29.2.04

A "FORÇA" SEM DESTINO

O PSD, como se sabe, vai hipotecar a sua identidade nas eleições europeias numa coligação com o partido do Dr. Portas, na versão "euro calmo", seja lá o que isto for. Para o efeito, os fantásticos secretários-gerais das duas agremiações reuniram e deram o "mote" para a campanha. Talvez pela circunstância de o Dr. Arnaut tutelar o desporto, a palavra de ordem escolhida pelas vagas cabeças envolvidas, foi... "Força Portugal". Uma vez que as eleições ocorrem em pleno delírio do Euro 2004, devem ter pensado que esta pirosa simbologia futebolística vai atrair as massas ignaras ao voto europeu. Salvo o devido respeito, que é muito pouco, esta escolha publicitária apenas vem demonstrar a absoluta falta de uma desgraçada ideia para o acto eleitoral de Junho próximo. O próprio Dr. Barroso já tinha elucidado o País de que não sabia o que fazer com as eleições europeias, apesar de "coligado" ou por causa disso mesmo. Estas eleições, às quais não se costuma dar demasiada importância, ameaçam tornar-se numa dor de cabeça para a "Força Portugal". Pela minha parte, estou curioso em conhecer os sociais-democratas que se dispôem a "alternar" com os discípulos de Portas, particularmente o que irá ornamentar o topo da lista. Parece que não há muita gente pronta para se "chegar à frente". É que ao contrário do que a direcção do Dr. Barroso e do Dr. Santana possa cogitar, o eleitorado "natural" do PSD não suspira por esta aliança. E não deixará de haver quem, no momento adequado, e lá de dentro, venha exigir explicações pelo resultado deste dispensável exercício. Sobretudo quando se entender que, afinal, se tratava de uma mera "Força" sem destino.

28.2.04

BAUDELAIRE



A "dor baudelairiana" tem servido para abundantes dissertações. Sartre, aliás, é autor de um belissimo ensaio sobre o poeta de Les Fleurs du Mal, traduzido nas edições Europa-América, na década de 60, por Pedro Bom. Nesse texto, Sartre lembra que, em Baudelaire, a "dor e o seu orgulho são única e exclusivamente a mesma coisa". A atracção pelo sofrimento é bem espelhada na carta que Charles Baudelaire pensou em escrever a Jules Janin e que jamais terá passado da sua cabeça fervilhante e melancólica. Cito-a através do livro de Sartre.

O senhor é um homem feliz. Lamento-o, Senhor, por ser feliz com tanta facilidade. É preciso um homem descer muito para se julgar feliz!...Ah!, o Senhor é feliz. Pois bem! Se dissesse: sou virtuoso, depreenderia que essa afirmação subentendia: sofro menos do que qualquer outro. Mas não, o Senhor é feliz. Quer dizer: fácil de contentar? Lamento-o e considero a minha má disposição mais refinada do que a sua beatitude. Irei até ao ponto de lhe perguntar se os espectáculos da terra lhe bastam. Pois bem! Nunca o Senhor sentiu vontade de se ir embora, mais que não fosse para variar de espectáculo! Tenho razões muito fortes para lamentar aquele que não ama a morte.

27.2.04

A UBIQUIDADE NA CULTURA




1. Pelos noticiários da SIC, bem como aqui, o País ficou a saber que, no precário reino do Ministério da Cultura, o de Pedro Roseta e do seu poderoso "ajudante" Amaral Lopes, existe uma espécie de "governanta geral" da casa que foi nomeada sucessivamente para três cargos. Noutra ocasião, no "post" Anel da Cultura III, eu já tinha mencionado esta originalidade. Começou por ser "adjunta" do Ministro para as "questões financeiras", razão pela qual, enquanto fui membro do conselho directivo do Teatro Nacional de São Carlos, com a senhora falei e me reuni várias vezes. Depois, tendo em consideração que a senhora é uma técnica, presumo que superior, do Ministério da Agricultura, (porque é, se a memória me não falha, licenciada em "Relações Internacionais"), e para acautelar o seu futuro, foi nomeada secretária-geral adjunta da Secretaria Geral do Ministério da Cultura. Trata-se de um cargo dirigente, de nomeação "política", equivalente a sub-director-geral que, após três anos consecutivos de exercício, dá direito a "subida" automática na carreira de origem. O curioso nesta "nomeação", é que a senhora nunca ocupou verdadeiramente o seu cargo (haveria aqui matéria de sobra para a doutrina administrativista se pronunciar acerca de "posse e ocupação" de cargos públicos...) de sub-directora-geral, permanecendo "fisicamente" junto dos seus mentores políticos, Roseta e Amaral Lopes. Eventualmente por qualquer tipo de temor reverencial, a secretária - geral, pessoa que muito estimo, jamais ousou fazer o óbvio: "obrigar" a senhora a ocupar o seu lugar de dirigente na secretaria-geral. Finalmente, ainda arranjou tempo para a Casa da Música do Porto e - isto não vem na notícia - para "presidir" ao organismo que antecedeu o actual Instituto das Artes, aquando do falecimento súbito do seu presidente no Verão passado. O que é que justifica este extravagante dom da ubiquidade? Três coisas muito simples. A primeira, a incapacidade dos gabinetes do ministro e do secretário de Estado da Cultura em "recrutar" pessoas habilitadas para a assessoria na área financeira, permitindo este domínio despropositado que a referida senhora exerce sobre todos os organismos "tutelados", pela forma que os respectivos dirigentes certamente conhecem. A segunda, o desconforto que desde o primeiro minuto esta "situação" política do Palácio da Ajuda sente em relação à gestão do orçamento que consentiu que lhe fosse atribuído. A terceira, a inevitável e nem sempre avisada "via partidária", que tem sempre mais razões que a razão desconhece.

2. No Teatro de São Carlos estreia o Werther , de Jules Massenet. Para o público tradicional do Teatro, que não se confunde definitivamente com o novo-riquismo dominante, em geral ignorante e quase sempre "convidado", o Werther "é" e será sempre o de Alfredo Kraus. Em diferentes temporadas do São Carlos, Kraus - que soube manter praticamente intacta até ao fim a elegância segura do seu timbre, graças a uma rara inteligência interpretativa de um repertório adequado - ,ofereceu ao então exigente público do nosso teatro lírico, versões inesquecíveis desta ópera. Como os tempos vão tristes para cultura e particularmente para o São Carlos, é razoável lembrar as palavras do jovem Werther no libreto inspirado na obra de Goethe: Warum weckst du mich, Frühlings' Luft ? Die Zeit meines Wegens ist nah...Pourquoi me rêveiller, o souffle du printemps, porquoi me rêveiller?. Mas nada disto será relevante para aqueles que, no fim da récita, irão cear a convite do Teatro. Entre bolinhos e vinhos suaves, lá se devem encontrar as "boas almas" do costume, desde a "generosa" Ajuda que, como vimos, premeia os seus fiéis, a outras paragens "situacionistas". Por mais quanto tempo os vamos ver a cear todos juntos?



