
«Somos poucos mas vale a pena construir cidades e morrer de pé.» Ruy Cinatti joaogoncalv@gmail.com
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19.1.12
12.1.12
EVITAR MEDIR AS COISAS BOAS PELO NÍVEL DA PORCARIA

«Quando nós estamos de longe, temos pelo menos uma possibilidade, que é escapar àquele problema que sempre existe de, no meio da floresta, não se ver floresta por causa das árvores. E também aos erros de perspectiva, que fazem a gente julgar que uma árvore pequenina que está ao pé de nós é muito grande, e que uma árvore muito grande que está longe de nós é muito pequenina. E é exactamente isso: quando a gente está de longe vê-se melhor, corrigem-se melhor as coisas. Além do mais, eu penso que [...] ninguém tem a obrigação de ser o registo civil de tudo que se publica num país. A gente tem sempre tempo de esperar algum tempo, de saber quem é que se afunda e desaparece, quem é que fica. E aqueles que ficam a gente vai ler depois. Não há necessidade de ler todas as semanas tudo o que se publica. Até porque eu acho [...] que todas as literaturas normalmente são feitas de obras notáveis e de obras relativamente medíocres. E se a gente passar todas as semanas a ler 80% de porcarias e 20% de obras boas, a gente acaba por medir as coisas boas pelo nível da porcaria, não é?». (Jorge de Sena, 1972) Estas percentagens aplicam-se a uma data de coisas hoje em dia. É mesmo de evitar medir as coisas boas pelo nível da porcaria.
8.12.11
MESMO QUE O TÉDIO DE UM MUNDO FELIZ VOS PERSIGA

Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, porque tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto
o que vos interesse para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.
Um dia sabereis que mais que a humanidade
não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados,
e entregues hipocritamente â secular justiça,
para que os liquidasse «com suma piedade e sem efusão de sangue.»
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido,
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.
Às vezes, por serem de uma raça, outras
por serem de urna classe, expiaram todos
os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência
de haver cometido. Mas também aconteceu
e acontece que não foram mortos.
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,
aniquilando mansamente, delicadamente,
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.
Apenas um episódio, um episódio breve,
nesta cadela de que sois um elo (ou não sereis)
de ferro e de suor e sangue e algum sémen
a caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
vale mais que uma vida ou a alegria de té-la.
É isto o que mais importa - essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém
está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia
- mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga -
não hão-de ser em vão. Confesso que
muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objecto
que não fruíram, aquele gesto
de amor, que fariam «amanhã».
E, por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.
Jorge de Sena, Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya
15.9.11
O ÍMPETO DA LIBERDADE QUE TUDO ARRASA

A um preço bastante inferior ao que a edição mais recente custa, o Público lançou hoje O Físico Prodigioso, de Jorge de Sena, obra em prosa "em estrutura de novela", cuja emergência é contada na "pequena nota introdutória" do Autor. «O Físico Prodigioso, ao que posso deduzir da fé que tenho nele e que outros igualmente têm tido, sabe perfeitamente viver ou morrer (para mais viver) inteiramente por si mesmo, sustentado pela força do amor que tudo manda, e pelo ímpeto da liberdade que tudo arrasa.»
10.9.11
NOUTROS LUGARES

Não é que ser possível ser feliz acabe,
quando se aprende a sê-lo com bem pouco.
Ou que não mais saibamos repetir o gesto
que mais prazer nos dá, ou que daria
a outrem um prazer irresistível. Não:
o tempo nos afina e nos apura:
faríamos o gesto com infinda ciência.
Não é que passem as pessoas, quando
o nosso pouco é feito da passagem delas.
Nem é também que ao jovem seja dado
o que a mais velhos se recusa. Não.
É que os lugares acabam. Ou ainda antes
de serem destruídos, as pessoas somem,
e não mais voltam onde parecia
que elas ou outras voltariam sempre
por toda a eternidade. Mas não voltam,
desviadas por razões ou por razão nenhuma.
