31.7.03

AS ÁGUAS

Na sua solidão, no seu sonho de amor ou de ausência de amor, os que se perdem vão sempre ter à beira de água. Na imensa deriva da noite, o estertor da agonia dos aflitos é abafado pelo rumor da mais pequena ondulação. O espírito, vazio de tudo, excepto do rumor das ondas, serena. Rolando com as águas, a alma até então atormentada desdobra as asas.
As águas da terra! Que nivelam, sustentam, reconfortam! Águas baptismais! A seguir à luz, são elas o elemento mais misterioso da criação.
Tudo passa com o tempo. As águas ficam.



Henry Miller

30.7.03

ANTÓNIO MARIA LISBOA

Por estar sempre a convocar o Cesariny, e por que não me apetece falar do Mestre Américo, lembrei-me de António Maria Lisboa, uma das mais talentosas promessas, e ainda realidade, do surrealismo português, em má hora morto surrealisticamente (ou nem tanto) de tuberculose aos 25 anos. A partir de 1947, com Pedro Oom e Henrique Risques Pereira, constitui um pequeno grupo algo distinto das actividades já conhecidas dos surrealistas. Em 1949, vai para Paris, onde permanece algum tempo. De volta a Lisboa, colabora com poemas e desenhos na 1 ª Exposição dos Surrealistas, do grupo dissidente. A partir dessa altura, forja-se a amizade com Cesariny, que o acompanhará até aos últimos dias. Em 1950 colabora na redacção de vários manifestos e, em carta a Cesariny, faz as primeiras declarações com referências aos objectivos do movimento surrealista. Apesar destas aproximações, Lisboa prefere ver-se como um metacientista, e não como um surrealista, porque, diz ele, a surrealidade não é só do Surrealismo, o Surreal é do Poeta de todos os tempos, de todos os grandes poetas.

Um exemplo :

PROJECTO DE SUCESSÃO

Para o Mário-Henrique

Continuar aos saltos até ultrapassar a Lua
continuar deitado até se destruir a cama
permanecer de pé até a polícia vir
permanecer sentado até que o pai morra

Arrancar os cabelos e não morrer numa rua solitária
amar continuamente a posição vertical
e continuamente fazer ângulos rectos

Gritar da janela até que a vizinha ponha as mamas de fora
pôr-se nu em casa até a escultora dar o sexo
fazer gestos no café até espantar a clientela
pregar sustos nas esquinas até que uma velhinha caia
contar histórias obscenas uma noite em família
narrar um crime perfeito a um adolescente loiro
beber um copo de leite e misturar-lhe nitroglicerina
deixar fumar um cigarro só até meio
abrirem-se covas e esquecerem-se os dias
beber-se por um copo de oiro e sonharem-se Índias.


(Ossóptico)



ELSINORE

Leio no Anarca Constipado que não se pode legislar com um olho no código e outro na televisão. Ainda há um terceiro olho, o azul do Cesariny.
LLOSA EM BAGDAD

Vale a pena acompanhar as crónicas de Mario Vargas LLosa no Diário de Notícias acerca do Iraque da pax americana e dos velhos ressentimentos. Começaram na segunda-feira.
INFERNO

Na zona das Beiras, Castelo Branco, Fundão etc, há um fogo que consome o terreno desde o fim de semana. Ao lado de muitas outras chagas, os incêndios, ora filhos da incúria ignorante, ora da malícia criminosa, estão para os nossos verões como o Algarve está para a populaça, entre Julho e Agosto. Dizer-se que "para o ano é que vamos fazer e acontecer..." não quer dizer rigorosamente nada. As populações e os bombeiros estão cativos desta anuidade inócua dos poderes públicos. Seja pelos rigores do Inverno, seja pelos castigos do Verão, há muitos de entre nós, nesse País ignorado, que só por intervalos saem do Inferno.

29.7.03

DO AMOR

Percebi pelo Francisco que o Guerra e Pás tinha falado da aparente ausência do amor, como tema, nesta nossa blogolândia. É sinal de que andam a ler a Marguerite Duras: todo o amor é luto do amor.
A HERANÇA II

A propósito de um post que me ocorreu lá para trás, no dia em que começou o golpe de estado em S. Tomé e Prí­ncipe, o Paulo Tavares enviou-me um e-mail que transcrevo em parte, para poder comentar.

A solidariedade com Timor foi descrita como "baba" e "folclores de rua"

Acho isso muito injusto para com as pessoas envolvidas. Certamente que haverá envolvimentos mais ou menos sinceros, mais ou menos sentidos, e mais ou menos esforçados, mas será sempre melhor que a simples indiferença. E mesmo que o apoio prático não tenha coberto tanto quanto os timorenses precisavam, certamente que eles não menosprezaram esse apoio, da forma que o "Portugal dos Pequeninos" fez.


1. Como o Paulo facilmente perceberá, se se der ao trabalho de querer entender, eu utilizei uma caricatura para mencionar o que se passou nas ruas de Lisboa, em Setembro de 1999. De facto, era "outro paí­s", diferente do indiferente de 1975, que descia à rua. O de 75, em geral, esteve-se nas tintas para que a Indonésia tivesse entrado pela ala esquerda da ilha de Timor. O que eu disse é que gostava de ter visto, ou de ainda poder vir a ver , manifestações idênticas por, por exemplo, Angola. Que eu saiba, a miséria, a fome e a corrupção que ali grassam desde 75, não comoveram ainda ninguém tão intensamente. E em Timor, qualquer dia, ninguém quer saber do português para nada. Vai ver.

Os pedidos de desculpa foram classificados como "patéticos"

Concordo que é impossível que os pedidos de desculpa reparem os males praticados. Mas só o(s) destinatário(s) desses pedidos pode(m) julgar se ele é necessário ou não, desejável ou não, útil ou não. Por exemplo, eu vivo actualmente no Brasil, onde existe uma proibição de piadas sobre negros, coisa que durante muito tempo achei um tanto ridícula. "Na prática, de que lhes serve isso", pensava eu, "seria mais útil uma medida concreta, como a criação de cotas para o acesso ao ensino superior ou a cargos públicos, etc". Mas mesmo sobre essa parca medida, relativa às piadas, acabei concluindo que não tenho como avaliar isso. Não sei qual o efeito que isso tem sobre a auto-estima de milhões de pessoas, e sobre o respeito que foram adquirindo. Posso fazer muitas suposições, mas não posso sabê-lo de facto, não posso sentir o efeito, sendo eu branco.


2. Eu não tenho nada contra os "pedidos de desculpa" . Apenas fiz notar que são uma forma singela e já trivial de aliviar a canga da História.

A presença de Portugal em África foi equiparada à presença no Minho ou em Trás-os-Montes

Parece-me muito estranho falar de "presença de Portugal" no Minho ou em Trás-os-Montes, que desde sempre foram parte integrante de Portugal, e onde não consta que haja movimentos separatistas. E admitindo que esta presença, ainda que não seja épica ou gloriosa, não será assim tão terrível, porque seria negativo que a presença em África fosse imbuída do mesmo espírito?


3. O regime que, como sabe, tratava as colónias por "províncias ultramarinas", é que equiparava as coisas, não querendo que se distinguissem estas das "da metrópole". Como, de facto, não estava, nem no Minho, nem em Trás os Montes, o que se seguiu, depois de 1960, é conhecido.

Os portugueses em África foram classificados em bloco como paternalistas e interesseiros

Mais uma vez, parece-me uma generalização excessiva. Mesmo que isso fosse verdade para a maioria, haveria ainda um número significativo que consideravam a África como o lar, mais do que a metrópole.


4. Naturalmente que esses portugueses consideravam as colónias o seu "lar", com tudo o que essa carga semãntica implica. O problema é que, a partir de determinada altura, os autócnes começaram a não gostar mesmo nada daqueles "senhorios" ou mesmo "arrendatários".

A miscigenação foi descrita como imposta por Salazar e resultando em "pretas [montadas] à fartazana"

Acho que o que eu já disse antes sobre generalizações e respeito aplica-se em dobro a esta afirmação. Respeito pelas mulheres africanas e suas famílias, respeito por aqueles portugueses que não encaravam as coisas dessa forma, respeito até por Salazar, que podia ser um ditador, mas não consta que fosse um grosseiro. Também duvido que seja rigorosa essa afirmação simplista de que "Salazar impôs a miscigenação", mas deixo essa questão para quem souber mais de história colonial que eu.



5. Mais uma vez ao Paulo escapou o sentido da metáfora. Concedo que a expressão é forte, mas sobretudo julgo que é realista, e obviamente não generalizadora. A miscigenação fazia parte dos objectivos do regime para as "províncias", justamente por elas serem concebidas como mencionei acima. Porém, a cada português a sua maneira de "miscigenar", naturalmente. E Salazar não era mesmo nada grosseiro: era "portuguesmente" matreiro, apenas. Não se pode ser absolutamente perfeito.

Os retornados das ex-colónias foram um "resultado (...) despejado em contentores nos cais de Lisboa"

Uma vez mais, há uma questão de elementar respeito pelas pessoas. Pessoas não são "resultados", e pessoas não são "despejadas em contentores".


6. O Paulo não fixa imagens visuais de determinadas épocas? Pense bem qual é a que melhor ilustra a chegada dos chamados "retornados" a Lisboa e que, graças aos primeiros governos de Mário Soares, se integraram sem grandes problemas na "metrópole".

"(...) uma profunda e terrível miséria moral e material, sem fim."

Também aqui o "Portugal dos Pequeninos" faz afirmações categóricas, definitivas e totalmente indiferentes aos sentimentos das muitas pessoas que têm consciências dos problemas existentes, mas que têm ainda esperança.


7. Eu também tenho uma "desesperada esperança" de que, um dia, sem palavrosos, nem corruptos, se possa minorar o sofrimento de milhões de africanos que, um dia, para sua infelicidade, foram "dos nossos".



28.7.03

O RESSURGIR DO BURRO

De todas as notícias que pude ler na edição do Público de ontem, a que mais captou a minha atenção foi a relativa à ameaça de extinção de um determinado tipo de burro que se encontra no Norte do País, o burro mirandês. Esta espécie animal é muito injustamente desconsiderada sobretudo pela analogia homógrafa que tantas vezes é feita com outra espécie com apenas dois membros inferiores. No entanto, o verdadeiro burro é um animal de uma imensa dignidade e, na opinião de especialistas, pode ser um excelente animal de estimação e de companhia para uma criança.

Algumas curiosidades asininas:

Os burros foram, desde sempre, companheiros inseparáveis dos trabalhadores agrícolas. Incansáveis no arroteamento dos campos, parcos na alimentação e nos cuidados, tornaram-se numa força de trabalho indispensável, sobretudo nos meios mais pobres, onde se praticava uma agricultura de subsistência. Mas foram abandonados. O gado asinino foi sistematicamente subestimado e esquecido, não havendo até há bem pouco tempo qualquer programa de preservação ou melhoramento da espécie;

A importância dos burros ultrapassa as simples tarefas agrícolas. Estes animais desempenham um importante papel na manutenção da biodiversidade, pois permitem o maneio de terrenos de difícil acesso. Além da sua função ecológica, quando morrem são ainda uma fonte importante para o alimento de abutres;

Os burros da raça Terras de Miranda são orelhudos e barrigudos como os outros, mas apresentam algumas diferenças que os distinguem: são lanudos - têm pêlo comprido na ponta das orelhas, nas franjas e por cima dos cascos; são corpulentos, mais altos do que os restantes, de cor castanho escuro, joelhos fortes, orelhas grandes e inclinadas para a frente. Têm formas mais grosseiras e são pachorrentos e dóceis;

Quando uma burra anda com cio, o que acontece nesta altura do ano, os agricultores dizem que anda "desonesta". E as burras "desonestas" transformam-se: ficam más, mascam em seco, mordem-se entre elas e andam meias tontas. As burras podem criar até aos 18, 19 anos, mas uma fêmea com 13 anos que não cria há 10 tem o aparelho reprodutor muito atrofiado e pode não chegar a reproduzir - é isto que se está a passar com muitas burras mirandesas. Uma burra anda prenhe durante um ano;

O burro é um animal simpático, vivo e inteligente, meigo e brincalhão. Mas, em vez de obedecer por instinto, questiona e - inevitavelmente - teima. Aprende com destreza e cria relações sólidas com o homem. Quando são bem tratados são animais mais amigáveis do que os cavalos. Se forem maltratados, tornam-se desconfiados e temerosos e é preciso ter cuidado com eles.