Alfredo Kraus (1927-1999)

26.2.04

K DE KAFKA


A Colecção de bom gosto literário do Público, chamada Mil Folhas, deu à estampa, esta semana, O Processo de Franz Kafka. O pobre do Franz Kafka, que é mais conhecido, à pele, pelo adjectivo ("kafkiano") do que propriamente pela profundidade da sua escrita, não era nenhum soturno. Ao contrário do que se poderia pensar, seria um homem relativamente bem disposto e convivial. Teve a fortuna de nascer na "Mittel Europe", em Praga, em pleno império austro-húngaro, o último momento de felicidade europeia antes do desastre. Formou-se em direito e trabalhou fundamentalmente em companhias de seguros. Não durou muito. Em 1924, uns anos após o estertor violento do império, e com apenas 40 anos, Kafka não sobreviveu à tuberculose que o minava. Joseph K., o desafortunado protagonista de O Processo, marcou toda a aventura e a crítica literárias do século XX. Joseph K., o protagonista, no anonimato assassino e burocrático que o liquida, sobrevive na sombra de cada homem contemporâneo. Como escreve Agamben, "Kafka procura ensinar aos homens o uso do único bem que lhes restou: não a libertar-se da vergonha, mas a libertar a vergonha". Joseph K., no momento derradeiro em que se sente já para além de qualquer bem ou de qualquer mal, só quer salvar a sua vergonha e não tanto uma inocência tragicamente inútil: parecia-lhe que a sua vergonha lhe sobreviveria. No sem sentido em que corremos diariamente, Kafka está presente para que a humanidade mantenha "pelo menos a sua vergonha", o que, no dizer de Agamben, lhe permitiu reencontrar " qualquer coisa como uma felicidade antiga".

24.2.04

BALADA DA NEVE

Por causa de uns quantos idiotas que decidiram ir "ver a neve" inesperada na Serra da Estrela, os noticiários das últimas 48 horas não se ocupam de outra coisa que não seja neve. As criaturas ficaram barradas pelo nevão e houve até um grupo de escuteirinhos que andou "desaparecido" por umas horas. Isto deu direito a "directos" em abundância e a entrevistas perfeitamente néscias. À medida que iam sendo "libertados" , alguns voltavam-se para as câmaras das televisões e perguntavam pela protecção civil, por isto e por aquilo, no fundo por quem quer que fosse que supostamente devesse garantir a segurança do devaneio turístico e que pudesse, naturalmente, arcar com a culpa. Incapaz de olhar para o seu patético umbigo, o português médio, que adora estas passeatas em família ou com "casais amigos" ao fim de semana, à mínima contrariedade, geralmente causada pela sua própria ignorância e pelo seu secular desleixo, precisa de uma cabeça para culpar e eventualmente para cortar. É verdade que a nossa protecção civil está a milhas de distância de ser a ideal e que, em caso de terramoto, por exemplo, os estudiosos prevêem o pior. Acontece, porém, que a "gente" a ser "salva" também não ajuda muito. A maior parte faz inteira justiça ao bucolismo medíocre da "Balada da Neve", de Augusto Gil. É tudo muito leve, demasiamente leve.

23.2.04

MARIA HELENA DE FREITAS
(1913-2004)


Desapareceu este fim de semana uma voz assaz conhecida dos amantes da ópera em Portugal. Maria Helena de Freitas manteve na Antena 2 da RDP um programa de grande longevidade dedicado fundamentalmente ao canto lírico, O Canto e os Seus Intérpretes. Muita gente foi conquistada através desse programa para o prazer da ópera e para o conhecimento dos seus intérpretes mais significativos. Eu costumava ser um ouvinte assíduo de M. Helena de Freitas, e um ou outro disco mais raro que possuo em "vinil", ainda chegou a ser escutado nos seus programas. Conviveu com grandes figuras da música e da cultura portuguesas do século XX, designadamente com Luis de Freitas Branco. Casou depois com Nuno Barreiros, uma memória prodigiosa e um crítico musical também desaparecido há um par de anos. Maria Helena deveria ter histórias deliciosas para contar que cabiam nas memórias que nunca chegou a escrever. Na solidão do lar da Caparica onde se encontrava há algum tempo, era visitada pelos amigos, e no seu olhar cintilante brilhou até ao fim o seu eterno amor pela vida. Depois dela, ficam poucos. Serra Formigal, por exemplo, que também muito tem para contar sobre a ópera em Portugal . Num momento em que o único teatro de ópera português está praticamente sem memória e transformado num antro de vaidades pessoais e de ambições medíocres, nota-se mais a falta de pessoas como a Maria Helena de Freitas que, com muita saudade, aqui recordo.

22.2.04

SIC

Retiro indemne do Almocreve das Petas esta "posta", pouco habitual num blogue quase sempre sabiamente virado para o "acima" do quotidiano. Eu não faria melhor.

O Circo e o País Rasca

"A evidência necessita de invólucro para não morrer na estrada" Mário Cesariny

Depois de fechar a contabilidade da Mercearia "Portugal" com um défice de 2,8% do PIB, Durão Barroso adverte que as "contas do Estado estão em ordem". Pode ser. Mas, perante a curiosa declaração do senhor primeiro-ministro, recebida em apoteose pelos compadres da governação e seus bacorinhos, e pondo de lado a futilidade da afirmação, pois era isso que se aguardava desde as espalhafatosas inovações de Ferreira Leite ao cardápio da contabilidade pública, cumpre referir para não nos esquivarmos à fadiga, ao folguedo do judicioso Tavares Moreira e à arreata do impagável José Manuel Fernandes , o seguinte:

tal como o FMI, a Comissão Europeia, Miguel Cadilhe et all, dizemos que o PEC sacrifica o "crescimento futuro à estabilidade presente" e que o desenvolvimento económico não se compadece com manobras contabilísticas "vadias", nem a crise económica é ultrapassada sem investimentos produtivos, ou sequer as reformas estruturais ocorrem por qualquer mágica panfletária. E, sobre isso, está tudo por fazer, mesmo que a revelação barrosista seja uma espécie de pescadinha de rabo-na-boca. De outro modo, o reino da maravilha e mistério desta governação não assegura que se possa confiar, minimamente, nos resultados abonados. Primeiro, o défice nominal passa os 5% do PIB e mesmo que por artes mirabolantes se garanta que o défice estrutural tenha diminuído, convêm saber como foi calculado. Até porque se sabe, que o endividamento das Câmaras e Regiões Autónomas se aproximou dos 0,3% do produto e que o saldo da Saúde e Segurança Social, para além da derrapagem de 350 milhões de euros, se desconhece inteiramente. Tal triunfo escorcha-se a si próprio. Estamos num país rasca. Nada de espantos. A rápida intervenção do Banco de Portugal nesta enorme bagunça que são as contas públicas em Portugal é absolutamente necessária. Ninguém de bom senso e com urbanidade, pode confiar em tamanha gente, mesmo que o extasiado Barroso o assegure e o Luís Delgado aplauda. Os dias já não são o que eram. Podem crer.
MEDITAR




