depois, com eles. Santana já não está refém do seu partido e isso é um aviso muito sério a quem possa pensar que é "candidato natural". Ninguém é "candidato natural" se está à espera de "sinais". Neste sentido, Santana ou Marcelo Rebelo de Sousa são já candidatos muito mais "naturais" do que Cavaco Silva. Mas isso é conversa para um próximo post.
Na última década, mais concretamente desde que Cavaco partiu, Pedro Santana Lopes procurou a liderança partidária em congressos. Primeiro contra Nogueira e Barroso, depois contra Marcelo e finalmente contra Barroso. As suas entradas em cena eram inesquecíveis momentos televisivos e de forte emoção sentida no coração dos militantes mais sensíveis. Apesar do espectáculo, das louras e do verbo tonitruante, essas mesmas hostes "laranja" nunca lhe deram crédito traduzido em votos partidários. Intuitivo como poucos, deu a volta "por fora" e foi começando a ganhar terreno "no terreno". Conquistou praticamente em absoluta solidão a Câmara da Figueira da Foz. Marcelo ignorou-o. A comunicação social estranhamente poupou-o ( e poupa-o, num jogo de amor-ódio cuja fisiologia ainda um dia se terá de contar...) e, feita a paz com Barroso, chegou a Lisboa. Não faz praticamente nada, mas continua aparentemente a encantar. Outro dia, O Independente decidiu dar voz a alguns dos seus fidelissimos. O que é que eles vêem no homem? "Ele é bom de voto", diz um. Outro não hesita: "as suas qualidades são extraordinárias e fazem dele um dos maiores políticos de Portugal [ atenção agora ] e mesmo do mundo inteiro". Um terceiro acha mesmo que "não há mais nenhuma pessoa que reúna todas as qualidades que ele tem". Um quarto vê ali uma "capacidade de trabalho impressionante". E há mais. Desde quem enxergue na criatura "um pensamento político profundo", até quem ali veja " a afirmação da modernidade" que "aposta na inteligência emocional e no contacto directo com as massas". Estes desvaires babados falam por si e dispensam quaisquer comentários, a não ser um. Com um toque mais ou menos risível, todos eles apontam num sentido a ter em conta: Santana é um voluntarista que capta bem votos. E vai até lá, lá onde esse voto se possa encontrar. Agustina Bessa Luis, que não é exactamente um modelo de sucesso na aventura da política, mas que foi directora do "túmulo do Rossio" na era Santana, apresenta o livro ( o primeiro de três ou quatro, parece!) de Santana Lopes, Causas da Cultura, uma recolha de textos e fotos acerca da passagem de Lopes pela Secretaria de Estado da Cultura, entre 90 e 95. Ou seja, ele vai "a todas". Alguns dos seus "herdeiros espirituais" estão hoje à frente de alguns organismos de cultura, audiovisuais ou mesmo políticos, a milhas de distância da, apesar de tudo, sagacidade do seu mentor. Seguramente isto vai ter a costumada "boa imprensa". Aliás, será deveras interessante recensear as presenças no evento. Porque este frenesim corresponde a uma ambição. Os anteriores candidatos a Belém que tiveram, ora um bom score eleitoral (Freitas do Amaral), ora a vitória (Soares, Sampaio), "cresceram" , em ambição, dos respectivos partidos de origem para a Nação, contornando-os e contando, depois, com eles. Santana já não está refém do seu partido e isso é um aviso muito sério a quem possa pensar que é "candidato natural". Ninguém é "candidato natural" se está à espera de "sinais". Neste sentido, Santana ou Marcelo Rebelo de Sousa são já candidatos muito mais "naturais" do que Cavaco Silva. Mas isso é conversa para um próximo post.
11.1.04
SINAIS
O homem médio português. Para quem estudou direito, há no respectivo jargão a figura incontornável do "homem médio", por vezes trocado nas hipóteses práticas pelo sr. A ou pelo sr. B. O Expresso, que funciona como a Tora do regime, explicava que cerca de 40% dos homens portugueses aparentemente recorrem aos favores sexuais de prostitutas, tratando as esposas e as namoradas como meros membros da família. Este "homem médio" é um possível retrato deste País de tartufos, cheio de gente mal-resolvida, beata e, afinal, infeliz, profundamente infeliz, em busca de meias-horas de consolo nos colos provisoriamente ternos da primeira puta disponível.