É que as maneiras, modos, circunstâncias
mudam. Desertas ficam praias que brilhavam
não de água ou sol mas solta juventude.
As ruas rasgam casas onde leitos
já frios e lavados não rangiam mais.
E portas encostadas só se abrem sobre
a treva que nenhuma sombra aquece.
O modo como tínhamos ou víamos,
em que com tempo o gesto sempre o mesmo
faríamos com ciência refinada e sábia
(o mesmo gesto que seria útil,
se o modo e a circunstância persistissem),
tornou-se sem sentido e sem lugar.
Os outros passam, tocam-se, separam-se,
exactamente como dantes. Mas
aonde e como? Aonde e como? Quando?
Em que praias, que ruas, casas, e quais leitos,
a que horas do dia ou da noite, não sei.
Apenas sei que as circunstâncias mudam
e que os lugares acabam. E que a gente
não volta ou não repete, e sem razão, o que
só por acaso era a razão dos outros.
Se do que vi ou tive uma saudade sinto,
feita de raiva e do vazio gélido,
não é saudade, não. Mas muito apenas
o horror de não saber como se sabe agora
o mesmo que aprendi. E a solidão
de tudo ser igual doutra maneira.
E o medo de que a vida seja isto:
um hábito quebrado que se não reata,
senão noutros lugares que não conheço.
Jorge de Sena, Poesia - III
2.8.11
«NÃO PODEMOS EXIGIR-LHE MAIS DO QUE PODE DAR»

«E eu não me zango, meu caro, já me convenci de que [a] humanidade é irremediavelmente vil, com algumas horas bonitas de vez em quando, e não podemos exigir-lhe mais do que pode dar. A minha concepção dessa humanidade é mais ou menos esta: amemos quem aceitou partilhar a nossa solidão; usemos dos corpos que valha a pena aproveitar, sem os comprometermos com o nosso «espírito»; façamos aquilo que sentimos não poder deixar de fazer; e é tudo.»
Carta de Jorge de Sena a Vergílio Ferreira, de 20.10.64
14.7.11
CARTA A PESSOA

«V. não foi um mistificador, nem foi contraditório. Foi complexo, da pior das complexidades - a sensação do vácuo dentro e fora, V. não foi um poeta do Nada, mas, pelo contrário, poeta do excessivamente tudo, do excessivamente virtual, de toda a consciência trágica de probabilidade, que a crença no Destino não exclui. (...) Não creio, portanto, que a morte o tenha prejudicado, meu Amigo: V. não diria mais do que disse; V. tinha dito sempre a mesma coisa - maravilhosamente, de quantas maneiras possíveis. Veja, no entanto, as «Malhas que o Império tece». Porque V., à parte o seu caso único na história das literaturas, para ser algo do Super-Camões que anunciara, não precisava de ter publicado uma espécie de Lusíadas, e de deixar as Líricas dispersas por revistas, ou amontoadas num baú, entregues às mãos do acaso e da amizade... As suas obras estão sendo publicadas. O grande público decorará o seu nome; muitas pessoas o lerão; algumas o hão-de entender e amar. Outras desconfiarão de V. Outras, ainda, lamentarão secretamente aquela complexidade, de que já falamos, e que não pode servir de garantia a profecias ou realidades, para uso do «gado vestido dos currais dos Deuses». Será tido como mistificador. Será tido como contraditório. Mas V., meu Amigo, já o sabia... E aquele sorriso vago, que flutua aquém dos seus retratos, para quem será, não é verdade?
Creia na imensa admiração e no imenso respeito do
Jorge de Sena (1944)»
Creia na imensa admiração e no imenso respeito do
Jorge de Sena (1944)»
16.6.11
«ESTA RAIVA QUE TENHO DE POUCA HUMANIDADE NESTE MUNDO»
Dois grandes poemas de Sena ditos pelo próprio, Em Creta com o Minotauro e Madrugada, entre outros. Descontada a tradução e alguma foleirice pictórica. Um mês depois estava precocemente morto.