Não é só dos dias de hoje que a megalomania e o anseio de superioridade perseguem o homem, desde o comum mortal, ao "político" ou ao espírito mais elaborado e lúcido. Empédocles, um filósofo do século V, escreveu isto: "Mas porque insisto neste ponto, como quem executa grandes feitos, se eu estou acima dos mortais, homens tão destroçados?" Para quem aprecia a altivez serena do pensamento antigo, Maria Helena da Rocha Pereira tem publicada e reeditada nas Edições ASA, uma Antologia da Cultura Grega, Hélade , que pode ser consultada intermitentemente, sempre que o desvario insane do nosso quotidiano de "homens destroçados" nos dê descanso. Empédocles, conta-se, para mostrar a si próprio e ao mundo que era divino, ter-se-á suicidado na cratera do Etna. No dizer do filósofo, a divindade é algo que "não é dado acercarmo-nos à vista dos olhos, ou agarrá-la com as nossas mãos, que é a estrada principal de persuasão, que vai dar à mente dos homens". Na magnífica peça de Hölderlin, A Morte de Empédocles, há uma frase que registei depois de a Cornucópia a ter levado à cena há uns três anos: "aos mortais nada é dado de graça". Vale a pena meditar na sabedoria destes mortos talentosos.

21.2.04

A LADO NENHUM

Um dos mais esforçados fantasmas do Governo do Dr. Barroso, o ministro da Saúde, Filipe Pereira, carregado de dívidas, herdadas umas, e alegremente contraídas pela sua generosa gestão, outras, decidiu - como agora se diz - "titularizar" umas quantas através de uma coisa chamada "sociedade-veículo". Esta obscura entidade, aparentemente constituída pela Caixa Geral de Depósitos e alguns estrangeiros menos avisados, comprará a dívida que o Estado tem para com a toda-poderosa indústria farmacêutica, para a vender depois, "adiantando", deste modo original, o dinheiro ao depauperado ministério de Pereira. Ou seja, o Estado endivida-se mais um bocadinho, não tanto face os fornecedores, mas perante o "veículo" bancário a quem pagará os juros do "empréstimo". Filipe Pereira já tinha na sua lapela a redonda questão das listas de espera, os hospitais SA e a degradação do SNS, isto é, trapalhadas que bastavam para elevar o panorama da saúde do purgatório em que se encontrava para o puro quentinho do inferno. Campeão da desorçamentação, via hospitais-empresas e de fantásticas nomeações para as respectivas administrações, uma "rapaziada" que começa a esfarelar-se intestinamente, Filipe Pereira ainda vai inventar esta "sociedade-veículo", o que seguramente o ajudará a chegar mais depressa a lado nenhum.

19.2.04

O "NATURAL"

O sr. Villas- Boas, que é presidente da Comissão de Acompanhamento da Lei da Adopção portuguesa, comentando a entrega por um tribunal espanhol de uma criança a um casal de lésbicas, disse considerar preferível que a criança passe toda uma vida numa instituição social, ou em famílias de acolhimento, do que ser sujeita à, e passo a citar, "infelicidade de ser educado por homossexuais, sejam dois ou um". De acordo com a criatura, isso mexe com a "sexualidade natural" das crianças e é "um atentado" aos seus direitos. E, quanto às mulheres, foi peremptório: "Ser lésbica não é ser mulher na plenitude natural do termo, porque se assim fosse não haveria o problema da procriação natural." Aparentemente este senhor ocupa-se das chamadas "questões sociais", pelo que se presume que tenha formação adequada. Um módico de bom-senso, alguma leitura e uma percepção mínima do mundo em que vive, devia proibí-lo de falar de coisas tais como "sexualidade natural", "mulher na plenitude natural do termo" ou de confundir sexualidade com procriação. Como a história abundantemente mostra, não há na sexualidade propriamente uma norma, um dever-ser e, nesse sentido, não há nenhuma sexualidade natural. O que existem são pessoas que possuem uma sexualidade que se manifesta, ora consigo mesmo, ora com mulheres, ora com homens, ora, como na antiguidade pagã, com os "rapazes". Gore Vidal vai até mais longe e explica que não há homo ou heterossexuais, mas antes actos homossexuais ou actos heterossexuais. Tudo depende da oportunidade. E depois, o que diabo será uma "mulher na plenitude natural do termo"? Não me parece que o desempenho sexual represente uma qualquer capitio diminutio, sejam dois homens, duas mulheres, um homem e uma mulher, um trio ou um quarteto. Finalmente- e este é o maior disparate - não se entende por que é que uma criança criada por homossexuais possa ser mais "infeliz" do que outra criada por um contente e próspero casal heterossexual. Uma rápida sondagem mundial demonstrará com relativa facilidade que o Globo está pejado de criancinhas infelizes, cujos papás e mamãs, seus progenitores, o foram "na plenitude natural do termo". Na sua "natural" ignorância, o sr. Villas-Boas desconhece por certo o que seja a felicidade, a infelicidade ou a sexualidade, e prefere que a caridadezinha estadual ou outra, desde que "natural", promova o bem-estar das crianças abandonadas à sua sorte, algumas seguramente por "mulheres na plenitude natural do termo".
A MANCHA HUMANA, de PHILIP ROTH


Parece, mas não estou a fazer nenhum frete às edições D. Quixote, ao dar notícia de que está finalmente à venda, com uma excelente apresentação gráfica, a versão portuguesa de The Human Stain, de Philip Roth. Como noutras ocasiões instei o Nelson de Matos a dar-nos "mais" Roth, retiro do seu blogue a "contracapa" descritiva da edição, uma vez que não muito lá para trás, Roth veio a estes textos, a propósito dele mesmo (um autor meu muito preferido) e de um filme baseado nesta "mancha" que, na fita, era "culpa". Façam, pois, o favor de ler.

Coleman Silk tem um segredo. Mas não se trata do segredo do caso que mantém, aos setenta e um anos, com uma mulher com metade da sua idade e um passado brutalmente devastado. Também não é o segredo do alegado racismo de Coleman, pretexto para a caça às bruxas desencadeada pela universidade e que lhe custou o emprego e, na sua opinião, lhe matou a mulher. O segredo de Coleman foi guardado durante cinquenta anos: oculto da sua mulher, dos seus quatro filhos, dos seus colegas e dos seus amigos, incluindo o escritor Nathan Zuckerman que - após a morte suspeita de Coleman, com a amante, num desastre de automóvel - resolve compreender como é que aquele homem eminente e íntegro, apreciado como educador durante quase toda a sua vida, forjou a sua identidade e como essa vida tão cuidadosamente controlada acabou por ser deslindada. Situado na América dos anos 90, onde princípios morais contraditórios e divergências ideológicas são trazidos à luz do dia através da denúncia pública e de rituais de purificação, A Mancha Humana completa a eloquente trilogia de Philip Roth sobre vidas americanas do pós-guerra tão tragicamente determinadas pelo destino da nação como pela «mácula humana» que marca de modo tão indelével a natureza do homem.