Esta leitura trouxe-me à memória um belíssimo texto de Elias Canetti, inserido em As Vozes de Marraquexe, Notas de uma viagem (Ed. D. Quixote), intitulado O Ressurgir do Burro, cuja história terá tido lugar na célebre Praça Djema el Fna de Marraquexe. Vale a pena ler o livrinho que nem sequer é muito grande.

27.7.03

O TEMPO DOS ASSASSINOS

A propósito de O Mundo do Sexo e Outros Textos, de Henry Miller, na versão de bolso da Ed. D. Quixote, quero deixar umas linhas sobre o autor e a respectiva obra. Miller é amiúde apresentado como autor de livros por onde escorrem abundantes fluídos humanos entre as páginas, designadamente quando se pensa na "Trilogia da Rosa" (Sexus, Plexus e Nexus ).

Miguel Torga, por exemplo, esse padrão do nosso rusticismo literário e saloio, escreveu no seu Diário que "não há nada mais repugnante do que um escritor a ejacular pela caneta", a propósito de Miller. De facto, Miller não é um escritor para montanhas e passarinhos. A sua obra literária e ensaística é muito mais do que isso, sendo certo que o "isso" faz parte de uma experiência de vida muito particular e muito "vivida", entre a Europa e os EUA, e felizmente longa, como foi a deste cruzado praticamente sem terra.

Nasceu em Nova York, em 1891, onde passou a infância e a adolescência. Teve vários empregos antes de se decidir pela carreira literária. Em 1930 muda-se para Paris, onde publica os seus primeiros livros, que faz chegar aos EUA clandestinamente. Retorna aos Estados Unidos em 1940, fugindo da Segunda Guerra Mundial. Em 1944, radica-se em Big Sur, na Califórnia.

Henry Miller tinha 69 anos quando a sua primeira grande obra-prima, Trópico de Câncer, foi publicada legalmente nos Estados Unidos, quase trinta anos depois de ter sido escrita. Passou rapidamente de banido a respeitável escritor, centrando a sua prosa nos temas das liberdades literária e individual.

Pouco antes de morrer, em 1980, escreveu um pequeno e belo texto, Viragem aos Oitenta, que se pode ler, salvo erro, numa tradução das Edições Asa.

Recomendo particularmente o ensaio de Miller sobre Rimbaud, O Tempo dos Assassinos ( The Time of The Assassins, a study of Rimbaud), a que volto constantemente (Hiena Editora, Coleccão Cão Vagabundo 8).

Ficam uns blogues de sua autoria.

Quando um homem aparece, o mundo cai sobre ele e quebra-lhe a espinha. Restam sempre em pé pilares apodrecidos demais. Humanidade supurada demais para que o homem possa florescer. Basta que um homem se vista de maneira diferente dos seus concidadãos para ser motivo de desprezo e de ridículo. A única lei que é realmente cumprida de bom grado e violentamente, é lei da conformidade.

Parece que, onde quer que vá, existe drama. As pessoas são como chatos - penetram na pele e enterram-se lá. A gente coça-se e coça-se até sair sangue, mas não nos podemos livrar permanentemente dos chatos. Em toda parte aonde vou, as pessoas fazem uma trapalhada das suas vidas. Todos têm a sua tragédia particular. Está no sangue agora - infortúnio, tédio, aflição, suicídio. A atmosfera está saturada de desastre, frustração, futilidade. Coça-se e coça-se - até não restar mais pele. Todavia, o efeito sobre mim é estimulante. Em vez de ficar desencorajado ou deprimido, divirto-me. Clamo por mais e mais desastres, maiores calamidades, malogros piores. Quero que todo mundo se desmantele, quero que todos se cocem até morrer.

Somos todos sonhadores, só que alguns despertam a tempo de anotar palavras. Certamente eu quero escrever. Mas não julgo isso como o alvo supremo. Como direi? Escrever é o mesmo que fazer cócó enquanto se dorme. Um cócó delicioso, aliás, mas primeiro vem a vida, depois o cócó. Vida é mudança. Movimento, indagação ... um avanço para o desconhecido, o inesperado. Só poucos homens podem dizer a si mesmos: "Tenho vivido!" Eis por que possuímos livros ... para que esses homens possam viver a vida dos outros. Escrever para mim, no entanto, mais do que viver a vida alheia, era esquecer que nasci aqui. Quero virar, mexer, errar pelo mundo. Quero chegar ao fim de todas as estradas.

A minha preocupação sempre se voltou para o joão-ninguém que se perde na confusão, o homem que é tão comum, tão ordinário, que a sua presença nem chega a ser notada. A minha intenção no acto de escrever era eliminar as diferenças que me separavam do próximo. Definitivamente não queria tornar-me artista, no sentido de me tornar algo estranho, algo à parte e fora da corrente da vida. O escritor verdadeiramente grande não quer escrever: quer que o mundo seja um lugar em que possa viver a vida da imaginação.

O medo, o medo com a cabeça de hidra, que é generalizado em todos nós, é uma ressaca das formas inferiores de vida. Estamos divididos entre dois mundos, um, aquele de que emergimos, e o outro, aquele em direcção ao qual caminhamos. Este é o sentido mais profundo da palavra "humano": somos um elo, uma ponte, uma promessa. É em nós que o processo da vida está a ser levado a efeito. Temos uma tremenda responsabilidade, e é a gravidade disso que desperta o nosso medo. Sabemos que se não formos em frente, se não realizarmos o nosso ser potencial, recairemos, nos apagaremos, e arrastaremos o mundo connosco na queda. Levamos o Céu e o Inferno dentro de nós e toda a Criação está ao nosso alcance. Para alguns são perspectivas aterrorizantes. Mas desejariamos que fosse diferente? Seriamos capazes de inventar um drama melhor?

Se fores capaz de ser um verme, serás também capaz de ser um deus.

26.7.03

YOU ARE WELCOME TO ELSINORE III

1. Entre outras coisas, o General não gostava de o ver chegar sempre atrasado às formaturas. O único dia em que chegou a horas foi em Braga, firme e hirto. Apertou a mão a Monteiro e trazia Shakespeare na pasta. Já ofereceu cópias a vários chefes militares. Maria Barroso também anda a ler.

2. Quem apertar a mão do braço direito de Portugal arrisca-se a ir parar ao serviço de ortopedia do Hospital de S. José.

3. No partido da garotada divertem-se muito. Nos intervalos do recreio, fazem tratamentos de fisioterapia à  coluna vertebral. Não consta que esteja a dar resultado e Maria José Nogueira Pinto vai deixar de ter comparticipação.Tentou andar direita.

4. O PC é um partido generoso: não cobra quotas e não gasta dinheiro em selos para convocatórias de militantes. Não expulsa ninguém. O Carlos Brito é que quis ir de férias e os outros não têm caixa do correio.

5. Troca de impressões entre dois "alvos" no Largo do Rato:
-"O meu é mais pequeno que o teu e foi ouvido 1400 vezes".
-"Não é não. O meu só tem 6 cm e já foi ouvido 1700 vezes".

6. José Manuel Fernandes é ouvido de Washington a Bagdad, passando pela Av. 5 de Outubro e por Carnaxide. Vem do tempo em que, num canto de uma sala na Rua Duque de Palmela, escrevia sobre "tudo o que não escrevi", pensando em Wittgenstein.

7. Las Meninas, uma lembrança oportuna do pedopsiquiatra e ouvidor Strecht. Diz saber que também há quem as prefira a rapazes perdidos na sua perdição. Até agora, estava surdo de um lado.

8. O General deixou de ter confiança. É sinal de que teve alguma. Um crente de 5 estrelas que sai agnóstico.

UM DESPACHO PORTUGUÊS

O problema diz respeito à zona de Leiria e já se arrasta há uns tempos. Uns meninos da QUERCUS, devidamente ataviados e bem ao jeito do folcore que normalmente associam às causas que defendem, deram a cheirar ao Ministro da Agricultura umas amostras de água de rio poluídas com dejectos porcinos, devidamente acondicionadas nuns tupperwares. O Ministro recebeu-os e falou em "responsabilidades" e na necessidade de as mesmas se apurarem. Os suinicultores- criaturas que se confundem, pelos vistos, com a sua própria produção -, na versão da QUERCUS, terão entrado em acordos com o Ministério e coisa e tal, razão pela qual entenderam proceder à referida demonstração odorífera. O que estes patuscos ambientalistas fizeram, afinal, foi encher uns baldes literalmente de merda e apresentaram-na a despacho na Praça do Comércio.

25.7.03

YOU ARE WELCOME TO ELSINORE II

O José Pacheco Pereira começou a escrever o artigo de ontem no Público há oito anos, em Aveiro.

Bagão Félix aderiu ao CDS/PP. Poderão seguir-se Catalina Pestana, Cinha Jardim, Pedro Strecht, Filomena Pinto da Costa e Tony Blair, conhecido vidente internacional que recentemente encontrou os rostos dos filhos de Satã.

Mota Amaral, reputado cristão, perdoou a multa pela falta dos vinte e nove mais um, o Sr. Martins, já justificada pelo "trabalho político". Sempre é futebol. Amen.

Afinal quem tem "mel", não é Pedro Santana Lopes. Ferro Rodrigues tem favos no telemóvel.

Souto Moura diz que tem "preocupações comuns" com Jorge Sampaio. Descia umas escadas em Belém e ia a olhar para o chão. Não saía de uma porta nem estava a jantar.

Ruben de Carvalho já comprou a sua EP para a Festa do Avante. Chama-se "tenho dúvidas se a pena de morte não se justifica em Cuba".

António Guterres está "maravilhado" com a sua vida actual e não quer saber de Belém. Tem umas aulas, uma internacional socialista e uma Catarina. A melena irritante é que continua no mesmo sítio, ao jeito da mão.

YOU ARE WELCOME TO ELSINORE

Esta madrugada, quando vinha do Porto (espreitar aqui um Porto "sentido") e de ver Um Hamlet a Mais, o espectáculo de Ricardo Pais, no Teatro Rivoli, de que falei outro dia, sai-me pelo rádio do carro a fala do Sr. Presidente da República. Poderei, se e quando me apetecer, voltar a falar da justiça, disse Sampaio. E depois, como a plateia era constituída por jornalistas, improvisou sobre a relação política/jornalista. Como era tarde - o problema deve ter sido meu- não percebi nada. Escolhi o poema de Cesariny, e fala de Hamlet na tragédia homónima, para título deste post, por me parecer que podia servir agora de pórtico ao dito assunto da justiça. Houve, nestes últimos dias, alguns pronunciamentos sobre a matéria: Procurador Geral da República, um manifesto, as eternas capas de jornais e de pasquins, o José Pacheco Pereira, o Miguel Sousa Tavares,muitos blogues, etc. Sinto que estamos nisto como que entre "emparedados" e "o nosso dever falar". Bem vindos a Elsinore.

Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício

Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição

Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsenor
E há palavras nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmo só amor só solidão desfeita

Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar

24.7.03

CONVERSAS EM FAMÍLIA (actualizadas)

1. Outro dia, à noite, num canal de tv, o Francisco pontuou uma conversa com mais uns quantos blogueiros. É uma forma de "sair do armário" como qualquer outra.

2. Passei pelo Crítico. É um dos mais conseguidos e bem escritos blogues, textos e fotos. Sem Bach, Deus seria uma entidade de terceira categoria, lembra Cioran.

3. O Nelson de Matos tem que cuidar mais das suas simpáticas edições de bolso. O Mundo do Sexo e outros textos, de Henry Miller, esse magní­fico escritor e ensaísta a que voltarei, não precisa desta pirosa chamada de atenção na capa:"um livro bem ao estilo de Henry Miller". O que é isto?