10.6.11
OS LUSÍADAS DE 2011

Meio mundo babou-se - Mário Crespo ainda deve estar a limpar os lábios e a remover a comoção - para cima das palavras "sábias" de António Barreto. O homem é uma espécie de dr. House da nossa sociedade e da nossa política sem o sarcasmo destrutivo do primeiro. Ir a votinhos é que não é com ele. Mas, pelo menos desde o "manifesto reformador" de 1979 (onde coadjuvou Medeiros Ferreira) que é uma indisputável sumidade diagnosticadora. Gosto dele embora já tivesse gostado mais. Todavia, com Barreto não emergiu a roda dos "avisos". O grande ausente do dia, Camões, já tinha visto - e claramente visto - o que isto era e, na sua extraordinária épica, "avisou". Dou a voz a Jorge de Sena, em 1972, por ele. «Os Lusíadas são menos uma celebração ingénua e orgulhosa do que um aviso trágico e desesperado. Mas, se este aviso é feito à luz de particulares valores de categoria universal, como efectivamente é, daí resulta que ele transcende em muito o âmbito nacional de um destino histórico não cumprido do seu mais alto sentido, para ser, na verdade, um aviso e um apelo que se dirige a toda a humanidade que Portugal, para o efeito, simboliza. O que não seja levado a cabo com espírito de sacrifício, coragem, isenção, tolerância em tudo desde a religião a licenças eróticas, e não seja iluminado por um ideal de supremo e universal amor da Humanidade e do Mundo, não poderá ter o favor dos deuses, é está inexoravelmente fadado ao desastre. Mesmo que tal desastre se não materialize, ele não será menos desastre, porque será sempre a «vil tristeza» da «consciência infeliz».
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Camões,
Dia de Portugal,
Jorge de Sena
24.5.11
«ESTE DESCASO DE ASSASSINOS»
Chega-se a um momento na vida
(e por coincidência a um momento do mundo
que seja por linguagem o nosso)
em que o poeta se interroga antes de escrever:
porquê, e para quê, e para quem?
De nós mesmos falar não é possível:
seria necessário que houvesse humano respeito,
delicadeza humana, e não este descaso
de assassinos que se pisam sem desculpas.
Falar do que vai por este beco do universo
onde as comadres se acotovelam para levantar a saia
no escuro dos portais? Seria preciso
que a tristeza e a amargura e a visão do abismo
fossem partilhadas mais a fundo que a retórica
de serem tão infelizes no conforto
do piolhoso que vê mais dois piolhos na cabeça do outro.
Pensar em melhores mundos? Haverá,
mas não aqui. Aqui é o fim da festa,
o fechar das luzes do último dia
da Exposição dos Centenários, o arriar das bandeiras,
o apodrecer dos barcos pela praia.
Aqui só há lugar para metáforas,
óbvios símbolos, jogos de prendas poéticas,
para a droga de um sexo reduzido a palavras.
Cantem a beleza que se esvai, da juventude
que se perde, dos prados e das árvores,
com doce melancolia. O leitor tremula,
sente-se irmão, enfia
sorrateiramente a mão no bolso das calças,
apalpa-se e fecha os olhos, que está salva a pátria.
Jorge de Sena (30.8.73), 40 anos de servidão
(e por coincidência a um momento do mundo
que seja por linguagem o nosso)
em que o poeta se interroga antes de escrever:
porquê, e para quê, e para quem?
De nós mesmos falar não é possível:
seria necessário que houvesse humano respeito,
delicadeza humana, e não este descaso
de assassinos que se pisam sem desculpas.
Falar do que vai por este beco do universo
onde as comadres se acotovelam para levantar a saia
no escuro dos portais? Seria preciso
que a tristeza e a amargura e a visão do abismo
fossem partilhadas mais a fundo que a retórica
de serem tão infelizes no conforto
do piolhoso que vê mais dois piolhos na cabeça do outro.