O Autor

Nos anos 90, Philip Roth ganhou os quatro mais importantes prémios literários da América: o National Book Critics Circle Award com Patrimony (1991), o PEN/Faulkner Award com Operation Shylock (1993), o National Book Award com O Teatro de Sabbath (1995), e o Pulitzer Prize com Pastoral Americana (1997). Ganhou o Ambassador Book Award da União de Língua Inglesa com Casei com um Comunista (1998); no mesmo ano foi galardoado com a National Medal of Arts, na Casa Branca. Anteriormente obteve o National Book Critics Circle Award com The Counterlife (1986) e o National Book Award com o seu primeiro livro Goodbye, Columbus (1959). Em 2000 publicou A Mancha Humana, concluindo a trilogia sobre o espírito da América do pós-guerra. Com A Mancha Humana, Roth obteve o seu segundo PEN/Faulkner Award bem como o Britain’s W. H. Smith Award para o Melhor Livro do Ano. Em 2001 recebeu o mais alto galardão da Academia Americana de Artes e Letras, a Gold Medal para ficção, atribuída de seis em seis anos «para o conjunto da obra». O seu mais recente romance, The Dying Animal, foi publicado em 2001.

18.2.04

A FABULOSA VIDA DE UM GOVERNO

Por comparação com o mês de Janeiro de 2003, o défice público aumentou agora em cerca de 70%. Ao mesmo tempo, o Tribunal de Contas chamou a atenção para a circunstância de o sector empresarial do Estado andar financeiramente em perfeita "roda livre", situação com tendência a agravar-se com a demagógica "empresarialização" em curso designadamente nos hospitais e, eventualmente, nos teatros nacionais. O mesmo Tribunal lembrou que a irresponsabilidade tomou conta da gestão das empresas públicas e dos organismos SA, uma vez que é o puro critério político-partidário mais caciqueiro que normalmente justifica as escolhas. Ou seja, depois de devidamente "enterrada" uma "empresa", o nobre "gestor" é removido simpaticamente para outra, à escolha da respectiva tutela, sem muito mais. Com um pouco de sorte, alguns acabam no governo e vice -versa. Se tudo isto decorresse no recato da "propriedade privada", não era grave. Porém, como é o País todo quem paga estas subtis manobras de desorçamentação, o assunto deve ser mesmo levado a sério. Acresce que, ao que parece, nem o próprio Estado tem perfeito domínio sobre o "parque empresarial público": não sabe quantas "empresas" tem nem o que fazem exactamente. Podemos ainda acrescentar a aproximação ao meio milhão de desempregados ou a inépcia da receita fiscal para completar o mísero quadro dos inícios de 2004. Para tentar não perder mais comboios, Barroso assinou uma cartinha com alguns colegas da União Europeia, não só para provar que estamos vivos, mas sobretudo para "defender" a honra perdida do Pacto de Estabilidade e Crescimento, um cadáver nitidamente em férias. O objectivo é sempre o mesmo, esconjurar o presumível "directório" europeu e fazer de conta de que "contamos". Os "resultados" do "contrato" celebrado entre Santana, Portas e Barroso, necessariamente por esta ordem, estão a dar estes "sinais" maravilhosos. Assim vai a fabulosa vida de um Governo.

17.2.04

FUNÇÕES



Numa altura em que há tanta gente preocupada com as respectivas "funções", seja na política, na carreirinha profissional, em casa ou na cama, calha bem lembrar que, no entender de Nietzsche, a função da filosofia é "incomodar a estupidez".

16.2.04

KANT MAS NÃO ENCANTA


Passaram 200 anos sobre a morte de Immanuel Kant. O evento mereceu a devida comemoração nas academias, nas revistas e em algumas publicações da especialidade, ou mesmo sem ela. Grande parte do pensamento jurídico dominante, presumivelmente "racionalista" e, em muitos sentidos, "moralista", muito deve aos ensinamentos kantianos os quais, por seu turno, muito "bebem" da lição remota de Platão. Nos alvores deste blogue, invoquei o pragmatismo filosófico, particularmente o seu lastro norte-americano, na pessoa de Richard Rorty. Apesar de ter sido formado no lance tradicional da filosofia clássica ocidental - platónica, "cristã" e de raíz "a-historicista" -, a leitura de Rorty alertou-me para a necessidade de valorizar outros registos, "re-situando" o sentido e a função da filosofia, lá onde ela me aproxima ou afasta dos outros, da "história" e da minha própria forma de "enunciar". Daí a ligação da filosofia com a realização de uma "política democrática", de que fala abundantemente Rorty, bem como a formosa e poderosa exploração da noção de"contingência". A isto, o racionalismo e a "metafísica" kantianos torcem o olho da mesma maneira que o pragmatismo e as suas consequências ( título de um livro de Rorty, As Consequências do Pragmatismo, trad. das edições Piaget ) o fazem relativamente ao "filão" e ao "sistema de moralidade" de que Kant é herdeiro e defensor. Ficam, de ilustração, algumas palavras de Richard Rorty, no seu extraordinário Contingência, Ironia e Solidariedade, traduzido pela Ed. Presença.

(...) A ideia de uma componente humana central e universal chamada "razão", faculdade que seria a fonte das nossas obrigações morais, embora tenha sido muito útil na criação das sociedades democráticas modernas, é agora uma ideia que podemos dispensar (...) Tenho vindo a defender que as democracias se encontram hoje em posição de afastar algumas das escadas usadas para a sua própria construção (...) As nossas responsabilidades para com os outros constituem apenas o lado público da nossa vida, lado que se encontra em concorrência com as nossas afecções privadas e com as nossas tentativas privadas de autocriação e que não tem nenhuma prioridade automática sobre esses motivos privados. Se tem ou não prioridade em casos determinados é questão de deliberação, processo que geralmente não será facilitado por se recorrer a "primeiros princípios clássicos". A obrigação moral, nesta perspectiva, deve ser junta a muitas outras considerações, em vez de automaticamente triunfar sobre elas.