4. Parabéns pelos 100 mil: é a recompensa por não ser uma marioneta.

5. A mão invisível de Bruno Alves lembra-nos o "outro lado", que é sempre o mesmo, do amável public relations do PC, Ruben de Carvalho.

23.7.03

TEATROS(actualizado)

1. Estreia no Teatro Rivoli do Porto Um Hamlet a Mais, uma encenação de Ricardo Pais, com cenários de António Lagarto. Vai lá estar uma semana. Sobre este trabalho, Pais fala abundantemente numa entrevista ao DN.

2. Porém, mão amiga deu-me cópia de uma entrevista do mesmo Pais ao jornal O Comércio do Porto, já com umas semanitas. Nesta entrevista, é também o director de um teatro nacional, o S. João, quem fala. Ricardo Pais é uma reprise nesta direcção, recuperado ao espólio Carrilho pelo actual Governo. Como tem imenso talento, é naturalmente vaidoso, permitindo-se dizer coisas tão extraordinárias como "este meu poder resulta da qualidade e eficácia das minhas criações enquanto encenador"! É, aliás e apesar desta sua imodéstia, o único director que verdadeiramente reconheço como tal no espectro actual dos teatros nacionais. No D. Maria, António Lagarto espera sinais da lei e da tutela, enquanto a Comissão de Gestão, amputada pela demissão de João Grosso, vai tratando como pode da intendência. No S. Carlos, meu mais conhecido, há, de facto, uma mesma pessoa que ocupa o lugar de director e de director artístico, e que, apesar do seu enorme talento para a duplicidade, não consegue manifestamente aguentar-se nos dois papéis.

3. O Secretário de Estado da Cultura entende que se deve separar a função de direcção geral do teatro da função de direcção artística. É uma opção política legítima e com a qual concordo. Percebo que Ricardo Pais diga que "o princípio de que um director geral é o director artístico, responsável máximo e encenador residente, e o princípio da impossibilidade de interferência da tutela na orientação artística e na gestão directa da casa, são religião para esta direcção". Pois é. Quando se convidou Ricardo Pais, era obrigatório saber-se que ele só "pedala a sua bicicleta" e que se prepara para "esticar a corda". Agora, que pretende alterar as leis orgânicas dos teatros nacionais- com apenas cerca de cinco anos de vigência -, o SEC vê-se confrontado com um drama de recorte hamletiano: afagar (designadamente) o ego de Ricardo Pais e de uma ou outra vaidade menor, ou seguir em frente com a "sua" política, sem temores reverenciais. Neste "ser ou não ser", convém que não haja lugar a hesitações.
DOIS PORTUGUESES

1. AMÁLIA

A RTP 1 acaba de passar um documentário sobre Amália Rodrigues. Não quero perder tempo com aqueles lugares-comuns que aparecem sempre que se fala de Amália. Andam por aí umas moças, umas mais pindéricas do que outras, que passam por fadistas e que, ao jeito delas, se reclamam da herança da fadista, mesmo não a nomeando. Eu, que acho que não sou surdo, não enxergo a comparação. Amália, ao contrário do que por vezes "parecia", nunca foi uma mulher frágil. Vinda do "povo", tinha os pés bem assentes na terra, e sabia muito bem o que queria. Tirando o folclore ou o repertório internacional, nenhuma letra cantada por si o foi ao acaso. Na minha fugaz aventura jornalística, entrevistei-a na sua casa da Rua de S. Bento. Explicou-me por que é que o fado se cantava de preto, por que é que gostava de apanhar flores, que cantaria até que houvesse aplausos, etc. Escolhi para título da entrevista esta frase dita por ela: gostava de ficar no coração das pessoas. É dos poucos portugueses que ficou.

2. MÁRIO SOARES

Quatro canais mais adiante, na SIC-Notícias, Mário Soares, de férias no Vau, dava uma entrevista, com o mar ao fundo. Há uns anos, Soares definiu um seu ex-delfim, Jaime Gama, como um "peixe de águas profundas". Se Gama é isto, Soares é um "peixão" de primeira água, e um político. Eu escrevo político sem aspas pela razão simples de que considero a política uma actividade nobre que, infelizmente, tem muitas vezes ao seu serviço autênticos patetas e aprendizes de patetas, que a diminuem.

Eu conheci o Dr. Mário Soares numa cerimónia singela em que um grupo de cidadãos, não directamente afectos ao Partido Socialista, “apelavam” à sua candidatura presidencial. Ele andava literalmente “de rastos” nos “estudos de opinião” que corriam sobre o assunto naquele Verão de 1985. Não fui convidado para o evento, mas no final inscrevi o meu nome na lista daqueles primeiros incentivadores. Até hoje não me arrependi.

Como sempre, foi um Soares confiante e optimista que ali se me deparou, ansioso por se libertar do fardo de um Bloco Central agonizante às mãos do novo presidente do PSD. Em Outubro, Cavaco Silva emergiu sobre os escombros do dito Bloco com um ticket: Freitas do Amaral. O General Eanes, num momento menos feliz, associava o funesto PRD à personalidade vertical mas contra mundum do Dr. Salgado Zenha, e a Eng.ª Pintasilgo compunha o ramalhete, arrastando alguma inteligenzia daquela esquerda que acabou por se ir estatelando suavemente aos pés do Dr. Soares.

Dessa odisseia inicial, recordo dois momentos. O primeiro, numa terrinha nas cercanias de Lisboa, chamada Alhandra, por onde o candidato Soares passava num fim de tarde, entre insultos e ameaças do “povo comunista". Nem por isso o candidato se intimidou, seguindo a magnífica excursão “maspiana” até Alverca, ao som do tradicional “vai-te embora” e outros mimos menos próprios, onde, de megafone na mão, Soares falou.

E recordo sobremaneira um encontro com Soares, no Solar do Vinho do Porto, na sexta-feira que antecedeu o acto eleitoral. Estavam “intelectuais” e jornalistas, um ou outro mais apreensivo, mas Soares passava por entre todos deixando um lastro de confiança e de bonomia. Daí seguimos pelo Largo da Misericórdia, descemos o Chiado, a Rua do Carmo, o Rossio e, na Rua Augusta, Soares assomou à varanda da então sede da UGT para saudar os apoiantes, tendo a seu lado uma inesperada Natália Correia. A procissão continuou até à Praça do Comércio, onde Soares se despediu, candidato, para atravessar o rio num vulgar cacilheiro. Dois dias depois era Presidente.

Isto são apenas pequenos episódios sem excessiva importância. Se os recordo nesta altura em que escrevo sobre Mário Soares, agora revisto pela SIC no Vau, é apenas para ilustrar algumas evidências. Ele representa, ao nível “político”, a memória da juventude e de adolescência da maior parte das pessoas da minha geração. Digo-o com o à-vontade de quem não é socialista e de quem nunca especialmente apreciou o seu desempenho governativo, nem pertence à “família de esquerda” em que Soares tanto gosta de se rever.

Contudo, ele ajudou-me a aprender que não se pode mudar o Outro contra a sua vontade, que a liberdade é um bem infinito a preservar, que a defesa dos valores da cidadania e da tolerância nos ajuda a crescer por dentro e para fora, que a coragem moral nos momentos decisivos enobrece e que uma consciência livre nunca se submete aos apoucamentos dos pequenos ou dos grandes poderes.

Nestes tempos de pobreza evangélica e de marionetas políticas, eu já estou como o Vasco Pulido Valente. Se Soares quiser, é o meu candidato.


22.7.03

UMA BOA IDEIA II

A fala de domingo de Santana Lopes teve sequência e parece que há consenso para fazer qualquer coisa quanto às famosas "escutas".

Por outro lado, e "para quem julgava que Portugal é um Estado de direito constitucional....", leia.

Ainda no terreno das boas ideias, há um amigo que informa que os portugueses estão a ser sujeitos a um curso intensivo sobre a aplicação em concreto do Código de Processo Penal. Mesmo em férias.
OUTRAS BOAS IDEIAS

....dos Estudos Baudelaireanos, citando Nietzsche:

«Estou permanentemente interessado em pessoas, como um corsário qualquer, não para a escravatura, mas para me vender a mim e aos outros à liberdade.»

Nietzsche, carta a Reinhardt von Seydlitz, 24 de Setembro de 1876


....da Aba de Heisenberg, que dá notícia de que há...

um bom exemplo vindo de Guimarães, o Museu Alberto Sampaio, um belíssimo museu, durante os meses de Verão só fecha à meia-noite

21.7.03

UMA BOA IDEIA

Informa o Nelson de Matos que Pedro Santana Lopes, no seu comentário de domingo na RTP 1, defendeu a criação de uma comissão parlamentar de inquérito à questão das escutas telefónicas. Esta parte passou-me ao lado, mas o que consegui ouvir, agradou-me. Santana Lopes esteve bem nas referências que fez ao momento por que passa a justiça portuguesa, colocando as principais personagens no seu devido lugar, sem receios nem prosas redondas. Depois, já hoje, pareceu-me que houve, da parte de alguns parlamentares de hordas diversas, algumas reticências à ideia. Sabe-se que as comissões parlamentares valem o que valem. Porém, estando envolvidos nas ditas escutas, como consta,órgãos de soberania ou membros de órgãos de alta instância do Estado, julgo que o poder político democrático, de que emanam, deve estar atento, sem que seja prejudicada a natural separação de poderes e sendo respeitado o princípio da igualdade.É também para isso que se vota e se outorga legitimidade democrática. Eu, que votei Lopes e que aqui o tenho criticado quando acho que merece, gostei de o ver defender a "política democrática", no sentido em que este blogue a tenta defender, pensando em Richard Rorty.
OUTRO CAMILO

"A quadra (...), fruto de um feliz repente, foi exarada pela mão do romancista no final do livro de Bernardo Branco, D. Afonso VI e Sua Sereníssima Esposa e comunicada pelo dr. Falcão Machado, tendo-a eu encontrado manuscrita na biblioteca que foi de Manuel Cardoso Marta." (Natália Correia, Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, ed. Antígona, Frenesi)

Naquelas eras corruptas,
era severa a justiça,
se as rainhas eram putas,
e os reis tinham frouxa a piça.
DO CORPO EM FÉRIAS

Três blogues de Vergílio Ferreira (Conta Corrente, 1, Bertrand Editora)

Aquilo em que se tem mais vaidade é o corpo. Mesmo que aleijado, há sempre um pormenor que nos envaidece. Compô-lo. Arranjá-lo. O careca puxa o cabelo desde o cachaço ou do olho do cu para tapar a degradação. O marreco faz peito. O espelho é para nós o grande dialogante. Passa-se a uma vitrina e olha-se de soslaio a ver como se vai. Uma mulher perfeita (e um homem) não inveja o intelectual, o artista. O inverso é que é. Muitas mulheres (e homens) cultivam a excepcionalidade do seu espírito ou engenho por complexo ou vingança. Quando se não tem já vaidade no corpo, está-se no fim.

A sexualidade não é apenas um problema moral: é um problema fisiológico. Cumpra-se a fisiologia mas não se faça parlapatice com isso. Ou então falem também do cagar, do arrotar, do espeidorrar. Merda para o problema.

O pudor é um sentimento masculino. Quando uma mulher conhece outra, ao fim de dez minutos está já a explicar-lhe como é que o marido trabalha na cama. Ao fim de dez anos ou de uma vida, um homem não explica a outro como trabalha a mulher. É que o homem não é um novo-rico do sexo. Ou respeita a mulher por simples machismo?

20.7.03

MARGARIDA E CATALINA

1. A revista Única do Expresso, dava ontem capa e entrevista a Margarida Martins, a conhecida "patroa" da Associação Abraço. Fica-se a conhecer os percursos da vida de Margarida, os que ela entende que devemos conhecer. Das origens humildes e "operárias" no meio de um bairro meio chique de Lisboa, até ao Bairro Alto das galerias e do Frágil - que abriu em 1982 e não em 1981, como se diz no texto - , aos incidentes afectivos, à criação da Abraço e a filha adoptiva, aquela história tem graça. E a criatura Margarida também tem graça, mesmo quando irrita e maça, noutros tempos por causa da porta do Frágil, ou agora por causa da Abraço. E depois, tudo vem sempre acompanhado daquela gargalhada saudável e bem sonora que é a sua imagem de marca. Certamente que terá imensos defeitos, mas aprecio aquela persistência nas causas em que acredita, e nos lances de solidariedade que sabe gerar, mesmo que a Abraço não seja "um mundo perfeito".