A nádega de Pedroso. O processo Casa Pia, num dos seus milionésimos detalhes que continuam a cair milimetricamente para os jornais, revistas e televisões, revelou que o dr. Pedroso teria um sinal numa nádega. Da mesma forma, não fomos poupados aos pormenores anatómicos da pila de Carlos Cruz, inclusivé essa tremenda excepção de ser "circuncisado"! Pois bem. Depois da saga do albúm de fotografias da PJ, onde se misturam indistintamente rostos à escolha da investigação, por que não fazer uma recolha de fotos de pilas e de rabos multifacetados para futuras e esclarecedoras identificações como estas?
A liberdade e o gargalo. Na sequência das tais fotos para consumo investigatório, onde se mistura gente pública e notória com anónimos irreconhecíveis, houve uma mini comoção contra a liberdade de imprensa. Felizmente foi um acesso rápido, prontamente contrariado pelos dois chefes dos principais partidos, um dos quais primeiro-ministro. Embora eu não tenha propriamente nenhum tipo de temor reverencial por aquilo que se escreve ou se edita nos jornais, revistas e televisões, nem tão pouco os levo excessivamente a sério, desejo para eles a mesma liberdade com que eu escrevo neste blogue. Nem que seja por uma singela razão. Os media, tablóides ou menos tablóides, reflectem o País que somos, o tal Portugal desconfiado, supersticioso, inculto e injusto que eles julgam denunciar. Ou seja, não são piores nem melhores do que aquilo que pretendem "analisar" ou "noticiar". São apenas um outro lado da liberdade. Fazem parte do "pacote" democrático que, pelos vistos, alguns dos seus históricos defensores só aceitam na "parte boa" ou quando lhes dá jeito. Como diz um amigo meu, quem bebe pelo gargalo, compra a garrafa.
O homem médio português. Para quem estudou direito, há no respectivo jargão a figura incontornável do "homem médio", por vezes trocado nas hipóteses práticas pelo sr. A ou pelo sr. B. O Expresso, que funciona como a Tora do regime, explicava que cerca de 40% dos homens portugueses aparentemente recorrem aos favores sexuais de prostitutas, tratando as esposas e as namoradas como meros membros da família. Este "homem médio" é um possível retrato deste País de tartufos, cheio de gente mal-resolvida, beata e, afinal, infeliz, profundamente infeliz, em busca de meias-horas de consolo nos colos provisoriamente ternos da primeira puta disponível.
A nádega de Pedroso. O processo Casa Pia, num dos seus milionésimos detalhes que continuam a cair milimetricamente para os jornais, revistas e televisões, revelou que o dr. Pedroso teria um sinal numa nádega. Da mesma forma, não fomos poupados aos pormenores anatómicos da pila de Carlos Cruz, inclusivé essa tremenda excepção de ser "circuncisado"! Pois bem. Depois da saga do albúm de fotografias da PJ, onde se misturam indistintamente rostos à escolha da investigação, por que não fazer uma recolha de fotos de pilas e de rabos multifacetados para futuras e esclarecedoras identificações como estas?
A liberdade e o gargalo. Na sequência das tais fotos para consumo investigatório, onde se mistura gente pública e notória com anónimos irreconhecíveis, houve uma mini comoção contra a liberdade de imprensa. Felizmente foi um acesso rápido, prontamente contrariado pelos dois chefes dos principais partidos, um dos quais primeiro-ministro. Embora eu não tenha propriamente nenhum tipo de temor reverencial por aquilo que se escreve ou se edita nos jornais, revistas e televisões, nem tão pouco os levo excessivamente a sério, desejo para eles a mesma liberdade com que eu escrevo neste blogue. Nem que seja por uma singela razão. Os media, tablóides ou menos tablóides, reflectem o País que somos, o tal Portugal desconfiado, supersticioso, inculto e injusto que eles julgam denunciar. Ou seja, não são piores nem melhores do que aquilo que pretendem "analisar" ou "noticiar". São apenas um outro lado da liberdade. Fazem parte do "pacote" democrático que, pelos vistos, alguns dos seus históricos defensores só aceitam na "parte boa" ou quando lhes dá jeito. Como diz um amigo meu, quem bebe pelo gargalo, compra a garrafa.