Richard Rorty

15.2.04

O AVENTUREIRO II

O Dr. Santana Lopes, segundo o Público, concertou a entrevista ao Expresso com o Dr. Durão Barroso. O objectivo seria não deixar o PSD refém de mais um eventual "tabu" de Cavaco Silva. Como quem diz: "o senhor está à cabeça da "lista", mas veja lá se diz que "avança" rapidamente, caso contrário está aqui um claramente disponível". Eu julgava que uma candidatura presidencial, para além de ter um programa, era fundamentalmente uma escolha de uma personalidade e de uma vontade (aquela e não outra qualquer), e o encontro dessa personalidade com a nação, a quem deve falar directamente. Com a "nova geração" no poder, a questão mudou de figurino. No "pensamento" desta gente está apenas a sobrevivência do contrato de governo com o PP, o que significa que, em vez de estar refém de Cavaco, o PSD está na realidade preso da sua própria insegurança e de Portas. Como não se pode "maçar" o lider do PP, o PSD abdica, em relação a todos os próximos actos eleitorais, da sua autonomia. Será justamente por causa do ciclo eleitoral que aí vem que muito provavelmente a "coligação" irá dar início à sua triunfal caminhada para o abismo. Por muitas razões, eu não lastimo que isso aconteça e não vejo aí qualquer sinal de catástrofe. Dada a razoável distância a que estamos das "presidenciais", não sei se esta prosaica e precoce ambição dos principais responsáveis políticos da maioria, não irá pôr em causa a hipótese de uma personalidade não oriunda do Partido Socialista poder ganhar a chefia do Estado, como até agora todos os estudos de opinião anunciam. Por isso mesmo, Cavaco deve estar soberanamente acima disto e não se deve "misturar". O País pode de repente cansar-se desta intrigalhada entre jovens famíliares, primos e afins e, não estando particularmente satisfeito com a prestação da "coligação", achar que prefere jogar pelo seguro, ainda que isso represente o seu sumário despedimento. Não nos ensinaram que em democracia há sempre alternativas?

14.2.04

O AVENTUREIRO

Não conseguindo conter-se, Pedro Santana Lopes exteriorizou pela milésima vez o desejo de ser candidato a PR. Agora foi um pouco mais longe do que o habitual, o que se entende pelo irreprimível nervosismo que lhe causa a silenciosa hipótese Cavaco, com cotações em alta. Lopes traça assim o "perfil" que supostamente é o ideal - e que é o dele - , por oposição ao de alguém que poderia "desestabilizar" o bom ambiente da coligação, leia-se Cavaco. No seu raciocínio simplista, Lopes tem por assentes dois pressupostos. O primeiro é o de que esta coligação PSD/PP está para durar. O segundo é o de que ele é o "candidato natural" que dela emerge e o único que pode garantir a estabilidade, previsivelmente eterna, da "santa aliança", uma forma retorcida de sugerir que Cavaco faz mal à saúde do Governo. A isto convém contrapôr alguma coisa e deixar uma pergunta. Não é certo que o País esteja rendido aos encantos da "coligação" e que a estime a ponto de erguer um qualquer seu neófito à chefia do Estado. E dentro dos partidos que a constituem, também não me parece que haja particular júbilo unanimista em torno da hipótese Lopes, descontando alguns novos e velhos caciques menores. Por outro lado, com a sua mitomania presidencial, Lopes esquece-se de que é presidente eleito da Câmara de Lisboa, onde praticamente nada faz. Aliás, o excessivo dom de ubiquidade emotiva de Santana Lopes, fá-lo entrar com frequência naquele "querer e não querer o mesmo" do autor clássico. Com o País em plena deriva depressiva, é seguro que a primeira preocupação dos portugueses não é a eleição presidencial, como há dias explicou Cavaco Silva. A juntar aos problemas que já tinha, Durão Barroso volta a ter Lopes precipitadamente pela frente. Deu-lhe corda, agora tem que o aturar. Nós é que dispensamos o exercício. Assim, e quando chegar a altura certa, uma pergunta deverá intimamente fazer-se: será que eu quero um aventureiro como Chefe do Estado?

12.2.04

AUTO DE ADORAÇÃO

Por um acaso do destino, fui parar ao Correio da Manhã. Lá para o fim da edição, na página "cultural", sou informado de que o primeiro-ministro se encontrou com os directores-gerais dos teatros nacionais e equiparados. A coisa passaria completamente despercebida, não fosse a fotografia que ilustra o evento e que, infelizmente, não consigo aqui reproduzir. Nela, na escadaria que dá para os jardins de S. Bento, e onde os chefes do Governo costumam ouvir "cantar as janeiras", temos, no plano mais elevado, D. Barroso, ladeado, salvo erro, no mesmo degrau, por Ricardo Pais, o director do Teatro São João (quem mais? ver neste blogue o post Teatros e Directores). Um degrau abaixo, está Pedro Roseta, o ministro da Cultura, e um nadinha mais abaixo, com um ar de absoluta veneração e atenção ao que diz Barroso, o novo director do D. Maria, António Lagarto, muito circunspecto, e o inefável e sorridente director de São Carlos, Paolo Pinamonti. Lembro-me de lá ter visto igualmente Amaral Lopes, o secretário de Estado. No fundo, reconstituiu-se ali, por instantes, um verdadeiro "presépio cultural", inclusivé com os respectivos figurantes colocados no sítio certo. Segundo a notícia, Barroso agradeceu aos senhores dirigentes o acréscimo de público, em 2003, apesar de Lagarto, por exemplo, não ter tido nada a ver com isso na altura. Ter-lhes-á falado da "autonomia financeira", da nova lei orgânica do D. Maria e prometido mais "teatros SA". Eu não sei se as criaturas saíram dali mais satisfeitas. A julgar pela foto- as pessoas tendem a esquecer-se do poder avassalador que uma foto pode ter - tudo indica que estavam muito contentes. Este frívolo exercício de pura bajulação recíproca, ali tão bem retratado, vale o que vale e é tão efémero como o sol que presentemente nos abençoa. Resta, pois, esperar, ou pela próxima entrevista de Ricardo Pais, ou pelo próximo auto de adoração, para termos a certeza de que os figurantes ainda são os mesmos.

11.2.04

FEIRA CABISBAIXA

Leio no Diário de Notícias que os portugueses são o povo mais insatisfeito da União Europeia (UE), de acordo com o último Eurobarómetro. Apenas 56 por cento dos portugueses se sentem "satisfeitos com a sua vida", constituindo isto "a percentagem mais baixa obtida por este indicador desde 1989, e consideravelmente inferior à média da UE, que é de 79 por cento». Segundo o documento, "52 por cento dos portugueses acreditam que a situação financeira do país se vai agravar em 2004 e apontam o desemprego como a principal preocupação". Aos portugueses de que fala o estudo, de nada serve, por exemplo, a prestação petit comité dos homens do "compromisso Portugal", cheios de perfume neo-liberal. Praticamente só o Sr. Delgado e uns quantos deslumbrados jornalistas da "economia" repararam neles. A sua "sociedade civil" é uma construção inteiramente privada, que se aloja exclusivamente nas suas luminosas cabeças. Ao português que respira neste estudo, estas fantasias académicas não dizem rigorosamente nada. E pairando por entre uns e outros, reina a maioria nefelibata, tão triste e acabrunhada como o povo cabisbaixo que tão desastradamente pastoreia.