2. Eu, se mandasse, colocava a Margarida no lugar de Catalina Pestana. O que em Margarida é alegria, partilha, vida e futuro, em Catalina é treva, ressentimento e clausura. Percurso estranho, ou talvez não, este de Catalina. Ex-MES, católica "progressista" (uma mistura explosiva), muito devota ao "social" e agora, pelos vistos, ao "pensamento único", Catalina conhece tão bem ou melhor do que muita gente, o funcionamento da Casa Pia e sabe que o verdadeiro "escândalo" é o Estado, personificado na instituição e nos seus servidores, ter prolongadamente consentido na exploração miserável dos seres que lhe estavam confiados, fosse para que pretexto fosse. Agora é fácil vir cá fora dizer que o "rei andava nu" e que, até prova em contrário, todos os que estâo fora do muro da Casa Pia, são suspeitos. Para quem conhece a casa desde sempre, fica-lhe mal esse permanente tom inquisitorial, de cátedra e beato com que aparece em público. Parece que também já "manda" no processo judicial e que as testemunhas são suas. Resta-nos o consolo de sabermos que não é Pina Manique quem quer. Margarida a Provedora, já!

19.7.03

UMA PERGUNTA

....feita numa conferência de imprensa, no Japão, a Tony Blair, essa pérola da "terceira via", a propósito do suicídio de David Kelly: "Primeiro Ministro, não tem as mãos sujas de sangue?". Tony silenciou-se e saiu abraçado ao amigo japonês.
UMA ESTÁTUA PARA HERODES

Natália Correia tinha destas coisas. Era provocante e provocadora, exuberante, insubmissa, iconoclasta, e com aquele saudável rasgo de loucura que faz toda a diferença entre, por exemplo, um homem e um carneiro. Possuia o dom da indignação, que é uma coisa pouco divulgada nos dias que correm, mesmo que alguns patetas de serviço tomem indignação por lamúria tola e de circunstãncia. Era completamente inconsequente do ponto de vista político, como, aliás, tantos "profissionais" do ofí­cio. Sobre eles, Natália tinha a vantagem do talento e da imaginação. Em plena apoteose do criancismo, deixo aqui uns quantos "blogues" da sua autoria, retirados de um livro que, numa tarde passada na casa de Natália, por cima da Smarta, a falar de livros, ela me ofereceu, "confiando-o a uma leitura inteligente".

Se há pessoas em que o ridículo não transparece é porque nunca foram apanhadas a divertir uma criança.

Apesar de tudo há crianças simpáticas: as maltratadas. São as únicas que testemunham a estupidez dos pais.

Louvemos os maus filhos. Eles dão aos pais a oportunidade de saberem até que ponto são idiotas.

Fazer festas às crianças força à indignidade física porque obriga a curvar a espinha.

A criança é a última tentativa da espécie para tiranizar o indivíduo.

No tirano repete-se a gravidade das brincadeiras infantis.

Quando o filho chama imbecil ao pai, este orgulha-se de lhe dar toda a liberdade.

Pôr um leão faminto no quarto dos brinquedos. Corre-se o risco de que a criança devore o leão.

Filho: bengala para velhote derivada da moral cristã.

Não eduques a criança. Só assim podes prever o imprevisto.

As crianças só se confessam quando brincam aos bandidos e às guerras.

O mal foi Cristo ter dito: "Deixai vir a mim as criancinhas". Ficou coberto de moscas e tomaram-no por um cadáver. Tanto bastou para que se fundasse uma religião.


(Uma Estátua para Herodes, de Natália Correia, Arcádia, 1974)








OS PARTIDOS

Num debate promovido por uma tal Geração 22, no qual pontificava o Dr. Manuel Monteiro, da Nova Democracia, a minha amiga Inês Serra Lopes, que moderava, disse que "os partidos servem para conquistar o poder e para se agarrarem a ele, promovendo as piores pessoas pelos piores motivos". Acrescentou que as "pessoas de bem" pura e simplesmente não se deviam filiar em partido nenhum. Com a devida vénia, eu permito-me discordar. Os partidos, em geral, não têm culpa de a maior parte da sua militância ser constituída por uma massa acrítica de criaturas que encara o ofício militante com a mesma displicência com que vai ao mercado ou à missa. No meio desta acefalia consentida, há evidentemente uma ou outra criatura mais expedita que "dá a cara" e que "se sacrifica". Temos abundantes exemplos deste sublime despojamento em todas as áreas partidárias. Naturalmente ninguém espera que estes "heróis anónimos", chegado o momento certo, cedam o seu lugar às "melhores pessoas" e que se batam pelos "melhores motivos". Também há "pessoas de bem" nos partidos. Normalmente são aquelas que não precisam dos partidos para existirem na cidadania: têm vida, espaço e mona próprios, e, até por isso, acham que devem ser militantes. A única diferença é que não fazem disso uma profissão.
O PROCESSO

No processo mais conhecido que anda aí pelos jornais e, ao que julgo, pelos tribunais, importa que se resolvam, a final, duas questões óbvias: a justa punição dos criminosos e a declaração de absolvição dos inocentes. No entanto, este processo é hoje claramente um processo perturbado e, como cidadão, tenho as maiores dúvidas de que as duas questões que mencionei sejam aclaradas de uma forma segura e certa, como manda o Direito. Julgo, aliás, que são os "contributos" exteriores ao noid dur do processo, os que mais têm ajudado a inquiná-lo. Mas há dados "formais" que incomodam. Eu estudei direito e, quanto a formalismos processuais, sei, em primeiro lugar, que é o poder político legitimado democraticamente que define e aprova a legislação processual, e também sei, em segundo lugar, que a "deificação" da forma, ou uma qualquer sua interpretação soberana, pode por vezes fazer esquecer o interesse fundamental que está em causa. Pessoalmente, considero uma "violência jurídica" o que aconteceu nos últimos dias no que concerne à reapreciação da manutenção da medida de coacção extrema em relação a arguidos presos. Ou seja, a impossibilidade da apreciação das posições da defesa e da acusação pública, por um lado, e da própria decisão judicial de 1ª instância, por outro, a efectuar por uma entidade judicial superior e distinta, por causa da antecipação da reapreciação trimestral da medida de coacção que tornou formalmente inútil aquela intervenção, quando está em causa a liberdade de pessoas. Outro dia falei aqui do "sentimento jurídico colectivo", uma bonita expressão que se aprende nas faculdades. Será que há verdadeira consciência desse "sentimento" entre nós quando toda a gente diz que "confia na justiça"? Ou isto não passa de um tropismo timorato ou de um lugar-comum sem importância? O mundo, como dizia o outro, está efectivamente perigoso.

18.7.03

LER E ESCREVER II (actualizado)

...nos blogues...

... em texto longo....

... em espírito Saravonarolesco que surge...

...continuando o raciocínio....


LER E ESCREVER

Não sei quem é. Trata-se de um Bicho Escala Estantes que, em meia dúzia de frases que me atrevo a reproduzir, me lembra, entre cafés e pequenas viagens de comboio, por que devo continuar a amar esses amigos silenciosos e fiéis que são os livros. E por que devo, se me apetecer, escrever.

O que me faz falta

Estou de férias.
O que mais me faz falta são as horas de almoço e as viagens de ida e de volta entre o Cacém e o Rossio.
Às horas de almoço, eu costumo pegar em dois ou três livros da livraria e levá-los comigo. Enquanto bebo o café no Suave Veneno, absorvo versos e biografias. Ninguém me interrompe, ninguém surge. Aprendo ao meu ritmo.
A maioria das vezes, porém, o que eu faço é escrever. Antes dos blogs, escrevia para os olhos de três, quatro pessoas. Hoje, com o meridiano, já há vinte que me leêm. Mas não é isso, não é isso...sei que escrevo com uma ideia fatal de necessidade de redenção absoluta. Escrevo para me redimir de nunca ter sido brilhante em nada. E isto não é grave. A maioria das pessoas é como eu. E mesmo os brilhantes, no um para um são pessoas também comuns.
Nas viagens de comboio, que duram 25 minutos, eu leio. Às vezes em posições acrobáticas, no meio de muita gente comprimida, eu arranjo uma forma de abrir o livro e continuar a história. Sinto falta desse tempo em que me levam, sem eu precisar de pensar, e em que posso mergulhar dentro de páginas.
De modo que dou por mim a vasculhar as minhas poucas prateleiras caseiras, procurando o livro comprado e esquecido sem nunca ter sido tocado.Por isso, tenho vontade de me meter no comboio e passar pela livraria, pedir para levar dois ou três livros e ir sentar-me no café, a fingir que é hora de almoço, que está tudo bem, que os carris não foram danificados...

17.7.03

UMA CARTA II

Corria o ano de 1968. Cerca de trinta anos antes, por ponderadas razões de Estado, o mais político dos dois amigos de Coimbra, da Universidade e da residência dos Grilos, decretava que a partir dali os seus caminhos se apartavam. António disse a Manuel qualquer coisa como isto: "eu sou o Estado, tu és a Igreja, entre nós corre-se hoje uma cortina e seguimos caminhos separados". Sem o saber, 1968 seria para António o começo do fim. Nesse Verão, como em todos os verões anteriores, instalava-se no Forte de São João do Estoril, pagando do seu bolso a ocupação do espaço ao Exército. Ali recebia ministros e amigos, poucos. De vez em quando, ia até à casa do Vimieiro ver as terras e o estado das vinhas. Foi no átrio do Forte que, deixando-se caír numa cadeira de lona para ler o jornal, que António é traído pelo utensílio e tomba, batendo com a cabeça no chão. Ao barbeiro, à Maria e a outros mais tarde, diz que não foi nada, apenas que sente umas dores de cabeça incómodas. Dois anos depois, António morria no seu recato de província de S. Bento, julgando-se ainda Presidente do Conselho. Em Abril de 1968, Manuel enviava ao seu amigo uma carta, a pensar no seu aniversário, a 28. Trata-se de um documento pessoal, bem escrito, que celebra a amizade entre duas das mais poderosas figuras do País no século XX, e onde se pressente a inexorável aproximação do fim.

António:

Não quererias dar-me as tuas sopas no jantar do próximo dia 28? A Providência já nos levou o Carneiro de Mesquita, cujo aniversário da morte passou ontem. Estamos sós os dois, e podemos dizer com os discípulos de Imaúz que está a cair a tarde. Se não destinaste ainda o teu dia, não seria bem aquecer-nos à fogueira antiga?

Teu sempre Manuel


(Carta de 24.4.68 de Manuel Gonçalves Cerejeira a António de Oliveira Salazar, cit. por Franco Nogueira in Salazar - O Último Combate (1964-1970), Vol. VI, Civilização Editora)
O PARTIDO RELATIVO II

Ao contrário do que muita gente pensa, eu acho que o Dr. Pina Moura não foi um mau ministro das Finanças. Toda esta parafernália em torno do combate à rigidez da despesa pública - diga-se em abono da verdade - começou com ele. Não nos esqueçamos que Pina Moura estava condenado desde o dia em que o bonzinho Guterres, em pleno Parlamento, e com ele ao lado sem saber de nada, prometeu que "não ia aumentar a gasolina", um vulgar dichote popular com sucesso garantido. Parece que Ferro Rodrigues, no dizer de Moura, continua em exercícios de auto-flagelação. Há, pois, que acrescentar ao partido, o líder "relativo".
AUTO DA VISITAÇÃO

Deslizar no Sonho:

Citações

Porque é que usas tanto as citações?, perguntavam-me ontem.

Cito Novalis: Nenhuma palavra está completa. As palavras ora são vogais ora são consoantes, palavras que valem por si próprias e palavras que valem por acompanhamento.