10.1.04
AUTORES PORTUGUESES
Vitorino Nemésio
Os confrades literatos do PSD ( também não há muito mais...), Vasco Graça Moura e Pacheco Pereira, sugeriram um pequeno livro de Esther de Lemos, Estudos Portugueses. Este livro recolhe textos sobre autores portugueses publicados ao longo dos anos por esta antiga professora do secundário, ficcionista e investigadora, que foi deputada, na década de 60, na então Assembleia Nacional. Eu conhecia Esther de Lemos fundamentalmente dos "verbetes" biográfico-literários insereridos na Verbo Enciclopédia Luso Brasileira de Cultura, e gostava da prosa. Com algum jeito, pode aprender-se alguma coisa através desses "verbetes" ou "entradas". Como sugeriu Graça Moura, poderiam igualmente reunir-se em livro estes pequenos e úteis textos de Esther de Lemos e, em particular, estudiosa da obra de Camilo Pessanha. Ao lado de Esther de Lemos, nesses "verbetes" da VELBC, podemos encontrar, entre outros, Jacinto do Prado Coelho. Professor universitário e ensaísta, Prado Coelho dirigiu o famoso Dicionário da Literatura Portuguesa - onde Esther também colaborou - e é autor, entre alguns outros, de três livrinhos de ensaios sobre a literatura, o seu estudo e o seu ensino, especialmente dedicados a autores portugueses, cujos títulos aqui ficam, para juntar à sugestão acima indicada: Problemática da história literária, A letra e o leitor e Ao contrário de Penélope. Em todos eles encontramos belos textos acerca, por exemplo, do Garrett das Viagens, de Pessoa, de Camões ou de Bocage. No último, há uma leitura interessantissima de Os Maias, de Eça de Queirós. Neste contexto de "autores portugueses" que escrevem sobre escritores portugueses, em boa hora suscitado por aqueles nossos dois amigos dos livros, ficam ainda mais duas referências. A primeira é para Vitorino Nemésio e o seu Quase que os vi viver, um livro de "retratos" à altura da erudição límpida de Nemésio, e a segunda para Manuel Mendes, um homem da geração de Abel Manta e de Carlos Botelho, amigo de Raul Proença, Sérgio ou Câmara Reis, e "discípulo" de Brandão, e os seus Retratos de alguns portugueses. Vale bem mais "perder tempo" com estes nossos compatriotas doutros tempos do que com muitos dos "destes".... Nem que seja para se provar que nem tudo é mau.
Vitorino Nemésio
Os confrades literatos do PSD ( também não há muito mais...), Vasco Graça Moura e Pacheco Pereira, sugeriram um pequeno livro de Esther de Lemos, Estudos Portugueses. Este livro recolhe textos sobre autores portugueses publicados ao longo dos anos por esta antiga professora do secundário, ficcionista e investigadora, que foi deputada, na década de 60, na então Assembleia Nacional. Eu conhecia Esther de Lemos fundamentalmente dos "verbetes" biográfico-literários insereridos na Verbo Enciclopédia Luso Brasileira de Cultura, e gostava da prosa. Com algum jeito, pode aprender-se alguma coisa através desses "verbetes" ou "entradas". Como sugeriu Graça Moura, poderiam igualmente reunir-se em livro estes pequenos e úteis textos de Esther de Lemos e, em particular, estudiosa da obra de Camilo Pessanha. Ao lado de Esther de Lemos, nesses "verbetes" da VELBC, podemos encontrar, entre outros, Jacinto do Prado Coelho. Professor universitário e ensaísta, Prado Coelho dirigiu o famoso Dicionário da Literatura Portuguesa - onde Esther também colaborou - e é autor, entre alguns outros, de três livrinhos de ensaios sobre a literatura, o seu estudo e o seu ensino, especialmente dedicados a autores portugueses, cujos títulos aqui ficam, para juntar à sugestão acima indicada: Problemática da história literária, A letra e o leitor e Ao contrário de Penélope. Em todos eles encontramos belos textos acerca, por exemplo, do Garrett das Viagens, de Pessoa, de Camões ou de Bocage. No último, há uma leitura interessantissima de Os Maias, de Eça de Queirós. Neste contexto de "autores portugueses" que escrevem sobre escritores portugueses, em boa hora suscitado por aqueles nossos dois amigos dos livros, ficam ainda mais duas referências. A primeira é para Vitorino Nemésio e o seu Quase que os vi viver, um livro de "retratos" à altura da erudição límpida de Nemésio, e a segunda para Manuel Mendes, um homem da geração de Abel Manta e de Carlos Botelho, amigo de Raul Proença, Sérgio ou Câmara Reis, e "discípulo" de Brandão, e os seus Retratos de alguns portugueses. Vale bem mais "perder tempo" com estes nossos compatriotas doutros tempos do que com muitos dos "destes".... Nem que seja para se provar que nem tudo é mau.