RICHARD STRAUSS




Para aguentar , há que recorrer muitas vezes a bálsamos maiores do que vida. Nos livros, na música, num filme ou num corpo mergulhado em nós e nós nele, rasura-se por um instante esta insuportável banalidade quotidiana, de há muito orfã de Deus. A mesma pulsão que nos impele para a vida é já, nos seus interstícios, uma pulsão de risco e de morte. Eu encontro sempre demasiada dessa "vitalidade" crepuscular na música de Richard Strauss, particularmente nas suas Vier letzte Lieder e no poema sinfónico Tod und Verklärung (Morte e Transfiguração). Na versão preferida, a de Herbert von Karajan, com a Berliner Philarmoniker e a voz de Gundula Janowitz.

Im Abendrot ( o poema da "última canção" de Strauss, de Josef Karl Benedikt von Eichendorff )

Wir sind durch Not und Freude
Gegangen Hand in Hand:
Vom Wandern ruhen wir beide
Nun überm stillen Land.

Rings sich die Täler neigen,
Es dunkelt schon die Luft,
Zwei Lerchen nur noch steigen
Nachträumend in den Duft.

Tritt her und laß sie schwirren,
Bald ist es Schlafenszeit,
Daß wir uns nicht verirren
In dieser Einsamkeit.

O weiter, stiller Friede!
So tief im Abendrot,
Wie sind wir wandermüde -
Is dies etwa der Tod?

10.2.04

O MODELO E A CAUDA

Estão reunidas no Convento do Beato cerca de 500 almas, com idades compreendidas entre os 30 e os 50, e que se dedicam ao empresariado, à gestão e à universidade. Estes peregrinos estão em busca de "um modelo para o nosso desenvolvimento" o qual, no final da busca, deverá retirar-nos liminarmente da "cauda da Europa". Intitulam-se pomposamente "Compromisso Portugal" e preparam-se para vergastar o Estado, celebrar a "sociedade civil" e aplaudir a "veia reformista" do Governo. No meio desta paripatética assembleia estão grandes "patriotas" que, no passsado recente, assinaram um "manifesto" contra a invasão económica espanhola. Entre eles, há mesmo alguns que quase logo de seguida se colocaram, com o mesmo patriotismo, nas mãos dos vizinhos. O que é que se pode esperar desta gente? Praticamente nada. Muitos dirão mal do Estado que os mantém como gestores, outros reclamarão do mesmo Estado mais prebendas e alguns enunciarão inocuidades e vagas sugestões para obterem a benção governativa. Esta "geração" de "empreendedores" brota quase toda do embalo maternal do Estado. Uns, de uma forma directa, outros pelos "negócios" com o lado público da Nação os quais basicamente lhes garantem a sobrevivência. A "sociedade civil" portuguesa, de que se orgulham, raramente ultrapassa os patamares da indigência. Estes exercícios onanistas podem fazer esquecer, por breves instantes, a realidade. Porém, entre o "modelo" e a "cauda", haverá sempre uma crepuscular "distância subitamente impossível de percorrer"

9.2.04

O NOME DAS COISAS




Jorge Coelho deu uma entrevista simultânea a três órgãos de comunicação social. Estava em forma. Goste-se muito, pouco ou nada do género, a verdade é que Coelho dá quase sempre uma lição de combatente "todo-o-terreno", pragmático e "terra-a-terra". Sem grandes sofisticações. Falou para o seu partido e falou para nós. Estamos mergulhados num período em que são precisas fracturas e não pancadinhas doces nas costas. D. Barroso parece que se demitiu das eleições europeias, este fim de semana. Quem quererá ser cabeça de lista da interesseira coligação depois de o "chefe" ter praticamente enunciado um pré-requiem eleitoral? Coelho tem razão. Estas eleições também servem para consumo doméstico. Por mim, prefiro deixar do "lado de lá" os Srs. Telmo e Pires de Lima, por exemplo, esses populares precocemente envelhecidos, devidamente acompanhados por quem os quiser acompanhar. Não serei eu que estou mal. O PSD é que por vezes anda muito mal acompanhado. Ninguém vota em gente cabisbaixa nem em criaturas mal-resolvidas. Ao actual panorama cinzentista, onde alguns se pretendem deitar no conforto ubíquo dos pífios consensos, a pretexto da pseudo-salvação financeira da Pátria, eu prefiro, de caras, "combatentes" como Jorge Coelho, pessoas que chamam pelo nome das coisas.
O CORO

Nas grandes tragédias clássicas bem como em grande parte do repertório lírico, o coro tem por função o enquadramento do pathos do enredo e das vicissitudes por que passam os protagonistas. O coro comenta o que se passou, o que se está a passar e anuncia felicidades ou desenlaces fatais futuros. O coro do Teatro Nacional de São Carlos, não fugindo a esta tradição, decidiu não se apresentar num concerto sinfónico, aparentemente por razões corporativas. O crítico aplaudiu a ausência deste corpo artístico e só lhe faltou sugerir o pelotão de fuzilamento. Sabe-se que o coro pode não ter sido excessivamente feliz nas suas últimas prestações e que a sua direcção musical pode acusar algum desgaste perfeitamente natural. Porém, não convém nestas coisas pensar com os pés. O coro do TNSC está integrado numa organização complexa que é o São Carlos, recheada de contradições e de uma deficente estrutura interna. Se os corpos artísticos têm o "poder" que têm, designadamente de alterar por completo a "fisiologia" do restante programa dos concertos sinfónicos, foi porque alguém o concedeu. Por outro lado, e numa mesma semana de trabalho, o coro pode ter de ensaiar textos musicais completamente distintos, passando de uns para os outros, a ritmos absolutamente estonteantes. A actual direcção do teatro, como aqui já afirmei, vive muito do "faz de conta". Adora fazer de conta que está tudo no melhor dos mundos quando efectivamente não está. A sua insegurança manifesta-se nestas alturas e sempre da pior maneira. E nada se resolve com prepotências ignorantes. O coro e a Orquestra Sinfónica Portuguesa são constituídos por bons músicos, homens e mulheres que gostam da sua profissão e que a honram. Um teatro com as características do São Carlos dirige-se com eles e não contra eles. O mesmo raciocínio é aplicável aos funcionários "técnicos" e "administrativos". É que se assim não for, em última análise, quem "paga" o devaneio é o público a quem tudo se dirige e que, não esqueçamos, acaba efectivamente por pagar tudo.

8.2.04

ALAN BULLOCK




(1914-2004)

Escreveu uma das grandes biografias de Hitler ( Hitler, a study in tyranny, de 1952 ) - a outra, na minha modesta opinião, é a de Joachim Fest - e, muitos anos passados, procedeu à revisão de algumas teses iniciais desse livro, com base noutros trabalhos entretanto publicados, em Hitler and Stalin - Parallel Lives. Bullock pertence à altiva categoria dos historiadores ingleses do século XX que possuem o condão de transformar um livro de história numa coisa bem escrita, não entediante, com informação pertinente, que se lê tranquila e profundamente como um romance. Na mesma linha, encontramos A. J. P. Taylor, por exemplo. Tudo gente bem educada e que, lida com atenção, nos ajuda a entender melhor o tumultuoso século XX.
AUSPICIOSO REGRESSO...

o de Vasco Pulido Valente às suas três crónicas semanais no Diário de Notícias, entre sexta e domingo.