Pensar em melhores mundos? Haverá,
mas não aqui. Aqui é o fim da festa,
o fechar das luzes do último dia
da Exposição dos Centenários, o arriar das bandeiras,
o apodrecer dos barcos pela praia.
Aqui só há lugar para metáforas,
óbvios símbolos, jogos de prendas poéticas,
para a droga de um sexo reduzido a palavras.
Cantem a beleza que se esvai, da juventude
que se perde, dos prados e das árvores,
com doce melancolia. O leitor tremula,
sente-se irmão, enfia
sorrateiramente a mão no bolso das calças,
apalpa-se e fecha os olhos, que está salva a pátria.
Jorge de Sena (30.8.73), 40 anos de servidão
7.5.11
MADRUGADA

Há que deixar no mundo as ervas e a tristeza,
e ao lume de águas o rancor da vida.
Levar connosco mortos o desejo
e o senso de existir que penetrando
além dos lodos sob as águas fundas
hão-de ser verdes como a velha esperança
nos prados de amargura já floridos.
Deixar no mundo as árvores erguidas,
e da tremente carne as vãs cavernas
aos outros destinados e às montanhas
que a neve cobrirá de álgida ausência.
Levar connosco os ossos que resistem
não sabemos o quê da paz tranquila.
E ao lume de águas o rancor da vida.
Jorge de Sena
27.4.11
COISAS QUE (ME ) INTERESSAM OU O HORROR DAS FALÁCIAS


Jorge de Sena é duplamente recordado por estes dias, em Lisboa e no Porto. Por cá, mais logo, na inauguração do Espaço Babel na Feira do Livro de Lisboa (a Babel está comprometida com a edição da obra completa do Autor, sob a direcção de Jorge Fazenda Lourenço: o próximo livro, a lançar na Feira, intitula-se Rever Portugal- textos políticos e afins, Guimarães, 2011) onde serão lidos poemas seus. No Porto, a Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto homenageia o seu antigo aluno «através da apresentação de documentos académicos e de testemunhos, feitos pelo próprio e por quem de perto o conheceu.» Como escreveu em carta a Eduardo Lourenço, «a minha formação Universitária, ainda que em outra esfera, não menos o foi - e mesmo me deu uma consciência técnica e um horror das falácias, que são das qualidades que me reconhecem (e também de certa petulância e de consciência, que irrita os amantes do vago e da "poesia").»
16.4.11
OS OSSOS DO IMPERADOR OU DO "PORREIRO, PÁ"
Dizia ele que deixara a vida
pelo mundo em pedaços repartida.
Há quatrocentos anos que isso foi.
Mas desde então e sempre o que no mundo
se repartiu para não voltar
é o que — a mais que um poeta e dos maiores —
poderia ter sido o povo português.
Solúvel e insolúvel este povo.
Na memória dos outros e na sua mesma.
Real, sub-real, super-real,
ou — como querem alguns — surrealista?
Que dizer-se de um povo cujo tempo
se dissolveu no espaço e cujo espaço
não teve nunca tempo para dissolver-se
em tempo?
Eterno era só Deus. Os povos não.
E não as línguas e as cidades. Mas
quem vive de alheamento e sobrevive
não é que eterno se ignora morto?
Salvador Correia
de Sá e Benevides
libertou o Brasil dos holandeses
e Angola deles pois que sem escravos
o mundo não se açucarava bem.
Um dia regressou a Portugal
à espera de ser visto como herói
(que era). Gastou os fundos dos calções,
as economias, as plumas do chapéu,
e os borzeguins comprados para a Corte,
nas antecâmaras reais e realengas.
E um dia. exausto ele já de esperas e delongas
a Majestade recebeu-o enfim.
O que é que ele queria? O que é que ele pedia?