6.1.04
QUESTÕES DE CONFIANÇA
Quando a Princesa Diana desapareceu, nas condições trágicas que se conhecem, Agustina Bessa Luis escreveu vagamente sobre o assunto e sobre a Princesa, e saiu qualquer coisa como isto: Diana não tinha sabido estar à altura do seu estatuto de princesa. No meio da comoção mundial do momento, a revista que publicou o texto foi inundada de cartas de protesto e o que se seguiu é conhecido. Ocorreu-me esta ironia agustiniana reflectindo sobre as palavras do nosso Chefe do Estado, ontem à noite. Só que agora, opto pelo sentido contrário ao dado então por Agustina. Sampaio soube estar à altura do mandato popular que lhe foi conferido, enquanto Primeiro Magistrado da Nação. Demonstrou aos fariseus e aos cobardes que não é um Presidente de uma República das bananas e de "bananas", apesar dos muitos que por aí vegetam. É uma questão de confiança. A bimbalhada comentadeira ( com o Sr. Delgado à cabeça, como "comentador ofical do regime", uma espécie "democrática" de Dutra Faria... ) não perdeu tempo, ora a elogiar sonsamente, ora a zurzir. Se Sampaio não tem falado, era mau, mas como falou, também é forçoso arranjar qualquer defeito. Podia ter ido mais longe, como sugeriram alguns, levando à demissão do PGR. Eu acho que não se perdia nada de substancial se o episódio ocorresse, mas imagino- e julgo que imagina Sampaio- o que não se diria. Do alto do seu frio e distante maoísmo reciclado, D. Barroso, não fugindo à estafada "confiança" que passa a vida a dizer que tem na justiça (como qualquer um de nós, não deve ter nenhuma...), decidiu finalmente secundar o Chefe do Estado, dando um sinal. O Estado de Direito democrático que supostamente nos vela, e em que Sampaio e Barroso mandam, precisa que se rompa este cerco de mediocridade que o envolve e que não deixa que se veja mais nada. Se calhar, esse também é outro problema, o de não haver mais nada para ver. São, afinal, questões de confiança.
Quando a Princesa Diana desapareceu, nas condições trágicas que se conhecem, Agustina Bessa Luis escreveu vagamente sobre o assunto e sobre a Princesa, e saiu qualquer coisa como isto: Diana não tinha sabido estar à altura do seu estatuto de princesa. No meio da comoção mundial do momento, a revista que publicou o texto foi inundada de cartas de protesto e o que se seguiu é conhecido. Ocorreu-me esta ironia agustiniana reflectindo sobre as palavras do nosso Chefe do Estado, ontem à noite. Só que agora, opto pelo sentido contrário ao dado então por Agustina. Sampaio soube estar à altura do mandato popular que lhe foi conferido, enquanto Primeiro Magistrado da Nação. Demonstrou aos fariseus e aos cobardes que não é um Presidente de uma República das bananas e de "bananas", apesar dos muitos que por aí vegetam. É uma questão de confiança. A bimbalhada comentadeira ( com o Sr. Delgado à cabeça, como "comentador ofical do regime", uma espécie "democrática" de Dutra Faria... ) não perdeu tempo, ora a elogiar sonsamente, ora a zurzir. Se Sampaio não tem falado, era mau, mas como falou, também é forçoso arranjar qualquer defeito. Podia ter ido mais longe, como sugeriram alguns, levando à demissão do PGR. Eu acho que não se perdia nada de substancial se o episódio ocorresse, mas imagino- e julgo que imagina Sampaio- o que não se diria. Do alto do seu frio e distante maoísmo reciclado, D. Barroso, não fugindo à estafada "confiança" que passa a vida a dizer que tem na justiça (como qualquer um de nós, não deve ter nenhuma...), decidiu finalmente secundar o Chefe do Estado, dando um sinal. O Estado de Direito democrático que supostamente nos vela, e em que Sampaio e Barroso mandam, precisa que se rompa este cerco de mediocridade que o envolve e que não deixa que se veja mais nada. Se calhar, esse também é outro problema, o de não haver mais nada para ver. São, afinal, questões de confiança.