7.2.04

PUBLICIDADE ENGANADORA

Quando chegou à altura de correr com o comissário da Expo 98, Eng.º Cardoso e Cunha, o então ministro tutelar daquele célebre e chorudo brinquedo, o Dr. António Vitorino, saiu-se com umas graçolas do género "não me peçam para eu andar com o senhor ao colo" ou "vejam lá se é preciso mandar erguer-lhe uma estátua". O tempo passou, Vitorino também passou do governo para a Europa, e agora tornou-se sinal de distinção política interna andar com o referido Vitorino ao colo. E isso é coisa que lhe não falta, desde o Presidente da República ao governo de D. Barroso, passando naturalmente, mas menos, pelo seu próprio partido. Em Portugal, é vulgar a distância e o soberano alheamento das tricas domésticas gerarem mitomanias, excessivas expectativas e uma veneração de circunstância dos meios de comunicação social (ver, a propósito disto, uma nota no Abrupto) . Primeiro, Vitorino começou por ser "bom" para vir pôr em ordem o esfrangalhado Partido Socialista, abandonado à sua pouca sorte por Guterres. Depois, farejando simultaneamente o putativo perigo desse "regresso" e o indiscutível bom papel desempenhado na Comissão Europeia, Barroso manteve o homem em Bruxelas. A seguir, passou pela cabeça de alguns pândegos que Vitorino podia ir a Secretário Geral da NATO, coisa que o Sr. Rumsfeld, entre dois cafés e uma conversa rápida numa descida à Europa, desfez em dois tempos. Para entreter eventuais distraídos, pôs-se para aí a correr que o governo podia manter Vitorino na Comissão ou mesmo alcandorá-lo a presidente da dita. Nem uma coisa nem a outra se vão verificar. Alguma vez os interesses da coligação seriam compatíveis com mais uma "luz verde " dada a Antómio Vitorino para o tão atraente cargo de comissário europeu? Quanto à questão da presidência, tudo fica facilitado pela nossa irremediável pequenez. Com não sei quantos candidatos ao cargo, que já foram chefes de governo, e com a arrogância porventura legítima do PPE, que hipóteses sérias tem Vitorino? Nenhumas. Eu respeito as qualidades e a inteligência viva de António Vitorino, embora me pareça que se pôs demasiadamente em bicos dos pés para se manter, custasse o que custasse, em Bruxelas, empurrando-se a si próprio para a frente, na esperança de que o governo o seguisse. É pacífico que Barroso irá fazer o seu "número" até ao fim e, no momento adequado, lastimar-se-á, acudindo de seguida ao ansioso interesse partidário. Até lá, nesta como em outras matérias, a publicidade enganadora vai continuar.

5.2.04

TEATROS E DIRECTORES

Os ecos do colóquio sobre a cultura e os seus modelos de financiamento, a que aludi no post anterior, só me chegaram pelo trabalho de uma jornalista da Antena 1 que lá esteve. Segundo ela, foram ouvidos mais toques de telemóvel do que intervenções da "engravatada assistência". Ou seja, palestrantes e comentadores falaram essencialmente uns para os outros, uma má sina crónica deste tipo de coisas. De essencial, a jornalista reteve que Graça Moura é contra os subsídios aos agentes culturais, enquanto Prado Coelho e o secretário de Estado Amaral Lopes entendem que o Estado não pode prescindir da sua "patorra" paternal. Os comentadores - parece- falaram do que lhes interessa, e pronto, arrumou-se o colóquio. Bem mais interessante do que este café alargado a umas conversas, é a entrevista que Ricardo Pais, director do Teatro Nacional de São João, do Porto, dá ao Jornal de Notícias. Pais gosta muito de se ouvir e até tem alguns excelentes motivos para dar ar à sua imensa vaidade, atendendo ao estado pindérico geral. R. Pais sabe muito bem " vender" os seus produtos e, sentindo-se acossado ou em défice de atenção, polemiza qb. Sabemos que saiu quando Carrilho saiu e, como toda a entourage deste último, não suportou o "interregno" Sasportes. Nessa altura, se a memória me não falha, foi ocupar o lugar de assessor para ele criado no Ministério da Cultura por M. M. Carrilho, uns dias antes de partir. Por isso, e porventura por outras razões que ignoro, brindou Sasportes nesta entrevista com uma picardia desnecessária, comparando-o com as "pessoas civilizadas " que são Roseta e Amaral Lopes, embora não me conste que Sasportes seja propriamente um "homem das cavernas". Depois desta passagem da mão pelo "pêlo" dos poderes da Ajuda, Ricardo Pais invoca Durão Barroso para lhes lembrar que, até ao final de 2003 se tinham comprometido - pelos vistos, só com ele... - a recuperar a autonomia financeira perdida pelos teatros com o orçamento do ano passado. E vai mais longe, "ameçando" sair do São João se a dita autonomia não for restaurada, uma vez que já vamos em Fevereiro de 2004. Duvido que Amaral Lopes se resigne a perder a "estrela da companhia", como também duvido que o Ministério das Finanças altere substantivamente a situação nos tempos mais próximos. Numa coisa Pais tem razão. Não é por muito alterar leis orgânicas ou por querer obsessivamente transformar teatros em SA's que "as coisas mudam". O problema do "dinheiro" permanece, a fonte de financiamento é a mesma (OE) e ninguém pode estar certo de que a "agilidade" indispensável ao bom funcionamento destes organismos esteja garantida fora do registo presente do instituto público. Eu ainda gostava de ver um dia Paolo Pinamonti, o director do São Carlos, "encostar" estes actuais poderes um pouco à parede, como o faz, subtilmente na praça pública, Ricardo Pais. Sei no entanto que ele prefere as teclas da "insistência" (quantas vezes eu ouvi esse verbo tão rapidamente aprendido e conjugado por Pinamonti, "insistir, temos que insistir...") e do telemóvel para chegar ao seu "bom porto". Há, porém, uma diferença entre estas duas direcções. Pais, quando está à frente de um teatro nacional, "dirige" efectivamente de alto a baixo a instituição, não se limitando à direcção artística. Em certo sentido, ao regressar ao São João, R. Pais também o "restaurou" internamente, depois de um período de relativa trapalhada. Já a Pinamonti "escapa" a "cultura interna" da casa e o seu funcionamento algo esquizofrénico, que referi na carta de demissão. O que lhe sobra para a direcção artística, falta-lhe amiúde para a direcção tout court, tornando difícil a colaboração na gestão. E falo exclusivamente por mim, a quem não apeteceu "fazer de morto" ou de idiota útil.