Ah não pedia nada. Só licença
de voltar ao Brasil. Estava velho
e não havia
em Portugal espaço pra morrer-se.
Espaço no Brasil, pobre Correia!
Só reduzido a cinzas centenárias
é que o D. Pedro para lá regressa
a pedido de várias famílias.
(Legitimistas riem-se nos túmulos,
e os liberais não choram, que os não há).
Está aberta a inscrição para poetas épicos
que celebrem em oitavas a vitória
de Alcácer-Quibir.
(15 mil réis de tença anual para o poeta
não nomeado por velho e demasiado grande).
Mas este povo: o povo: esse de séculos
em terra dura e curta vida imerso?
O que sonha ou pensa? Franças e Araganças?
Se lhe tiraram cama em que sonhar!
Se lhe não deram nunca o imaginar
mais que sardinha assada sem esperanças!
Não sonha ou pensa, apenas faz os filhos
que um dia houveram sido o povo se —
um se e sempre se de tantos séculos
e terra dura e curta vida e gente
que está por cima e há outros mais abaixo
danados só de não estarem em cima
do mesmo povo, o tal que todos amam
e lhes faz figas quando voltam costas.
Jorge de Sena, Exorcismos
pelo mundo em pedaços repartida.
Há quatrocentos anos que isso foi.
Mas desde então e sempre o que no mundo
se repartiu para não voltar
é o que — a mais que um poeta e dos maiores —
poderia ter sido o povo português.
Solúvel e insolúvel este povo.
Na memória dos outros e na sua mesma.
Real, sub-real, super-real,
ou — como querem alguns — surrealista?
Que dizer-se de um povo cujo tempo
se dissolveu no espaço e cujo espaço
não teve nunca tempo para dissolver-se
em tempo?
Eterno era só Deus. Os povos não.
E não as línguas e as cidades. Mas
quem vive de alheamento e sobrevive
não é que eterno se ignora morto?
Salvador Correia
de Sá e Benevides
libertou o Brasil dos holandeses
e Angola deles pois que sem escravos
o mundo não se açucarava bem.
Um dia regressou a Portugal
à espera de ser visto como herói
(que era). Gastou os fundos dos calções,
as economias, as plumas do chapéu,
e os borzeguins comprados para a Corte,
nas antecâmaras reais e realengas.
E um dia. exausto ele já de esperas e delongas
a Majestade recebeu-o enfim.
O que é que ele queria? O que é que ele pedia?
Ah não pedia nada. Só licença
de voltar ao Brasil. Estava velho
e não havia
em Portugal espaço pra morrer-se.
Espaço no Brasil, pobre Correia!
Só reduzido a cinzas centenárias
é que o D. Pedro para lá regressa
a pedido de várias famílias.
(Legitimistas riem-se nos túmulos,
e os liberais não choram, que os não há).
Está aberta a inscrição para poetas épicos
que celebrem em oitavas a vitória
de Alcácer-Quibir.
(15 mil réis de tença anual para o poeta
não nomeado por velho e demasiado grande).
Mas este povo: o povo: esse de séculos
em terra dura e curta vida imerso?
O que sonha ou pensa? Franças e Araganças?
Se lhe tiraram cama em que sonhar!
Se lhe não deram nunca o imaginar
mais que sardinha assada sem esperanças!
Não sonha ou pensa, apenas faz os filhos
que um dia houveram sido o povo se —
um se e sempre se de tantos séculos
e terra dura e curta vida e gente
que está por cima e há outros mais abaixo
danados só de não estarem em cima
do mesmo povo, o tal que todos amam
e lhes faz figas quando voltam costas.
Jorge de Sena, Exorcismos
*poema ouvido no automóvel, num cd com vários ditos pelo autor, no regresso de um mergulho no Guincho; postado em "homenagem" a este extrordinário país do "porreiro, pá", do tratado de Lisboa, membro orgulhoso de uma Europa "solidária" que lhe quer emprestar dinheiro a um preço mais caro que o abjurado FMI - para que é que serviram os seis anos de tacha internacional arreganhada de Sócrates, o seu "espanholês", o seu inglês técnico (francês não consta que saiba)? Só ossos.