5.1.04
4.1.04
JE NE REGRETTE RIEN
Percebi, pelos anúncios, que começa amanhã um novo ciclo na RTP 2, que passa a singela "2". Nada como esperar para ver. Ao contrário de Eduardo Prado Coelho, cuja ubiquidade estrutural lhe faz desde já prever um sucesso para o canal, porque está nas mãos desse ínclito "santanista" que é Manuel Falcão ( EPC, como ninguém, é um exímio"consensualista" entre Deus e o Diabo, pois sabe-se lá o que Um e o outro nos reservam...), eu prefiro que a emissão se desenrole por alguns tempos para depois avaliar como curioso espectador. Eu conheci Manuel Falcão - O Independente, 1988- antes de ele ser "santanista" e não o tenho em má conta. Entretanto, e como a "tv cabo" não é só "talk-shows" e êxtases abrasileirados, fui parar ao interessante arte que passava um documentário sobre esse prodígio vocal que foi Edith Piaf. Às gerações "mtv", Piaf não deve dizer muito, mas ouvi-la naquele seu timbre singular e inconfundível, é como se os telhados de Paris cantassem e a cidade dos boulevards" e do Sena se erguesse toda subitamente naquele franzino corpo de mulher. Para o fim, o rosto de Piaf partiu numa direcção imprevista, como dizia, dela própria, Marguerite Duras. Num excerto de uma entrevista incluída no documentário, Piaf dizia não ter medo da morte e que a vida lhe tinha dado um pouco de tudo, alegrias, tristezas, tragédia e felicidade. Desapareceu no mesmo dia que o seu amigo Jean Cocteau. Estava pronta e não lamentava nada. Je ne regrette rien.
Edith Piaf
Non! Rien de rien ...
Non ! Je ne regrette rien
Ni le bien qu'on m'a fait
Ni le mal tout ça m'est bien égal !
Non ! Rien de rien ...
Non ! Je ne regrette rien...
C'est payé, balayé, oublié
Je me fous du passé!
Avec mes souvenirs
J'ai allumé le feu
Mes chagrins, mes plaisirs
Je n'ai plus besoin d'eux !
Balayés les amours
Et tous leurs trémolos
Balayés pour toujours
Je repars à zéro ...
Non ! Rien de rien ...
Non ! Je ne regrette nen ...
Ni le bien, qu'on m'a fait
Ni le mal, tout ça m'est bien égal !
Non ! Rien de rien ...
Non ! Je ne regrette rien ...
Car ma vie, car mes joies
Aujourd'hui, ça commence avec toi !
Percebi, pelos anúncios, que começa amanhã um novo ciclo na RTP 2, que passa a singela "2". Nada como esperar para ver. Ao contrário de Eduardo Prado Coelho, cuja ubiquidade estrutural lhe faz desde já prever um sucesso para o canal, porque está nas mãos desse ínclito "santanista" que é Manuel Falcão ( EPC, como ninguém, é um exímio"consensualista" entre Deus e o Diabo, pois sabe-se lá o que Um e o outro nos reservam...), eu prefiro que a emissão se desenrole por alguns tempos para depois avaliar como curioso espectador. Eu conheci Manuel Falcão - O Independente, 1988- antes de ele ser "santanista" e não o tenho em má conta. Entretanto, e como a "tv cabo" não é só "talk-shows" e êxtases abrasileirados, fui parar ao interessante arte que passava um documentário sobre esse prodígio vocal que foi Edith Piaf. Às gerações "mtv", Piaf não deve dizer muito, mas ouvi-la naquele seu timbre singular e inconfundível, é como se os telhados de Paris cantassem e a cidade dos boulevards" e do Sena se erguesse toda subitamente naquele franzino corpo de mulher. Para o fim, o rosto de Piaf partiu numa direcção imprevista, como dizia, dela própria, Marguerite Duras. Num excerto de uma entrevista incluída no documentário, Piaf dizia não ter medo da morte e que a vida lhe tinha dado um pouco de tudo, alegrias, tristezas, tragédia e felicidade. Desapareceu no mesmo dia que o seu amigo Jean Cocteau. Estava pronta e não lamentava nada. Je ne regrette rien.
Edith Piaf
Non! Rien de rien ...
Non ! Je ne regrette rien
Ni le bien qu'on m'a fait
Ni le mal tout ça m'est bien égal !
Non ! Rien de rien ...