As citações, as minhas, são bengalas que suportam o caminhar de palavras deficientes.


Flor de Obsessão:

TUDO PERDIDO: A democracia-cristã sempre foi um equívoco. Primeiro: Cristo não era um democrata. Depois, os democratas-cristãos são, em Portugal, herdeiros de uma das nossas piores tradições: o consensualismo político, a equidistância ideológica, a insossa procura de sínteses. Em São Tomé, um partido democrata-cristão provocou um golpe de Estado e tomou o poder. Bem sei que tudo se passa em África onde os conceitos devem ser relativizados mas que um partido dito democrata-cristão entre em golpadas subversivas, é coisa que arruma de vez com a democracia-cristã. O que é que vão dizer a seguir? Que Jesus era um revolucionário? Está tudo perdido.



Cidadão Livre:

TÁ MAL

A Câmara Municipal do Porto aprovou um donativo de 50.000 euros ao Boavista Futebol Club, como contributo para as festas do Centenário daquela associação desportiva.
Entendo que os dinheiros públicos, o "nosso" dinheiro, não deve ser gasto em comemorações, ainda de que venerandas e socialmente relevantes agremiações, de toda e qualquer espécie. A que propósito, dentro de que regulamento da lei, com base em que atribuições ou competências de um orgão autárquico é que uma Câmara Muncipal aprova um tal donativo?


Terras do Nunca:

Huuuuu... a bomba

O Huuuuu... o vento lá fora atira-se à Bomba Inteligente de uma forma que talvez mereça a intervenção do marido para um duelo. Huuuuu (atenção, são cinco u) está a ser injusto. Quem já conviveu com a Bomba (há relatos avulsos por essa blogosfera fora...) diz que se trata, de facto, de uma bomba e que até é inteligente. Deixemo-nos de parvoíces... A senhora parece-me ser pessoa de rara sensibilidade. Escreve por aqui o que lhe apetece, como todos nós. E a vantagem disto é mesmo essa - isto é tão grande que há lugar para todos. Além disso, acho que os textos da Bomba reflectem um bocadinho do que cada um de nós é.
Por exemplo, hoje, no Icosaedro, encontrei uma foto de Benfica ao pôr do Sol. Tirada exactamente naquele lugar onde costumo apanhar o autocarro (peço desculpa ao Huuuuu, que é pessoa com conhecimentos informáticos, mas não sei fazer links directos). Não tenho nada de especial a dizer sobre o assunto. Apenas que reconheci um sí­tio que poucos de vós identificarão. E que, de alguma forma, eu também estou naquela foto, apesar de lá não estar. Tenho momentos assim.


A aba de Heisenberg:

António Lobo Antunes

A mim perguntam-me, com igual incompreensão, porque não saio, não me divirto, não vivo. A frase é exactamente esta - Não gostas de viver? - e continua a pasmar-me. Depois percebo que não há nada mais chato para os outros do que um homem que não se chateia. As pessoas que se chateiam precisam, como elas dizem, de distrair-se, de viver: cinemas, jantares, viagens, fins-de-semana. E riem, são aquilo a que se chama boas companhias, conversam. Eu detesto distrair-me, ter de ser simpático, ouvir coisas que não me interessam. Não frequento lançamentos, festas, bares... Não falo. Não apareço. Não me vêem...
(António Lobo Antunes, In Visão, 10 de Julho de 2003)
Enviado pela Marta C


Santa Ignorância:

O calimero e a abelha Maya

A estrela de entretenimento e do social, a astróloga Maya, conta no SIC 10 Horas uma história de o seu automóvel ter sido bloqueado. Ela insistiu com as autoridades que foi breve e não perturbou ninguém mas é claro que isso não demoveu as autoridades. Diz ela "assim, mais vale acabar com os jardins para podermos estacionar".

Eu fico de tal maneira que tenho de ir vomitar...



Guerra e Pás:


Post # 112 - A vida é um risco


Um e-mail do velho amigo Groucho Marx acaba assim


andar a ler o teu blog levanta-me um problema - e se tu és um gajo até conhecido de quem eu não gosto nada? como é que eu ia ficar com a minha consciencia??

um abraço,

sossegando-o, dizendo-lhe que não sou famoso nem conhecido, pelo que é (quase) impossível que goste ou não de mim, acrescento que é este o ponto chave dos blogs.

A saber a possibilidade de gostarmos até dos que julgamos não gostar. Tolerância, portanto.



hARDbLOG:

metabloguismo

Sobre o bloguismo Fernando Pessoa disse:
“Invejo – mas não sei se invejo – aqueles de quem se pode escrever uma biografia, ou que podem escrever a própria. Nestas impressões sem nexo, nem desejo de nexo, narro indiferentemente a minha autobiografia sem factos, a minha história sem vida. São as minhas Confissões, e, se nelas nada digo, é que nada tenho a dizer.
Que há-de alguém confessar que valha ou que sirva? O que nos sucedeu, ou sucedeu a toda a gente ou só a nós; num caso não é novidade, e no outro não é de compreender. Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. Faço férias das sensações.”

16.7.03

O SEGREDO

Por uma vez, estou de acordo com José Miguel Júdice, o ilustre bastonário da Ordem dos Advogados. Fala-se a torto e a direito do segredo de justiça e da sua reiterada violação. Normalmente fala-se disto exibindo a maior ignorância sobre o assunto, designadamente a que casos concretos é que ele é aplicável. Júdice disse uma coisa muito simples e muito evidente, que de imediato suscitou a acrimónia de magistrados e funcionários judiciais: a haver violação do segredo de justiça em processos em fase de inquérito, onde nem o arguido, nem o seu advogado, têm acesso aos contornos do dito, a violação só pode partir de quem manuseia directamente os autos. Por este facto, diz Júdice, devem ser constituídos arguidos e eventualmente sujeitos a penas. E foi mais longe : "cadeia com eles". Que se saiba, ninguém paira acima da lei ( refiro-me a países civilizados, naturalmente). Os administradores e funcionários da Justiça também não. O segredo, quando nasce, é para todos mas pode começar e acabar às mãos deles. É bom que não seja assim.
UM PARTIDO RELATIVO

Neste petit grand comité da portuguesa blogosfera, há uma vizinhança ligada ao PS, ou, pelo menos, onde pontificam autores que são socialistas ou aparentados. Outro dia tive ocasião de elogiar um deles, Pedro Adão e Silva, por uma sua prestação num debate na SIC- Notícias. Pareceu-me um diferente "PS", mais arejado e mais descomplexado em relação às ladaínhas habituais dos já muito conhecidos e estafados próceres das primeiras linhas. Há pouco, porém, ao percorrer o Blogo, e espreitando o País Relativo, encontro uma prosa de Filipe Nunes (FN) que cita Mexia a propósito de Alberto Martins e daquele "profundo trabalho político" que o levou a Sevilha na excursão organizada a 30 deputados pelo FCP. O FN que me desculpe, mas com argumentos daqueles - "hooligans da blogosfera" e elogios perfeitamente deslocados ao Sr. Martins e ao seu brilhante comportamento parlamentar neste caso- não vai a lado nenhum. E o PS também não vai a lado nenhum com esta amável rapaziada. Por este caminho, não passará tão cedo de um partido relativo.
A HERANÇA

Houve um golpe de Estado em S. Tomé e Príncipe. É o costume. África é um continente abandonado à sua pouca sorte, às guerras civis, à doença e à fome. Ao contrário de Timor, que fez a Nação babar-se toda e promover uns folclores de rua, nunca vi ninguém na rua ou noutro sítio qualquer a clamar por África. De vez em quando alguém se lembra dela e fazem-se uns concertos filantrópicos para comprar massa e arroz. Até George Bush, que não gosta de viajar, passou por lá a semana passada e, pelo que se sabe, comoveu-se e condenou o esclavagismo. Foi mais uma demonstração dos patéticos pedidos de desculpa superstar que os chefes de Estado modernos, do Papa ao Dr. Mário Soares, gostam de fazer para aliviar as respectivas histórias das sombras incómodas. Portugal esteve em África com o mesmo propósito com que está numa aldeia do Minho ou de Trás-os-Montes. Paternalista e interesseiro, o "português suave" passeou-se por Angola, Moçambique, menos na Guiné, em Cabo Verde e em São Tomé, criou "raízes" e explorou o que quis e o que não quis. Salazar impunha a célebre miscigenação da raça e o tal "português suave" montou lojas, estaminés e pretas à fartazana para cumprir a vontade da criatura. O resultado é conhecido e foi despejado em contentores nos cais de Lisboa a partir de 1974. Ficou esse lastro de corrupção das nomenclaturas do tosco marxismo-leninismo emergente, a guerra, os golpes de estado e uma profunda e terrível miséria moral e material, sem fim. Uma sublime herança que, um dia, também terá direito ao seu pequeno pedido de desculpas.

15.7.03

A MESADA

Andávamos esquecidos da D. Fátima, mas eis que ela regressa pela mão do insuspeito Tribunal Constitucional. Eu explico. A senhora, através do seu advogado, recorreu da sentença da Relação de Guimarães e hoje ficou-se a saber que "está" autarca, logo, que tem direito ao vencimento, na douta interpretação do TC. Como se lembram, a referida senhora abandonou o cargo que ocupava e fugiu- não conheço melhor verbo para descrever o acto - para o Brasil. Quando eu estudava direito, li algures umas coisas acerca do "sentimento jurídico colectivo". Era uma expressão bonita e que abundava nas sebentas. Julgo que os nossos tribunais também conhecem este jargão e não apenas a seca letra da lei. Eu admito que a posição da Relação de Guimarães tenha sido "inconstitucional", porém, duvido que o tal "sentimento jurídico colectivo" tenha ganho alguma coisa com esta magnífica decisão suprema. Algures no Rio, D. Fátima agradece esta jurisprudente mesada.
UMA CARTA

Ando a ler a biografia de Marguerite Yourcenar, de Josyane Savigneau (Difel). Comemorou-se outro dia o centenário do seu nascimento e os jornais falaram abundantemente dela. Gostava muito de Portugal e do Algarve, em particular, local onde não se importaria de viver. Passou por cá umas vezes, em Lisboa, no Porto, onde conheceu Eugénio de Andrade, e amava naturalmente Sintra. Por ocasião da reedição das Memórias de Adriano pela Ulisseia, no princí­pio dos anos 80, esteve numa conferência na Gulbenkian ao lado de David Mourão Ferreira e de Agustina Bessa Luis, se a memória me não falha. Gostava muito de viajar - era verdadeiramente uma nómada - ao contrário do que parecia sugerir o "recolhimento" em Petite Plaisance, na ilha perdida dos Montes Desertos nos Estados Unidos. Desapareceu em 1987. Pelo meio da dita biografia, encontrei excertos de uma carta dirigida à sua tradutora italiana que, valendo o que vale, aqui deixo em parte, com lembranças para os Estudos sobre o Comunismo, pois referem-se à sua passagem, em 1962, pela então Leninegrado, durante três dias.


"Essa experiência tão breve teve sobre mim (...) um efeito que eu não esperava, e que é em suma, no que me diz respeito, o de um infinito desencorajamento. Que esperava eu? Não contava certamente entrever um Eldorado, mas, reagindo sem dúvida contra a imbecil propaganda anticomunista da América, com os seus clichés infantis, eu esperava sem dúvida encontrar um mundo um pouco mais novo, mais "vital" porventura, mesmo que esse mundo nos fosse hostil ou estranho. O que eu encontrei, desde a aurora do primeiro dia quando entrevimos os funcionários russos abordando o barco no meio do nevoeiro, e até à noite branca do terceiro dia em que costeámos longamente e de muito perto a fortaleza de Kronstadt emergindo do mar com a sua cúpula de igreja desafectada e as unidades da esquadra em torno dela, foi muito simplesmente a Rússia de Custine, a terna mescla de rotina burocrática, de suspeita do estrangeiro, de deixar-andar já oriental e de prudente desconfiança, e essa tristeza inerte e quase sufocante que é frequentemente a do romance russo, e que eu não esperava encontrar (...); as multidões vindas das províncias, desfilando em grupos organizados no imenso Ermitage, olhando vagamente as suas obras de arte de séculos e países situados tão longe delas, e esse camponês que, de pé diante de um Cristo de Rembrandt parecia rezar (...); e, sobre a escadaria de honra, de um monumental barroco italiano, mas da época má, quer dizer datando de Alexandre I mais do que de Catarina, debaixo dos pés das multidões que sobem e descem os seus degraus de mármore (...) um fragmento humilde e escandaloso de acessório feminino que pertencera a qualquer viajante demasiado fatigada para dar pela sua perda, um pedaço de pano ensanguentado que ninguém se dava ao trabalho de afastar com a biqueira do sapato para qualquer canto escuro, e ainda menos de se baixar para pô-lo de parte."