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31.3.11
24.3.11
«UMA PEQUENINA LUZ»
Neste clip, Jorge de Sena recita poemas seus. Estava precisamente a um mês da sua morte, a 4 de Junho de 1978. À sua memória de intelectual e de homem livre também dedico este livrinho. E algumas das palavras que mais logo direi depois do Pedro Mexia.
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21.3.11
DIA DA POESIA OU LÁ O QUE É

O livrinho ali à direita é dedicado à memória de Jorge de Sena. Ele, Nemésio, Herberto, algum Eugénio e muito Joaquim Manuel Magalhães foram os "precursores" de muitos dos poetas portugueses contemporâneos, "antologiados" ou solitários. Alguns de entre eles são poetas, outros são poetastros ou versejadores simples em regime de comadrio. Mas é Sena quem me interessa aqui evocar neste convencionado dia da poesia. E neste momento baixo, acanalhado, do Portugalório personificado por Sócrates, talvez haja «um povo que merece melhor gente/para salvá-lo de si mesmo e de outrem».
Como esta gente odeia, como espuma
por entre os dentes podres a sua baba
de tudo sujo nem sequer prazer!
Como se querem reles e mesquinhos,
piolhosos, fétidos e promíscuos
na sarna vergonhosa e pustulenta!
Como se rabialçam de importantes,
fingindo-se de vítimas, vestais,
piedosas prostitutas delicadas!
Como se querem torpes e venais
palhaços pagos da miséria rasca
de seus cafés, popós e brilhantinas!
Há que esmagar a DDT, penicilina
e pau pelos costados tal canalha
de coxos, vesgos, e ladrões e pulhas,
tratá-los como lixo de oito séculos
de um povo que merece melhor gente
para salvá-lo de si mesmo e de outrem.
11.3.11
SENA EM DISCO

No meio do esterco colectivo doméstico, instintual e político, a "pequenina luz bruxuleante" de Sena brilha através da sua voz redescoberta no cd da foto.
Uma pequenina luz bruxuleante
não na distância brilhando no extremo da estrada
aqui no meio de nós e a multidão em volta
une toute petite lumiére
just a little light
una piccola… em todas as línguas do mundo
uma pequena luz bruxuleante
brilhando incerta mas brilhando
aqui no meio de nós
entre o bafo quente da multidão
a ventania dos cerros e a brisa dos mares
e o sopro azedo dos que a não vêem
só a advinham e raivosamente assopram.
Uma pequena luz
que vacila exacta
que bruxuleia firme
que não ilumina apenas brilha.
Chamaram-lhe voz ouviram-na e é muda.
Muda como a exactidão como a firmeza
como a justiça
Brilhando indefectível.
Silenciosa não crepita
não consome não custa dinheiro.
Não aquece também os que de frio se juntam.
Não ilumina também os rostos que se curvam.
Apenas brilha bruxuleia ondeia
Indefectível próxima dourada.
Tudo é incerto ou falso ou violento: brilha.
Tudo é terror vaidade orgulho teimosia: brilha.
Tudo é pensamento realidade sensação saber: brilha.
Tudo é treva ou claridade contra a mesma treva: brilha.
Desde sempre ou desde nunca para sempre ou não:
brilha.
Uma pequenina luz bruxuleante e muda
Como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Apenas como elas.
Mas brilha.
Não na distância. Aqui
No meio de nós.
Brilha.
Uma pequenina luz bruxuleante
não na distância brilhando no extremo da estrada
aqui no meio de nós e a multidão em volta
une toute petite lumiére
just a little light
una piccola… em todas as línguas do mundo
uma pequena luz bruxuleante
brilhando incerta mas brilhando
aqui no meio de nós
entre o bafo quente da multidão
a ventania dos cerros e a brisa dos mares
e o sopro azedo dos que a não vêem
só a advinham e raivosamente assopram.