Non ! Je ne regrette rien...
C'est payé, balayé, oublié
Je me fous du passé!
Avec mes souvenirs
J'ai allumé le feu
Mes chagrins, mes plaisirs
Je n'ai plus besoin d'eux !
Balayés les amours
Et tous leurs trémolos
Balayés pour toujours
Je repars à zéro ...
Non ! Rien de rien ...
Non ! Je ne regrette nen ...
Ni le bien, qu'on m'a fait
Ni le mal, tout ça m'est bien égal !
Non ! Rien de rien ...
Non ! Je ne regrette rien ...
Car ma vie, car mes joies
Aujourd'hui, ça commence avec toi !
3.1.04
A ESPELUNCA
Tal como eu previra, não houve transição de ano, entre nós, apenas um contínuo. Logo a abrir, a divulgação da cartinha cobarde que fala no Chefe do Estado. Não tem importância, dizem-nos, mas teve a suficiente para ser junta ao folhetim, de acordo com a burocracia e a "sensibilidade" jurídicas em vigor. Do Chefe do Estado passou-se ao Governo e seguramente que os não sei quantos volumes do "processo mais famoso de Portugal", com mais cartinhas cobardes em anexo, irão parir mais "intoxicação". Para além do desencanto e da depressão, isto provoca, pelo menos a mim, nojo. Começo a ter nojo de ter que viver aqui e de ter que trabalhar para "isto". Este "Portugal SA" não me interessa. Já há uns anos, num livrinho cuja leitura recomendo ( também não sei bem para quê nem para quem ), A Inquisição e os Cristãos Novos, de António José Saraiva, explicava-se bem a nossa propensão histórica para a denúncia anónima e para a delação manhosa. São conhecidos os resultados que isso deu. No essencial, esta cobardia societária e cultural não mudou. Até na sua exploração "política" não mudou. Por isso mesmo, julgo que o "processo propriamente dito" morrerá semi-virgem na oportunidade devida. Entretanto, continuará a servir-se requintadamente nas aberturas dos telejornais e nas capas dos jornais. Alguém, no seu perfeito juízo, pode levar as "instituições", os "pilares" do regime e o "sistema" a sério, numa socidade de patifórios acobardados no anonimato de má-fé ? Definitivamente não pode. Ao pé do "sistema", O Cabaret da Coxa, do Rui Unas, é um espectáculo de gala. Os 30 anos do 25 de Abril mereciam melhor destino do que ser comemorados, não num País, mas afinal numa espelunca, entre suínos.
Tal como eu previra, não houve transição de ano, entre nós, apenas um contínuo. Logo a abrir, a divulgação da cartinha cobarde que fala no Chefe do Estado. Não tem importância, dizem-nos, mas teve a suficiente para ser junta ao folhetim, de acordo com a burocracia e a "sensibilidade" jurídicas em vigor. Do Chefe do Estado passou-se ao Governo e seguramente que os não sei quantos volumes do "processo mais famoso de Portugal", com mais cartinhas cobardes em anexo, irão parir mais "intoxicação". Para além do desencanto e da depressão, isto provoca, pelo menos a mim, nojo. Começo a ter nojo de ter que viver aqui e de ter que trabalhar para "isto". Este "Portugal SA" não me interessa. Já há uns anos, num livrinho cuja leitura recomendo ( também não sei bem para quê nem para quem ), A Inquisição e os Cristãos Novos, de António José Saraiva, explicava-se bem a nossa propensão histórica para a denúncia anónima e para a delação manhosa. São conhecidos os resultados que isso deu. No essencial, esta cobardia societária e cultural não mudou. Até na sua exploração "política" não mudou. Por isso mesmo, julgo que o "processo propriamente dito" morrerá semi-virgem na oportunidade devida. Entretanto, continuará a servir-se requintadamente nas aberturas dos telejornais e nas capas dos jornais. Alguém, no seu perfeito juízo, pode levar as "instituições", os "pilares" do regime e o "sistema" a sério, numa socidade de patifórios acobardados no anonimato de má-fé ? Definitivamente não pode. Ao pé do "sistema", O Cabaret da Coxa, do Rui Unas, é um espectáculo de gala. Os 30 anos do 25 de Abril mereciam melhor destino do que ser comemorados, não num País, mas afinal numa espelunca, entre suínos.