UMM KULTHÛM

Provavelmente este nome nada diz à maior parte de nós, mas ela foi, no século passado, um verdadeiro, senão o único, ícone musical "popular" em grande parte do mundo árabe. Quando faleceu, em 1975, teve um dos maiores funerais de que há memória, com milhões de pessoas a assistir. Chamavam-lhe "a voz do Egipto" e é hoje recordada num documentário que passa na RTP-2 às 19.00. Vale a pena ver ou gravar.
A TRAIÇÃO

No Abrupto encontrei umas belas frases acerca da traição. É um tema recorrente, da política ao amor. Esta noite, ao meu lado, alguém me falou durante umas horas dessa dor mansa, quase vegetal (O'Neill) que consiste em perceber no Outro esse gesto insolente da traição. A traição à confiança e aos afectos, tão dolorosa como a que é feita às convicções, é um golpe dado de alto a baixo do nosso até aí entendimento do mundo. Sem que o queiramos, somos outros a partir do ataque soez da traição. Como se responde ao ataque? Normalmente a surpresa deixa-nos inermes, a surpresa do primeiro. Depois, essa madrasta mal encarada que é a vida, tudo ou quase tudo absorve e, um dia, acordamos nós ao ataque. Para quem gosta de ópera, está tudo lá. Para quem ama a poesia, também. Vou até Wagner para terminar. No final de "As Valquírias", Wotan condena a filha mais amada, Brünnhilde, ao "humano", "desdiviniza-a", isto é, condena-a ao pior dos sofrimentos, o "conhecimento". É para lutar contra o "conhecimento" que Wotan corre e é por isso- por tragicamente "saber" - que coloca Brünnhilde protegida pelo fogo e protegida do "humano". No "Crepúsculo dos Deuses", a última jornada, já Brünnhilde tudo "sabe". E, no monólogo final, somente aspira a abandonar "este mundo de desejo e de sofrimento". Um mundo que se perde, um mundo de traições, a morrer, porque foi "conhecido":

Tudo, tudo
tudo sei,
tudo me foi revelado.
Ouço também
adejar as asas dos teus corvos,
ordeno-lhes que regressem a casa
com a mensagem por que anseias-
Repousa, repousa, oh deus.

14.7.03

HERMAN

Não sei se já deram por isso, mas o Herman José está a passar de moreno (refiro-me ao cabelo) a loiro. Não comungo da ideia de que loiro ou loira, equivale necessariamente a burro ou burra. Muitas vezes, porém, os seus programas ultrapassam a barreira do meramente risível, entrando de imediato no charco do mau gosto ou do grotesco fácil e sem graça, explorando o que há de mais primário ou do mais desgraçadamente infeliz na vida de um qualquer anónimo ansioso. Tem razão o JPP, que cito:

A utilização no programa de Herman de um jovem atrasado mental, é mais um degrau que se desce numa escada invisível para o vale tudo. O problema é que há quem ache engraçado. Estou mesmo a ver algum engraçado a fazer o comentário que há muitos “atrasados mentais” piores que lá vão e eu não protesto. A diferença está nas aspas e é uma gigantesca diferença. Experimentem trocar.
RETRATO DE UM PORTUGUÊS CONHECIDO

O pulha encontrou um no quarto.
BARROCO, BACOCO E BALOFO

O opiniondesmaker sintetiza:

Kundera again

No mesmo site onde a Montanha Mágica retirou a entrevista de Kundera vem um artigo onde este diz que a Europa Central e a América Latina são as duas partes do mundo mais traumatizadas pela experiêcia do barroco. Kundera conhece mal Portugal, que pena. Só que como a dislexia nacional também é produtiva , nós também aproveitámos de forma generosa a experiência do bacoco e do balofo.

13.7.03

MÃO-DE-OBRA

Descoberta nos maus fígados:

Estamos Disponíveis

Para qualquer cargo na futura administração do Iraque. Gostamos de períodos conturbados de pós-guerra. De vilananias, venalidades e incompetências. Gostamos, sobretudo, de experiências. Somos criativos. Faremos figura a inventar modelos de sociedade e de representação cívica. Nada como um brainstorming para decidir o futuro de um país. Contactem-nos!
DIREITA PATANISCA

Encontro esta deliciosa expressão em mais um vizinho ruim. Aparece contraposta à já conhecida "esquerda caviar". Que nem de propósito, ao ler o noticiário político no "Expresso" de ontem, deparei-me com umas declarações de uma "fonte" do CDS/PP acerca de Maria José Nogueira Pinto, no mínimo, inquietantes. Diz a dita "fonte" que eles- o CDS/PP- já estão "habituados" a "algumas liberdades de expressão " por parte da senhora , só que desta vez, insinua a "fonte, ela "foi longe demais". Nogueira Pinto, como se sabe, não morre de amores pelo "querido líder" o qual, por sua vez, lhe retribui na mesma proporção. Terá - julga-se- vagamente acenado com a hipótese de, em caso de Monsanto ter dado para o torto, se "chegar à frente". Imperdoável, na óptica da "fonte". Ficamos pelo menos a saber que no PP as liberdades se medem ao quilo, e a de expressão, em particular, deve ser severamente vigiada. Já se percebeu que, em breve, Nogueira Pinto será remetida a uma "dieta forçada". Provavelmente sem direito a patanisca.
3 POEMAS DE JOAQUIM MANUEL MAGALHÃES

Enquanto os meus "vizinhos" - alguns ali da faixa ao lado - se comprazem em teorizar acerca das técnicas e conteúdos dos blogues, numa infindável teia de "toques e sinais" de mútuo reconhecimento que fazem lembrar sessões em lojas maçónicas ( "dá-me a primeira letra, que eu te darei a segunda...."), eu, mais modesto e porventura conservador, lembro um amigo. Vai para mais de 20 anos, por uma tarde de Agosto quente e calmo de Lisboa, que conheci o Joaquim na mais tarde ardida Pastelaria Ferrari, na Rua Nova do Almada. O pretexto era o texto que ia escrever sobre o seu livro Os Dois Crepúsculos para o Semanário do Victor Cunha Rego. Ficámos amigos e, uns anos depois, num postal prometido do Minho, o Joaquim, numa muito sua forma de pedir desculpas por um qualquer suposto atraso, inscreveu uma frase cujo significado a vida me ensinou a convocar de vez em quando: "às vezes os meus dias levam anos a chegar". Para além de professor catedrático da Faculdade de Letras de Lisboa e exegeta da poesia, o Joaquim é um exímio poeta e um dos meus mais amados.

O Joaquim não é dado à mundanidade nem é vulgar. Nesta Pátria das pequenas capelas do solipsístico elogio "cultural", estas posturas não pagam. Mas estão aí as suas palavras dirigidas ao leitor ideal, aquele que só quer ler e partir para o que é dele com essa leitura. É quanto basta.

1.

Dá-me a tua mão desconhecida e que eu conheço.
Não sei quem escuto quando falo para ti.
A tua boca é sem, meu amor, razão.


2.

Tenho uma tristeza
no bolso de dentro
do velho casaco.
Dobrada, quebrado.
Tenho uma tristeza
suja de papel
e de letras gastas.


Eu quero deixá-la
no café sem noite
tiro-a do bolso
pouso-a nos olhos,
em cima da mesa
também é de ti.
Vinha de ninguém.


Charco de jardim
dádiva na mão
triste, por abrir,
e depois a dor
aperta-me o punho
por anoitecer.
Venho duma rua
para o teu lugar.


Olha para mim
para a sala toda
para esta tristeza
atirada ao chão
entre rastos de água
os dedos acolhem
um sorriso vão.


Parou tudo agora
neste ritual
que nada detém.
Bolso de casaco
costas da cadeira
chuva na cidade
vou da tua beira


para um quarto triste
com a mãe que dorme
noutro corredor
o sangue vigia
a pequena lei
a minha tristeza
chamavas-lhe amor.


3.

A águia sublevou Ganimedes. Três facas
no chão de encontro a uma parede incendiada.
A submissa ferocidade do amor.
Nunca soube de onde vinha. Vinha. Tocava
à porta, tomávamos um café. Saía.
O que tentamos para amarem o que somos.
Na selva de interditos o longe de dentro
tem a medo sossegos sem nenhum lugar.


(Consequência do Lugar, de Joaquim Manuel Magalhães, Ed. Relógio D'Água)


12.7.03

GANAPO

Há pouco, no Telejornal da RTP, apareceu o Dr. Luis Filipe Menezes em directo. O pretexto é que está disponível para ir para a Câmara do Porto no lugar de Rui Rio. Que novidade! Comentaram esta possibilidade duas fantásticas criaturas do PSD/Porto a que já aludi outro dia por causa da Casa da Música, a saber, os Srs. Marco António e Sérgio Vieira. Do primeiro, Menezes disse tratar-se de um "filho político" que ajudou a medrar. Ao outro, tratou-o de nulidade para baixo, dizendo que nunca fez nada da vida e que, um dia, abandonada a política, lhe teremos que pagar o subsídio de desemprego. Depois, chamou-lhe "ganapo" sem importância. De facto, o Sr. Vieira é daquelas figuras partidárias que, em vez de trazerem qualquer valor acrescentado ao respectivo partido e ao debate político, só os diminuem. As patetices que verberou na tv, contra Menezes, são o melhor retrato de si próprio. Este caciquismo tosco e analfabeto, parece fazer escola no Porto e ameaça ser transversal. Eu só lamento que Rui Rio esteja rodeado por esta tropa fandanga e ganapa.
UM IRONISTA

À laia de posfácio, Vladimir Nabokov, escreveu, no final de Lolita, um texto que se pode encontrar em algumas edições da obra e que em português vale por Acerca de um livro intitulado Lolita. É aí que leio o que reproduzo e a que muitas vezes volto.