Uma pequena luz
que vacila exacta
que bruxuleia firme
que não ilumina apenas brilha.
Chamaram-lhe voz ouviram-na e é muda.
Muda como a exactidão como a firmeza
como a justiça
Brilhando indefectível.
Silenciosa não crepita
não consome não custa dinheiro.
Não aquece também os que de frio se juntam.
Não ilumina também os rostos que se curvam.
Apenas brilha bruxuleia ondeia
Indefectível próxima dourada.
Tudo é incerto ou falso ou violento: brilha.
Tudo é terror vaidade orgulho teimosia: brilha.
Tudo é pensamento realidade sensação saber: brilha.
Tudo é treva ou claridade contra a mesma treva: brilha.
Desde sempre ou desde nunca para sempre ou não:
brilha.
Uma pequenina luz bruxuleante e muda
Como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Apenas como elas.
Mas brilha.
Não na distância. Aqui
No meio de nós.
Brilha.
24.12.10
«ENTRETANTO, SENHORAS E SENHORES, AS BOAS FESTAS»
Podemos já nem sequer "estar" na zona euro (na cabeça dessa gente quase nem existimos o que só dá provas do seu realismo e da nossa irremediável pequenez - as "presidenciais", aliás, evidenciam-na) mas o que importa mesmo é ir enfardar perús, bacalhau e prendas para as berças. É caso para perguntar: "riem-se de quê"? Bom proveito.
Neste comércio festivo que há dois mil anos quase
perdura mal cobrindo remendadamente
o solstício do Inverno e os deuses sempre vivos
de cuja falsa morte o mundo paga em crimes,
como em vileza humana, o medo que escolheu
quando ao claror da aurora rósea e livre
de viver como os deuses e com eles
preferiu a lei e a ordem projectadas
na sombra em sombras da caverna obscura
e desejou o mal em preço de ser-se homem —
tudo o que em milhares de anos é tribal
congrega-se feliz num doce rebolar-se
da traição de que fomos contra a vida.
Tão vil que levou séculos a inventar
um deus assassinado para desculpá-la,
e fez dele o comércio das famílias
que cortam no peru as raivas de existirem,
beijando-se visguentas, comovidas,
tal como têm babado os pés dos deuses,
ah não eles mesmos mas imagens vãs
que não resplendam da grandeza humana.
Alguma vez teremos o dinheiro
para comprar de novo o Paraíso,
em vez de prendas para o sapatinho?
O Paraíso aqui — aquele que venderam
no começar do mundo. E que nos trocam
por outros no futuro ou nos aléns,
agora, aqui, aberto a todos, claro
- um sol sem fim nos bosques ou nas praias,
uma nudez sem morte nos corpos sem alma.
Talvez que o só vejamos por um instante
naquele espaço-tempo entre morrer
e o ficar morto para os antropófagos
dos deuses e dos homens, hóstia ou ossos.
Entretanto, senhoras e senhores, as Boas Festas.
Jorge de Sena, 23.12.72
21.12.10
«A TRISTEZA, PORÉM, É MUITA»

«Cada vez mais, eu escrevo com a noção absoluta de pregar no deserto. Sei que uns entendem e não aceitam, e que outros, que aceitariam, não entendem. Mas a única justificação de uma existência que escreve para testemunhar de todas as verdades é persistir mesmo assim, e escrever da compreensão que era possível no nosso tempo. É provável também que me canse – mas isso nada prova senão contra mim, pois que sempre poderá haver, expressa ou não, uma compreensão profunda e amplificadora como a sua. A tristeza, porém, é muita; e não sei se, ainda que (quem sabe?) alegremente, não acabaremos por nos convencer definitivamente de que só nós estamos errados... e certos todos os outros.»
3.12.10
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