1.1.04
LER
Lawrence Durrell, autor de O Quarteto de Alexandria
...Lawrence Durrell, O Quarteto de Alexandria (Justine, Balthazar, Mountolive e Cléa). Alexandria, a principal personagem dos livros, aquela Alexandria, não existe mais. Este Quarteto é uma das mais poderosas e belas obras literárias que jamais tive o privilégio de poder ler. Por isso, no dealbar de um ano novo, ocorreu-me a sua revisitação. As traduções portuguesas não são particularmente recomendáveis. Encontram-se na Editora Ulisseia (Clássicos do Romance Contemporâneo). Será sempre preferível qualquer edição original de bolso, que inclua todos os livros, e que se acha com facilidade nas lojas da FNAC, passe a publicidade. Há uma figura recorrente no Quarteto, o do "velho poeta" de Alexandria, Konstandinos Kavafis. Nestes tempos de erradas percepções, de má-fé impune e de profundas ignorâncias, deixo um poema seu, traduzido por Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis. O poema de Kavafis, como qualquer poema, é um mundo que literalmente não reenvia para lado nenhum, como lembra Eduardo Lourenço num dos seus ensaios. À semelhança dos livros de Durrell, o poema diz-nos de um mundo já desaparecido, a que os eventuais leitores emprestam as cores, os aromas e os sentidos que a obra de arte consente, partindo do princípio que são realmente "bons leitores".
Konstandinos Kavafis
NUM LIVRO VELHO
Num livro velho - mais ou menos de há cem anos -
por entre as suas folhas esquecida,
encontrei uma aguarela sem assinatura.
Devia ser a obra de artista assaz forte.
Levava por título, «Apresentação do Amor».
Mas antes lhe convinha, «- do amor dos ultra estetas».
Pois era evidente quando se via a obra
(com facilidade se sentia a ideia do artista)
que para quantos amam um tanto higienicamente,
mantendo-se dentro do permitido de todas as maneiras,
não era destinado o adolescente
da pintura - com olhos castanhos de cor profunda;
com a beleza selecta do seu rosto,
a beleza das atracções perversas;
com os seus lábios ideais que levam
o prazer a um corpo amado;
com os seus membros ideais moldados para leitos
a que chama depravados a moral corrente.
Lawrence Durrell, autor de O Quarteto de Alexandria
...Lawrence Durrell, O Quarteto de Alexandria (Justine, Balthazar, Mountolive e Cléa). Alexandria, a principal personagem dos livros, aquela Alexandria, não existe mais. Este Quarteto é uma das mais poderosas e belas obras literárias que jamais tive o privilégio de poder ler. Por isso, no dealbar de um ano novo, ocorreu-me a sua revisitação. As traduções portuguesas não são particularmente recomendáveis. Encontram-se na Editora Ulisseia (Clássicos do Romance Contemporâneo). Será sempre preferível qualquer edição original de bolso, que inclua todos os livros, e que se acha com facilidade nas lojas da FNAC, passe a publicidade. Há uma figura recorrente no Quarteto, o do "velho poeta" de Alexandria, Konstandinos Kavafis. Nestes tempos de erradas percepções, de má-fé impune e de profundas ignorâncias, deixo um poema seu, traduzido por Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis. O poema de Kavafis, como qualquer poema, é um mundo que literalmente não reenvia para lado nenhum, como lembra Eduardo Lourenço num dos seus ensaios. À semelhança dos livros de Durrell, o poema diz-nos de um mundo já desaparecido, a que os eventuais leitores emprestam as cores, os aromas e os sentidos que a obra de arte consente, partindo do princípio que são realmente "bons leitores".
Konstandinos Kavafis
NUM LIVRO VELHO
Num livro velho - mais ou menos de há cem anos -
por entre as suas folhas esquecida,
encontrei uma aguarela sem assinatura.
Devia ser a obra de artista assaz forte.
Levava por título, «Apresentação do Amor».
Mas antes lhe convinha, «- do amor dos ultra estetas».
Pois era evidente quando se via a obra
(com facilidade se sentia a ideia do artista)
que para quantos amam um tanto higienicamente,
mantendo-se dentro do permitido de todas as maneiras,
não era destinado o adolescente
da pintura - com olhos castanhos de cor profunda;
com a beleza selecta do seu rosto,
a beleza das atracções perversas;
com os seus lábios ideais que levam
o prazer a um corpo amado;
com os seus membros ideais moldados para leitos
a que chama depravados a moral corrente.
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