4.2.04

ÓPERA S.A.?


O Teatro de São Carlos, visto por Manuel Faia

O IPSD, um instituto na órbita do PSD, presidido por Mota Amaral, debate hoje qualquer coisa como "o papel do estado e do mercado na cultura". Peroram Eduardo Prado Coelho (um incontornável dele próprio...), Vasco Graça Moura (o ministro "sol e sombra" da cultura do PSD) e José Amaral Lopes, o secretário de Estado oficial. A seguir, estas intervenções são glosadas por, entre outros, o meu amigo e cineasta Joaquim Sapinho e pelo director do São Carlos, Paolo Pinamonti. Não me surpreende a presença deste último, apesar de ter sido escolhido por José Sasportes. Como ele me confessou um dia, nunca tinha sentido tanto "apoio" como com esta actual tutela sediada na Ajuda. Não foi Amaral Lopes quem, numa entrevista na rádio, a semana passada, afirmou que deve muito a Pinamonti, "que lhe ensinou a "gerir" um teatro de ópera"? Uma "escola", não haja dúvidas. No meio destas amabilidades para consumo dos próprios, seria interessante olhar para dentro do que se passa no Teatro Nacional de São Carlos que, até prova em contrário (e descontando o mecenato exclusivo, mas a termo, do BCP, conseguido por Guterres e por Carrilho), é suportado pelos contribuintes. Não me refiro ao que é visto em palco, antes penso na "organização" e na sua gestão. Pinamonti está à beira de completar os três anos de mandato, como director artístico e como director. Constou-me que já "renovou", pelo menos até 2005, dado que, pelos vistos, nem a nossa (actual) Pátria o dispensa, nem a Itália por ele suspira. De 2001 até hoje, Pinamonti já viu passar pela sua direcção seis vogais. O primeiro não chegou a "aquecer o lugar" e, num dos seus múltiplos regressos de Veneza, Pinamonti e a sua colega de direcção despediram-no sumariamente por motivos que só os três conhecem. A segunda, esta senhora a que aludi, foi demitida pelo Dr. Roseta depois de umas trapalhadas folclóricas entre membros da direcção, presidida pelo mesmo Pinamonti, arrastando-se presentemente os "jogos florais" pelos tribunais. Ao mesmo tempo, substituiram-se a referida senhora (por mim) e o vogal que tinha ocupado o lugar "do primeiro a partir", que transitou para o gabinete de Amaral Lopes. Eu entrei acompanhado por uma senhora que por lá se mantém, muito amparada na ante-câmara do gabinete do secretário de Estado, enquanto eu saí, pedindo a demissão em Abril do ano passado, por razões várias vezes referidas neste blogue e, na altura, em alguns jornais. Finalmente, fui substituído por outra senhora, funcionária da casa que, da dourada prateleira em que se encontrava desde a extinção da Fundação de São Carlos, transitou para a "direcção Pinamonti", devidamente abençoada. E assim chegámos aos seis. No pequeno mundo que é a nossa vida cultural, e particularmente no pequenissimo mundo que é a ópera em Portugal, Pinamonti tem registado imenso sucesso, seja pela efectiva qualidade das suas escolhas artísticas - e não são todas -, seja pelo deslumbramento palonço e provinciano que perpassa por algumas almas do "meio" e da "política" que parecem nunca ter dado pelos directores anteriores. Ora acontece que Pinamonti, como todos nós, aliás, é feito de luz e de sombra. Como estamos em "teatro", é natural que só a luz brilhe. O São Carlos quase sempre se caracterizou por ser um mundo "só seu", praticamente auto-gestionário e autofágico. Desde o elegante Dr. Figueiredo que reportava directamente a Salazar, passando pelo seu braço direito - que guardava o dinheiro para os pagamentos do Teatro numa caixa de sapatos - ao Dr. Serra Formigal (que é um senhor!), que cantava e dirigia o coro, e ajudava a puxar o pano de cena quando ocorriam greves, como o fazia outra senhora duma pretérita direcção, etc, etc, de tudo um pouco ali tem acontecido. A estratégia de Pinamonti- se é que tem alguma - é privilegiar "o que se vê", custe o que custar, no sentido literal do termo "custo" e, muito naturalmente, o seu currículo pessoal. Por isso arrasta atrás de si um organismo pesado, cheio de contradições inexplicáveis em sede de gestão de pessoal, com hierarquias opacas, algumas totalmente desnecessárias e ineficazes, uma direcção de coro e de orquestra em quebra notória de vitalidade e um serviço de relações públicas que, até aqui exemplarmente assegurado, foi agora entregue a amadores, e tudo por causa dos joguinhos pirosos dos pequenos poderes internos. Como eu dizia quando por lá andei, o Teatro precisava de parar para (se) pensar. À actual tutela também interessa mais "o que se vê" do que o que fica escondido atrás. E na actual direcção, deve haver quem já só sonhe com uma administração "SA", daquelas "da moda", remetendo-se oportunamente Pinamonti para a mera direcção artística ou para casa. Já vai longo este post. O tal colóquio que mencionei no início é encerrado pelo Dr. Pedro Roseta, a quem deixo uma pergunta. Qual é o "mercado" que se pode interessar por "isto"?

2.2.04

SELVAGENS E PERIGOSOS



Um semana depois da ocorrência de uma morte trágica num estádio de futebol e após uma semana inteira de juras comovidas de ternura entre a grande "família" da bola, o País foi brindado com uma explosão de violência, dentro e fora dos muros do mesmo estádio onde, noventa minutos antes, se homenageara o jogador ali desaparecido. Para quem consome este produto, está-se a menos de seis meses do circo do Euro 2004. E quem atentar por uns instantes nas "actividades circum escolares" relativas ao evento, intui de imediato que está praticamente tudo por fazer e tudo mal preparado. Estes sinais de agressões entre jogadores e entre públicos são uma pequena amostra do que se esconde por detrás da segurança da coisa. Ou seja, quase nada. É que, em Junho, aos grunhos portugueses, vão juntar-se os desordeiros profissionais das claques das outras selecções europeias. A leveza do ministro adjunto Arnaut e do seu ajudante Loureiro, curvados às maçonarias das SAD's desportivas, bem como o afável registo de sacristão de paróquia do Dr. Figueiredo Lopes, não ajudam a melhorar as perspectivas. As polícias estão desmotivadas e anunciam pouco empenho. Acontece que a sociedade portuguesa mudou profundamente nestes últimos anos, e nem sempre e nem em tudo para melhor. O grosso das governações não entende isto. O País "doce" do Dr. Salazar jaz há muito morto aos pés, entre outros, das claques acéfalas do futebol. O rebanho pacífico e "habitual" de Salazar desapareceu para dar lugar a estes novos bárbaros, selvagens e perigosos.