
«Os estereótipos são aquelas coisas que, com as intenções mais diversas, toda a gente diz sem saber bem o que está a dizer. São eles que frequentemente reduzem personagens extraordinárias a uma simples fórmula, que se cola a um aspecto, a uma faceta da sua vida. Com Keynes, a fórmula que ficou foi a da associação do seu nome ao intervencionismo do Estado. Não me surpreendeu por isso o espanto de tantos, quando há semanas aqui falei da fortíssima ligação de Keynes com a cultura, tanto no plano da criação como da sua difusão, e que o levou a fundar e dirigir o Arts Council - em acumulação, note-se, com a direcção do Bank of England! Hoje vou talvez espantar um pouco mais esses leitores, com um outro aspecto da obra de Keynes: o da sua proximidade com a psicanálise e as ideias do seu criador, Sigmund Freud, sobre as quais ele chegou mesmo a escrever. Em 1930, um ano depois do colapso bolsista, Freud e Keynes editaram dois textos singulares: Freud publica o Mal-estar na Cultura, e Keynes lança As Perspectivas Económicas para os Nossos Netos. São reflexões sobre a evolução da sociedade, num momento que era então de generalizada perplexidade. Freud expõe a sua visão sombria sobre a evolução do mundo, alicerçada na ideia de que a civilização contém no seu próprio interior, a par com a força (a pulsão, como ele a designa) de vida que lhe deu forma, uma outra força, de natureza autodestruidora, a pulsão de morte. Para Freud, a luta entre elas é, na história da humanidade, tão constante como inconsciente. A novidade é que o resultado dessa luta se tornou cada vez mais favorável às forças autodestrutivas, obsessivamente orientadas para o domínio da natureza e para a acumulação de bens. A visão que Keynes expõe então era mais optimista do que a de Freud, sobretudo porque a sua opção foi olhar para o longo prazo (para o tempo dos seus netos), apostando que a humanidade conseguiria resolver, como disse, o "problema económico". A utopia keynesiana antecipava então, no prazo de cerca de um século, o fim das lutas de classes e dos conflitos entre nações e esboçava um mundo em que a humanidade se libertaria da escassez e das preocupações materiais des-de que se dotasse da "organização adequada" - os economistas, dizia, poderiam mesmo vir a não ter mais relevância do que os dentistas… Mas, apesar do contraste que decorre destas visões - e que, no essencial, definem uma polarização que continua a alimentar muitas controvérsias actuais -, Freud e Keynes partilharam várias ideias. Uma dessas convergências encontra-se no modo como pensaram o dinheiro, a moeda, na sua ligação com a psicologia individual e a natureza do mercado. É que a moeda não é para Keynes, ao contrário do que pensavam e pensam muitos economistas, um instrumento neutro destinado a facilitar a troca. Não, a moeda é uma invenção que remete para a dinâmica das pulsões mais inconscientes da humanidade, que interfere com a ansiedade humana (acalmando-a ou intensificando-a), dá um valor ao tempo, despersonaliza as relações sociais, torna a dívida abstracta e permite - como disse G. Simmel - que os homens possam deixar de se olhar nos olhos uns dos outros. E é na cupidez, no amor irracional do dinheiro, que Keynes vê o motor do capitalismo. E como Freud tinha recorrido a Thanatos para explicar a pulsão de autodestruição, Keynes recorre a Midas para explicar o modo como o dinheiro se pode tornar, de intermediário da troca, na finalidade última da actividade humana: "Auri sacra fames!…" Na sua Teoria Geral, Keynes fará referência explícita a Freud (e a outros psicanalistas, como Ferenczi e Jones) para sublinhar a pertinência das suas análises sobre a relação do dinheiro com certos episódios do desenvolvimento infantil, uma das mais controversas teses do criador da psicanálise. E mais claro ainda é o modo como subscreve a hipótese freudiana da ligação da civilização à sublimação das pulsões humanas mais básicas. Quadro em que a cupidez lhe aparece como um catalisador fundamental da libido individual, seja no sentido da abstinência e da poupança, seja no da fruição e do consumo. Claro que estas opções, mais do que individuais, são eminentemente colectivas - e também aqui Keynes se revela um bom leitor de Freud: se a influência social se faz sobretudo por contágio, a imitação sobrepõe-se à racionalidade e o mercado corre amiúde o risco de se enganar. J. Stiglitz não diz hoje outra coisa, quando fala da finança contemporânea.»
Manuel Maria Carrilho, DN
Manuel Maria Carrilho, DN
que texto fantástico.
ResponderEliminar«Os estereótipos ... toda a gente diz sem saber bem o que está a dizer»
ResponderEliminarTenho reparado nisso na AR.
Quantas vezes o PM terá durante um ano, pronunciado a palavra "estrutural»?
Ainda ontem na SIC, o Cravinho do BERD (que até engenheiro), vinha a propósito dos "submarinos", com a treta do "estrutural".
É nestas alturas que me dá pena não estar nas bancadas da AR,
poder perguntar ao PM que temos:
a)se sabe o que é uma «estrutura» em termos sociais ou sociológicos;
b)se alguma vez leu ou ouviu falar de "estruturalismo".
É a cultura da elite que temos.
Até o aeroporto de Beja era "estrutural" e está à vista.
O TGV, deve ser "estrutural" para a praia de Madrid, ou talvez do BES.
Os "Devoristas" no seu melhor,a falar por ex de "Estratégia"
Nada a fazer.
JB
"Alavanquemos" a questão: gasto a maior parte do meu tempo descansando o cérebro enquanto esse rapaz Carrilho não dá descanso ao dele. Que aflição!
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