
«Somos prisioneiros de uma absoluta misericórdia, tanto mais inexpugnável quanto mais a supusermos anónima. Isto nos devia tornar humildes, não como cães da vida, por temor do castigo ou avidez de alimento, mas por fidelidade ao silêncio terrestre que de todos os lados nos excede. Quem se olhou a fundo sabe que coisa alguma da sua vida, o pior ou o melhor, dependeu totalmente da sua vontade. Colaborámos, bem ou mal, mas fomos excedidos. Talvez por isso, espécie alguma de homem me é mais estranha que os contentes de si, ricos do espírito e fátuos do coração. Mas é-me necessário compreendê-los para não ficar prisioneiro de um contentamento próprio ainda mais profundo. De resto, tal propósito é igualmente fátuo. A mesma mão que nos cega levantando a sua pressão nos libertará. Ninguém morre contente consigo.»
Eduardo Lourenço, Fragmentos de um diário inédito, Prelo, Maio, 1984