Quanto a mim, uma obra de ficção só existe se me consegue proporcionar aquilo a que chamo sem rodeios o gozo estético, isto é, uma sensação de estar, de certo modo e algures, ligado a outros estados de ser em que a arte (curiosidade, ternura, generosidade, êxtase) é a norma. Não há muitos livros desses. Tudo o mais é um acervo de lugares-comuns ou aquilo a que alguns chamam "literatura de ideias", a qual não passa muitas vezes de um acervo de lugares-comuns em enormes blocos de gesso, cuidadosamente transmitidos de século para século, até que aparece alguém com um martelo e dá uma boa martelada a Balzac, a Gorki ou a Mann.
O JUIZ

A convite da inefável Ordem dos Advogados, esteve ontem aí a perorar o famoso juiz Baltasar Garzón, uma espécie de justiceiro global com origem na vizinha Espanha. Garzón foi a sequela mais mediática dos juizes italianos que, em anos ainda não muito remotos, alcançaram uma visibilidade e uma notoriedade públicas e políticas nas célebres "operações mãos limpas" e no combate à Mafia. Aliás, como lembrou o Abrupto, o consulado e as "peripécias Berlusconi" não podem ser vistas fora daquilo que é hoje a realidade judicial dita "independente", e os seus protagonistas juizes, em Itália. Garzón, por exemplo, nunca perdoou a Felipe Gonzalez não ter sido Ministro da Justiça. Quando o PSOE se pôs a jeito, lá estava Garzón à espreita. Depois "abriu a caça" fora do espaço espanhol, com Pinochet na mira. E por aí­ fora, provavelmente até ao Sr. Bush, a avaliar pelo que disse ontem. Certamente que muitos dos nossos "administradores da justiça" admiram a figura de Garzón. Et pour cause. Percebe-se nele uma atracção indisfarçável pela "política", onde se intui que lhe agrada este limbo ambíguo de fronteira entre a "política" e a "justiça". Sempre se poupa ao desconforto a ao incómodo do voto e da legitimação democráticos.
A BRECHA

Neste País de "chicos-espertos", não se pode ceder um milímetro na razão de Estado quando efectivamente o Estado tem razão, coisa que acontece de vez em quando. No caso do "pagamento especial por conta" vs. taxistas, o Governo tem razão e nós sabemos que eles sabem que nós, por exemplo, não pedimos sistematicamente facturas. Depois de uma serena e bem fundamentada explicação pública acerca do tema, onde não perpassava qualquer transigência de circunstância, o Ministério das Finanças, via fax, deu uma "sugestão" miraculosa aos taxistas, relativa ao enquadramento jurídico-fiscal da actividade, que, de imediato, susteve a ameaça de uma Lisboa paralizada nas suas principais artérias. No dia seguinte, associações de comerciantes e outros mais que se avizinham, exigiram o "princípio da igualdade", leia-se, o famoso jargão do "não pagamos". Nesta matéria, não pode haver lugar a concessões. O oportunismo atávico e a conveniente inércia fiscal de alguns grupos societários e de lobbies - sempre os mesmos - não podem impressionar o Governo. Caso contrário, hoje abre-se uma brecha, amanhã uma racha profunda, e um dia qualquer o edifício vem abaixo.
PEDRO SANTANA LOPES II

Esta semana, Santana Lopes deu duplo ar da sua graça. No dia ou por ali, em que os taxistas ameaçavam Lisboa e o Governo de cerco por causa do PEC (pagamento especial por conta), ele falou-lhes, acalmou-os, compreendeu-os e até lhes prometeu um equipamento qualquer para os automóveis. Em suma, fez "tábua rasa" do Ministério das Finanças para ser "popular", ainda que junto de uma minoria meio exaltada e sem razão. Ele sabe que é somando as minorias que se vai "lá", naturalmente. Depois, recebeu Lula da Silva nos Paços do Concelho e também lhe disse como o compreendia, a si e ao seu combate de sempre ao lado dos que "têm fome" e dos "descamisados", coisa para a qual as "ideologias" não são chamadas para nada (esta era uma proto-farpa dirigida a Mota Amaral que, no Parlamento, tinha puxado delicadamente dos seus pergaminhos ideológicos contra Lula). Santana Lopes, a benefício do seu próprio inventário, quer colocar-se na estratosfera política isto é, acima das terrenas e vis disputas entre homens banais e "políticos", entre "esquerdas e direitas", para que a populaça, a indemne e a espertalhaça, ali se reveja e diga, "temos homem".

11.7.03

NOTAS BRASILEIRAS

1.O artigo de Mário Soares ontem no DN acerca de Luis Inácio Lula da Silva.

2. A poesia de Cecília Meireles:


É preciso não esquecer nada

É preciso não esquecer nada:
nem a torneira aberta nem o fogo aceso,
nem o sorriso para os infelizes
nem a oração de cada instante.

É preciso não esquecer de ver a nova borboleta
nem o céu de sempre.

O que é preciso é esquecer o nosso rosto,
o nosso nome, o som da nossa voz, o ritmo do nosso pulso.

O que é preciso esquecer é o dia carregado de atos,
a idéia de recompensa e de glória.

O que é preciso é ser como se já não fôssemos,
vigiados pelos próprios olhos
severos conosco, pois o resto não nos pertence.


(1962)

3.A prosa de Clarice Lispector:

Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender. Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais completa quando não entendo. Não entender, do modo como falo, é um dom. Não entender, mas não como um simples de espírito. O bom é ser inteligente e não entender. É uma benção estranha, como ter loucura sem ser doida. É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice. Só que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco. Não demais: mas pelo menos entender que não entendo.

10.7.03

UM PASQUIM

Misturado com jornais e revistas, é vulgar encontramos nos quiosques um amontoado de folhas de papel de jornal que dá pelo nome de "24Horas". Este pasquim infecto prima pelo bom gosto das capas e pela subtileza intelectual dos conteúdos, sempre entre o popularucho vil e o detalhe sórdido. Capa sim , capa não, lá vem uma morenaça acéfala ou uma loura cosmopolita(?) tipo Paula Bobone. Esta criatura - imagine-se - dá à estampa livros! O Dr. Artur Anselmo que percebe destas coisas de livros - bem como o nosso vizinho Aviz - tem claramente nas mãos um "case study". Hoje confesso que me causou asco a notícia de capa , relativa à vida pessoal da Ministra da Justiça, sujeita a uma intervenção cirúrgica no Brasil. Independentemente do que se pense da actuação política de Celeste Cardona, é miserável a forma como esta folha explora coisas que são do foro íntimo de cada um, mesmo tratando-se de figuras públicas. Não é a primeira vez, nem será a última. Cardona é apenas um pretexto para o pasquim exibir o esplendor da sua mediocridade.
À CONTA II

O Gabriel que, ao contrário de mim, lê a Bola e ainda tem a esperança de um dia viver num país civilizado e honesto, diz-nos isto:

Relata o jornal "A Bola" que a Comissão Executiva da Liga de Clubes impediu de inscrever ou registrar contratos de novos atletas aos clubes Vitória de Guimarães, Estrela de Amadora, Rio Ave (I Liga) e Salgueiros, Estoril, Santa Clara, Naval, Penafiel e Varzim (II Liga) por motivo de irregularidades da situação face à Segurança Social.Num país civilizado e honesto, estes clubes desciam automáticamente de divisão.

Pergunto: nesse País de que fala haverá lugar para o Sr. Madaíl?
DIÓGENES (404-323a.C.)


Diógenes é normalmente referenciado como o filósofo que desprezou os poderosos e as convenções sociais. Foi discípulo de Antístenes (c.444-365 a.C.), fundador da filosofia cínica. Como todos os cínicos, odiava as ideias gerais e ficou associado a diversos episódios que revelam o seu pensamento, a única ética a que dava verdadeira importância. Fundamentalmente entendia que era preciso viver de acordo com a natureza, sem mais. Conta-se que Alexandre da Macedónia, o grande imperador da antiguidade, ao encontrá-lo lhe teria perguntado o que mais desejava. Acontece que devido à posição em que se encontrava, Alexandre, fazia-lhe sombra. Diógenes, olhando para o sol disse: Não me tires o que não me podes dar! Levando ao extremo esta atitude de desprezo pelas convenções sociais, Diógenes teria como casa um barril e vestia-se de trapos. Deambulava pela cidade com uma lamparina acesa, mesmo de dia, respondendo a quem o interrogava : Procuro o Homem.
EMIL MICHEL CIORAN (1911-1995)

Le vrai contact entre les êtres ne s'établit que par la présence muette, par l'apparente non-communication, par l'échange mystérieux et sans parole qui ressemble à la prière intérieure

Que tout soit dépourvu de consistance, de fondement, de justification, j'en suis d'ordinaire si assuré, que, celui qui oserait me contredire, fût-il l'homme que j'estime le plus, m'apparaîtrait comme un charlatan ou un abruti.

Le non-savoir est le fondement de tout, il crée le tout par un acte qu'il répète à chaque instant, il produit ce monde et n'importe quel monde, puisqu'il ne cesse de prendre pour réel ce qui ne l'est pas. Le non-savoir est la gigantesque méprise qui sert de base à toutes nos vérités, le non-savoir est plus et plus puissant que tous les dieux réunis.

L' échec, toujours essentiel, nous dévoile à nous-mêmes, il nous permet de nous voir comme Dieu nous voit, alors que le succès nous éloigne de ce qu'il y a de plus intime en nous et en tout.

N'est profond, n'est véritable que ce que l'on cache. D'où la force des sentiments vils.

L'essentiel n'a jamais exigé le moindre talent.

Tout est unique - et insignifiant
.

Em português, através do posto de escuta, descubro na escrita uma variação plena de actualidade:

Para que serve um blog?
Serve o não servir para nada.
A falta de utilidade é a melhor utilidade possível.
É de toda a utilidade o não ter utilidade nenhuma.







9.7.03

À CONTA

Anuncia-se para amanhã um "circo" em Lisboa, armado por taxistas. Estes senhores recusam-se a efectuar o chamado pagamento especial por conta do IRC devido, uma espécie de adiantamento, correspondente à retenção na fonte de quem trabalha por conta de terceiro. Há por aí muito boa gente que se acha fiscalmente imaterial e improvável. Não declaram nem pagam os impostos que deviam pagar. A forma como os cidadãos se comportam perante os impostos, diz muito acerca da qualidade da vida cívica e democrática de uma comunidade. A quantidade de contribuintes - empresas ou pessoas singulares - que apresenta sistematicamente "prejuízos fiscais" nas suas declarações- quando declara - é imensa. Tem razão o Governo quando cerca, denuncia e combate este ultrage público da evasão fiscal. Não pode haver, nesta matéria, quem pague pelos outros, os tais que andam "à conta". Nem que seja de táxi.
EUA

Para o "deve e haver" da guerra do Iraque, este contributo de Norman Mailer na última edição de The New York Review of Books.

8.7.03

A TENTAÇÃO

Segundo os jornais e as televisões, o Sr. Juiz de instrução criminal que tem em mãos o caso "Casa Pia" vai "rodar" em Setembro e, para o seu lugar, poderá ir uma colega do Tribunal de Almada. A Sra. Juiz em causa, pelos vistos instada pelas tv's e - amanhá se verá - pelos jornais, não resistiu a aparecer sentada na esplanada dum cafezinho, dando mini- entrevistas. Esta moda de dar entrevistas nos cafés, à entrada para jantares, à saída de portas ou num vão de escada, não é procedimento que se recomende a quem tem, ou poderá vir a ter, uma interferência decisiva, no plano técnico-jurídico, em processos que supostamente devem estar ao abrigo da curiosidade da populaça. Claro que todos sabemos que estes processos, que nunca foram secretos, já nem discretos são. Mas que não sejam os seus protagonistas os primeiros a cair em tentação.
AUGUSTO ABELAIRA II

No dia seguinte ao desaparecimento do escritor Augusto Abelaira, convoquei para este blogue as palavras de Nelson de Matos a seu respeito. Agora, encontro um artigo do meu amigo José Medeiros Ferreira, em que se evoca uma tertúlia e um tempo. Mesmo não partilhando desse ambiente evocado, sobretudo por razões de geração política, recomendo a leitura pela forma encontrada por JMF para homenagear Abelaira.
A FALTA III

Afinal sempre houve uma falta justificada dentro da "excursão" de 30 deputados que foi a Sevilha ao futebol. Trata-se do Sr. Alberto Martins que viu a sua ausência do Parlamento justificada pela alegação que fez de que se tinha deslocado em... "trabalho político". Vejo nisto um triplo constrangimento. Em primeiro lugar, para quem aceitou este argumento extraordinário do Sr. Martins. Em segundo lugar, para o PS que, não lhe bastando as agruras por que passa neste momento, ainda tolera a visibilidade de figuras como Sr. Martins. E finalmente para o País que, já a entrar na modorra do Verão e das férias, deve olhar para isto com bovina indiferença. Estão todos muito bem uns para os outros.
SUÍNOS

Houve, na zona de Leiria, uma descarga de porcarias de suínos que poluiram águas. Em Melides, a respectiva lagoa é um imenso cemitério de peixes depois da contaminação da água por um qualquer produto químico usado na agricultura. Estas situações só não são grotescas pela simples razão de que são trágicas. Há ainda um longo caminho a percorrer na introdução ao estudo da civilidade e da qualidade, de vida e de costumes, por todo esse País. Até lá, os verdadeiros suínos estão à solta.

