1.8.06

OS FAZEDORES DE FOGO


Tenho um enorme respeito pelas criaturas da noite. Os fadistas vadios, os bêbados, as putas, os sem-abrigo, os chulos, os travestis, os sós em geral são, na sua improbabilidade, as pessoas mais autênticas que conheço. Houve tempos em que apreciava perder-me pela noite, deambulando pelas ruas mais vis e pelos lugares mais sórdidos. Faz bem à cabeça. A quem a tem, naturalmente. Não falo para essa mentalidade pequeno-burguesa e imaculada que se deita e levanta todos os dias da ainda mais imaculada cama onde nada mais do que o trivial sono tem lugar. Gosto da gente das insónias e do desespero. Odeio os simplesmente felizes ou os "simplesmente Maria". Admiro quem bebe e quem toma comprimidos para poder ver o sol durante a noite. Amo as noites únicas e loucas que duram apenas uma hora e que são para sempre. Tudo isto é geralmente entendido pela "magnífica e lamentável família dos nervosos" - a que as criaturas da noite inequivocamente pertencem - que, como escrevia Marcel Proust, constituem "o sal da terra". Estou, pois, tranquilo ao lado dos "fazedores de fogo" de que falava Rimbaud. Conheci um deles e fui seu amigo. Até hoje continuo sem perceber que mão oculta o levou a acabar consigo mesmo. Ao longo de vinte anos, o José Manuel Rosado - a Lydia Barloff - aparecia-me quando menos esperava. Num palco, através de um postal enviado de qualquer lado, num telefonema, num encontro no metro, na televisão ou na última notícia lida no verão de 2002, a do seu suicídio no Algarve. O Zé Manel era, afinal, e como lhe competia, um homem só. A Lydia Barloff enforcou-se há quatro anos. Hoje, um tribunal do Porto, provavelmente sem querer, atirou, de novo, a Gisberta para dentro de um poço. Como se leu na sentença, assim como assim, ela já sofria de uma "doença terminal". Como quem diz: mais tarde ou mais cedo iria morrer. Como todos nós, naturalmente, com a pequena diferença de que ela nem sequer pôde escolher a maneira como morreu. E as, "crianças", Senhor, as "crianças". "Felizmente", como salientava a defesa à saída do tribunal, "estão criadas as condições" para elas terem uma vida mais ou menos tranquila e um "futuro". Isto tudo, afinal, não passou - sic - de "uma brincadeira de mau-gosto", segundo a douta sentença. A Gisberta de certeza que nunca teve uma vida tranquila e muito menos conheceu "um futuro". Se calhar nem sequer teve tempo para ser uma criança a sério, bem diferente destes "meninos" que o "sistema" pensa recuperar em qualquer coisa como um ano e uns meses. Este bando de pequenos criminosos foi envergonhadamente defendido pela pudicícia e pela hipocrisia caseiras. Entre eles e um "híbrido" - meio coisa, meio homem, meio mulher - o "sistema" não hesitou. A Gisberta, tal como a Lydia Barloff, merecem que eu as trate aqui como pessoas que foram. Sem aspas.

Adenda da manhã: Ler o Francisco José Viegas.

Adenda da tarde: Ler o Eduardo Pitta.

18 comentários:

  1. E os operadores da Justiça(?), aplicaram as espécies de leis que temos, justificaram os seus salários, lavaram as mãos e foram para casa com a sensação do dever cumprido.
    Pobre Dever.
    Nada de mais cómodo, do que limitarem-se à letra da Lei.
    Diria que para isso, qq amanuense servia, ou um simples cabo quarteleiro.
    Esta é a nossa cultura superior/universitária/constitucional!
    Z

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  2. Qual era o desfecho justo, então?

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  3. O desfecho justo seria a "legalização" da «magnífica e lamentável família dos nervosos»..., visto que continuam, acantonados, em diversos tipos de hospícios clandestinos?

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  4. Fez-me lembrar o nocturno a Jean Genet de Ary dos Santos:

    “....
    Como se fosses noite e arrastasses
    O tule hierático e vermelho da cauda de todas as prostitutas
    Que desafiam o mistério, roçagando,
    A ganga de todos os operários,
    Que sofrem o mistério, fumando,
    O cabeção ingénuo de todos os marujos
    Que sonham o mistério, ondulando,
    A renda esfarrapada, esvoaçante e preciosa de todos os invertidos
    Que inventam o mistério, desesperando,
    E a carne, o sangue
    O cheiro a suor e a sono de todos os vadios,
    De todos os ladrões
    Que dormem nas esquadras
    E têm o mistério, ousando!
    ....”

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  5. Mas que snobeira pegada! Você gosta de quem vive de noite mas não é um deles, olha-os de cima da sua imeeensa superioridade e acha-lhes graça. Era melhor ter vergonha de tanta lavagem de alma e por favor não chame "coiso" ao ser humano que foi assassinado.

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  6. A questão essencial deste crime não é a vítima ser um "híbrido, meio coisa, meio homem, meio mulher", já que um ser humano é sempre um ser humano, e ninguém tem mais dignidade ou direito à vida que outro qualquer, mas sim ter sido cometido por crianças. Essa é que é a questão que nos devia preocupar sobremaneira.

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  7. Caro JG,

    Gostei mto. do q li até "Conheci um deles e fui seu amigo".

    Depois... olhe, fica-lhe mto. bem dizer/pensar/escrever essas coisas: políticamente muy correcto.

    Mas q apelido de "balelas of a mere split personality", perdida quer de dia ou pela noite. Tonterias - como diriam os nossos hermanitos.

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  8. Escusava de glosar a Fernanda Câncio - pq ela há-de ser sua "amiga", à força?

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  9. Excelente post, João. E corajoso também. Abraço

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  10. Mas as crianças não foram condenadas?

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  11. realmente não compreendo esta gente que atira comentários para tudo o que é sítio tentando provar ao mundo que têm uma opinião e que essa opinião deveria ser a lei. da força ou à força. mas suponho que a torrente opinativa que se embrulha sobretudo em assuntos onde uma putativa moral está em jogo seja a consequência da iliteracia. sabem ler, mas não percebem nada do que se passa. é tanto com um texto que representa (um) mundo como com o próprio mundo.

    ao que interessa: post belíssimo, escrito por quem já esteve perto do fio da navalha, que, regra geral, brilha mais à noite.

    abraço, j

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  12. O desfecho justo, então?

    É um dia acontecer-te o mesmo (ou parecido) a ti, ou aos teus filhos, ou aos filhos dos estúpidos amanuenses ou arvorados que sobrevivem masturbando-se com as pobres "leis" desta podre sociedade...

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  13. Afinal, o que vale um juiz?

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  14. Sim, afinal, para que servem os juízes?

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  15. Ou melhor, o que sabe um juiz, afinal?

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  16. Não tenho palavras que qualifiquem tudo quanto se passou à volta deste assassinato. Não percebo em que país vivo, tudo é possível passar-se sem escândalo, suavemente e com boa consciência. Apre que é demais!

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  17. Se eu fosse a mãe ou o pai de Gisberta, apesar de brilhos "nocturnos" e "literaturas", não queria "sofrer" um filho, que acumulasse tantas exclusões.

    Quanto aos pequenos calígulas de orfanato, não seremos nós portugas, os pais e as mães deles?

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  18. "Se eu fosse a mãe ou o pai de Gisberta, apesar de brilhos "nocturnos" e "literaturas", não queria "sofrer" um filho, que acumulasse tantas exclusões."

    Nao se preocupe. Os putos acabaram-lhe com o sofrimento.

    "Quanto aos pequenos calígulas de orfanato, não seremos nós portugas, os pais e as mães deles?"

    Claro. Somos todos culpados.

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