7.7.03

BLOGUES

À minha coluna da direita (posicionamento no blogue, nada mais), junto duas boas surpresas: Pano para mangas e A aba de Heisenberg. Nunca tinha ouvido Pedro Adão e Silva que, ao que julgo, pertence à direcção do PS. Esteve há pouco no "frente-a-frente" da SIC-Notícias com Luis Filipe Menezes. É um jovem e não utilizou argumentos estafados de quem chegou cedo demais ao lugar-comum politiqueiro. É "nosso colega" no País Relativo.
BUENOS AIRES

Miguel Sousa Tavares deu à estampa o seu primeiro romance, Equador, editado pela Oficina do Livro. Também nos aparece na TVI, às terças-feiras. nuns truculentos e incisivos comentários sobre o que passa. Ainda não li Equador, que fica, por agora, em lista de espera. Mas agrada-me a prosa de Sousa Tavares e aquele desassombro herdado do pai, que nunca nos deixa indiferentes. Com três dias de atraso, fui ler a sua última crónica, com o título A Cidade. É um bonito retrato de uma Buenos Aires recentemente visitada, eterna como a água e como o ar. A Buenos Aires em tanta circunstância cantada por Jorge Luis Borges, que aqui recordo.

Fundación mítica de Buenos Aires


¿Y fue por este río de sueñera y de barro
que las proas vinieron a fundarme la patria?
Irían a los tumbos los barquitos pintados
entre los camalotes de la corriente zaina.

Pensando bien la cosa, supondremos que el río
era azulejo entonces como oriundo del cielo
con su estrellita roja para marcar el sitio
en que ayunó Juan Díaz y los indios comieron.

Lo cierto es que mil hombres y otros mil arribaron
por un mar que tenía cinco lunas de anchura
y aún estaba poblado de sirenas y endriagos
y de piedras imanes que enloquecen la brújula.

Prendieron unos ranchos trémulos en la costa,
durmieron extrañados. Dicen que en el Riachuelo,
pero son embelecos fraguados en la Boca.
Fue una manzana entera y en mi barrio: en Palermo.

Una manzana entera pero en mitá del campo
expuesta a las auroras y lluvias y suestadas.
La manzana pareja que persiste en mi barrio:
Guatemala, Serrano, Paraguay y Gurruchaga.

Un almacén rosado como revés de naipe
brilló y en la trastienda conversaron un truco;
el almacén rosado floreció en un compadre,
ya patrón de la esquina, ya resentido y duro.

El primer organito salvaba el horizonte
con su achacoso porte, su habanera y su gringo.
El corralón seguro ya opinaba YRIGOYEN,
algún piano mandaba tangos de Saborido.

Una cigarrería sahumó como una rosa
el desierto. La tarde se había ahondado en ayeres,
los hombres compartieron un pasado ilusorio.
Sólo faltó una cosa: la vereda de enfrente.

A mí se me hace cuento que empezó Buenos Aires:
La juzgo tan eterna como el agua y como el aire.
O PS II

Este fim-de-semana o Dr. Souto Moura, Procurador Geral da República, pronunciou-se de novo acerca das alegadas "pressões" exercidas por dirigentes do PS sobre a justiça, naquele dia fatal de Maio em que Paulo Pedroso foi constituído arguido num processo conhecido.Parece que o PS se prepara para "contra-atacar". Percebe-se o incómodo socialista neste assunto,mas, depois de António Costa, também este fim de semana, ter recentrado os interesses do partido em assuntos de Oposição, seria péssimo para o PS voltar "à vaca fria", mesmo que pelas melhores das intenções. Ninguém ganha nada com estes "jogos florais": não ganha a Justiça, não ganham os arguidos, não ganha o PS. Até porque nesta, como em muitos outras situações da vida -convém sempre lembrá-lo - "há mais marés que marinheiros".
PEQUENINOS DIFERENTES

Nem tudo pode ser mau. A partir de hoje e durante sensivelmente uma semana, seis jovens estudantes liceais, do 11 º e do 12º anos de escolaridade, estarão em Tóquio a representar Portugal nas Olimpíadas Internacionais de Matemática. Consta que os portugueses já saíram dessas Olimpíadas, noutros anos, com uma medalha de bronze e com diversas menções honrosas.Podem ler o nome dos nossos seis pequenos matemáticos aqui. Eu considero isto muito mais interessante do que saber se a Dra. Maria José Nogueira andou a conspirar contra o Dr. Paulo Portas, eles que tanto sabem que sabem o que cada um sabe...

6.7.03

FLORILÉGIO DOMINGUEIRO

Parece que alguns dos nossos compatriotas já partiram para férias. Mesmo deprimido, o País não abdica da sua pequena felicidade. Ainda bem. O descanso também pode convocar os afectos tantas vezes amarrotados durante o ano. Não sei bem porquê, talvez por ter aqui à minha frente uma antologia sua, ocorreu-me colocar no post um famoso e belo texto de René Char. Ei-lo.

Allégeance

Dans les rues de la ville il y a mon amour. Peu importe où il va dans le temps divisé. Il n'est plus mon amour, chacun peut lui parler. Il ne se souvient plus; qui au juste l'aima?

Il cherche son pareil dans le voeu des regards. L'espace qu'il parcourt est ma fidélité. Il dessine l'espoir et léger l'éconduit. Il est prépondérant sans qu'il y prenne part.

Je vis au fond de lui comme une épave heureuse. A son insu, ma solitude est son trésor. Dans le grand méridien où s'inscrit son essor, ma liberté le creuse.

Dans les rues de la ville il y a mon amour. Peu importe où il va dans le temps divisé. Il n'est plus mon amour, chacun peut lui parler. Il ne se souvient plus; qui au juste l'aima et l'éclaire de loin pour qu'il ne tombe pas?
A CULTURA II

1. Como eu não assisti ao último concerto da temporada sinfónica do Teatro Nacional de São Carlos;

2. Porque confio na opinião do Crítico nessa matéria, infinitamente mais segura do que a minha;

3. Porque o acompanho no elogio que faz à magnífica Orquestra Sinfónica Portuguesa e aos seus dedicados e competentes músicos que bem mereciam, no que concerne à temporada sinfónica do teatro, um outro tipo de divulgação e uma maior visibilidade;

4. Porque já não o acompanho tanto nas observações que produz acerca do Coro do Teatro, excepção feita à sua direcção musical, cuja forma de trabalho e prestação têm vindo claramente a desgastar-se ( a vida é mesmo assim, não há insubstituíveis em lado nenhum);

5. Porque, tendo estado na direcção do Teatro, considero pertinentes as considerações que tece sobre o director musical da instituição (atenção, "oh subalimentados do sonho" :nenhuma das posições que aqui tomo ou subscrevo acerca do Teatro Nacional de São Carlos tem qualquer intuito de molestar pessoalmente quem quer que seja e muito menos Zoltan Pesko, que considero!);

6. Porque julgo que a direcção artística do Teatro não pode ser cega, surda e muda em relação ao que não lhe é simpático, uma vez que, em última análise, é o seu output que tem que ser avaliado, quer na relação com os públicos, quer para efeitos de "controlo interno";

7. E porque ainda é cedo para esboçar uma palavra definitiva ( que nunca o é ) sobre uma instituição que me é cara, a diversas instâncias...

com a habitual vénia, e sem receio de "macaquear" ninguém, nem de falar por outrém, peço emprestado o post do Crí­tico e aqui o deixo imaculado.


Homenagem a Jeffrey Tate

Assisti sexta feira ao último concerto da temporada regular do S. Carlos.
Direcção suave, precisa, exigente, séria, de um Jeffrey Tate em estado de graça. Um maestro que vai ao fundo da questão, um maestro notável, um músico e um gentleman.

A obra a sinfonia número 9 de Gustav Mahler, uma das obras mais difíceis tecnicamente da história da música.
Uma orquestra constituída por 16 primeiros violinos, 14 segundos, 12 violas, 10 violoncelos e oito contrabaixos nas cordas. Quatro flautas e um flautim, três oboés mais corne inglês, três clarinetes soprano, um clarinete em mib (mais agudo) e um clarinete baixo, quatro fagotes (um tocando também, em alternância, contrafagote), quatro trompas, três trompetes, três trombones, uma tuba. Cinco percurssionistas, incluíndo dois tímbaleiros.
Duas harpas. Uma orquestra relativamente pequena a que Mahler regressou para terminar a sua obra sinfónica, depois do excesso orgiástico da sua sinfonia número 8, a sinfonia dos mil.
Uma obra tocante, fantástica, mágica, sente-se em toda a obra que estávamos na despedida de Mahler, o adagio, último andamento, marca o ponto supremo, o êxtase perante a morte, que viria sem deixar Mahler concluir o projecto da sua décima sinfonia. A delicadeza de execução da obra é terrífica, solos traiçoeiros percorrem toda a orquestra, violino, viola, violoncelo, flauta, clarinetes diversos, oboé, trompete, trompa, passagens de naipe em agudos dificílimos, pizzicatos obrigando a uma exactidão meticulosa, passagens a descoberto de todos os naipes, em que a menor falha é uma catástrofe incapaz de disfarçar pela massa. E pasme-se, o milagre ocorre! Uma orquestra sem chama, desapaixonada, ao longo de toda uma temporada, desafinada, desorganizada, sem corpo, incapaz de tocar o que quer que seja, transfigura-se, atinge um ponto de energia e prazer de tocar quase inacreditáveis.

Raramente ouvi uma nona de Mahler tocada com tanta entrega, e já escutei esta obra ao vivo muitas vezes: NHK de Tóquio (gélida e tranfigurada), Viena (fúria sinfónica), Berlim (o orgasmo do som), Amsterdão (a finesse holandesa), Chicago (a insuperável técnica americana). Hoje posso dizer, a sinfónica nacional toca Mahler com a paixão da alma. À parte um falhanço logo na entrada do solo do primeiro trompa, e uma desafinação horrenda de alguns instantes, nos segundos violinos, quando no último andamento sobem ao dó bemol agudo (maldade de Mahler), talvez com notas trocadas pelo meio, tudo saiu quase perfeito, apenas ligeiríssimas imprecisões no último andamento. Mais um dia de ensaios e sairia sem mácula.

Como se justifica um tal milagre? Um bom maestro. Um bom material, os músicos são bons, não sobra dúvida. Aquela orquestra tem potencial, só uma orquestra com qualidade pode tocar Mahler assim. Esta orquestra, assim dirigida não envergonha Portugal em parte nenhuma do mundo! Estou feliz por isso.
Não é ainda uma orquestra que toca bem apesar do maestro! Como por exemplo a Berliner Philarmoniker.


A análise acima prova algumas coisas de que se suspeitava.

1. Este concerto dispensou o coro do S. Carlos, será que Tate conseguia domesticar o coro? Penso que seria impossível, o coro é manhoso, não tem vozes, não afina, é um conjunto de comadres e de grupinhos à solta, e nós a pagar. O maestro de coro é bom rapaz, pianista menos mau, mas já provou que não tem capacidade para gerir um grupo daqueles. Aquilo precisa de trabalho, de exigência, de remoção de incompetentes, de concursos para admissão, com júris sérios, e não de entradas para amigos.

2. Outra razão: o maestro titular. Pouco exigente, frouxo, não está presente em Lisboa. Pactua com desafinação, com desacerto, com um coro a cantar atrasado e mal, incapaz de se impor perante o maestro de coro e o coro. Facilita, o resultado é miserável, em música não existe o sofrível, o sofrível é horrendo, é inaudível, sou incapaz de ouvir um Mozart (ou outro) de forma sofrível, ainda por cima por incompetência e falta de trabalho. Seria necessário apostar noutros nomes, e depressa. A Direcção do S. Carlos, se quer melhorar o sistema, tem de mexer em algumas vacas sagradas. Afinal somos nós contribuintes que pagamos esses vícios. É necessário um maestro titular com fibra, mais jovem, melhor tecnicamente, e que esteja presente, que tenha poder. Sobre o maestro de coro: porque não promovê-lo? Se é tão bom rapaz, porque não dar-lhe um cargo onde não chateie? Ponha-se o rapaz na assessoria da Câmara, ou no Ministério da Cultura. Se calhar ainda fazia algum trabalho de qualidade e punha-se alguém capaz de mexer, duramente, nos vícios do coro. É a única solução.